O filme que a China quer esconder (e que o Expresso viu)Trata-se de “Coronation”, de Ai Weiwei, e retrata o primeiro confinamento de Wuhan, a cidade onde originalmente apareceu o vírus que hoje volta a provocar o fecho do mundo. O documentário mostra como funciona o sistema interno da China e como a vigilância é uma deslealdade à liberdade individualoronation”, o mais recente documentário do artista chinês Ai Weiwei, apresentado a 20 de agosto, está a ser boicotado internacionalmente, assegura o autor. A acusação é extensiva a festivais de cinema e plataformas de streaming, diz Weiwei, que denuncia agora o que considera um conluio entre o Ocidente e a China para que não se mostre o sistema organizativo e militar daquele país asiático. O filme é o resultado de 500 horas de filmagens por equipas de profissionais, mas também por voluntários anónimos, que quiseram ajudar a expor como viveram 57 milhões de chineses durante quase dois meses, em toda a província de Hubei.
Contudo, não se espere o desvendar de um segredo que vá além da militarização brutal de um país ao serviço do sistema político. O filme, montado pelo artista e ativista a partir de Berlim, mostra como os cidadãos viveram debaixo de um Big Brother asfixiante, sem autonomia, independência ou qualquer tipo de liberdade. Com as imagens de uma cidade deserta, Ai Weiwei quis ir à procura da desumanização brutal que as autoridades chinesas impuseram no país a partir de 23 de janeiro, fez agora um ano.
São medidas coercivas a que cada um em sua casa, ou uma multidão a construir um hospital gigantesco a uma velocidade sem precedentes, reagem obedientemente e sob o terror de um medo que não é possível esconder. O documentário deita cá para fora testemunhos de muitos dos que testaram positivo mas também dos que não contraíram o coronavírus, mas que tiveram familiares infetados ou mesmo que perderam a vida. Ataca a máquina de um sistema que só vê factos e consequências, protocolos e formalizações e não olha nunca a vidas e a pessoas.
As imagens são, muitas vezes, filmadas clandestinamente, e entram a fundo na vida transtornada dos cidadãos chineses, obrigados a viver numa austeridade de sentimentos atroz. Assim como atroz é o esforço exigido a funcionários, enfermeiros, médicos, trabalhadores da construção civil ou empregados de crematórios, onde os corpos das vítimas não param de entrar para desaparecerem da História. O filme mostra um Estado chinês sempre implacável, enquanto as portas se entreabrem para gravar mais um testemunho do homem comum e que não tem direito a levantar um braço, ou a pô-lo fora do sítio delimitado pelo risco na estrada.
Mostra-se o funcionamento dos cuidados intensivos, mostra-se as cerimónias que, em nome do Partido Comunista, ‘gratificam’ os trabalhadores. Mostra-se a vida de um casal destroçado pelas rigorosas regras de circulação implantadas na cidade e que o obrigam a não chegar a casa, numa contenda constante entre a segurança, a saúde pública e a liberdade individual. Mostra-se a vida de um estafeta de entregas ao domicílio. E, cada vez mais humanizado, o filme continua a mostrar e a mostrar. Mostra-se ainda a impossibilidade de um operário da construção civil regressar a casa, depois da obra acabada, impedido de sair de Wuhan pelas normas de movimentação.
Os drones sempre a revelar uma cidade sem alma, perdida, esquecida quase, mas nunca adormecida, por mais que o Estado imponha medidas atrás de medidas para controlar a pandemia, num ato de vigilância permanente e, mostra o documentário, de insanidade na sua capacidade real de lavar os cérebros humanos, levando-os até aos limites.
E é esse ‘cuidado extremo’ que, diz Ai Weiwei, a China não quer mostrar ao Ocidente e que o Ocidente não mostra para não beliscar a sensibilidade do país. Ou, melhor dizendo, para que nada estrague os negócios e transações comerciais entre os países do Ocidente e Pequim. O artista afirma que o filme foi rejeitado por festivais como o de Veneza ou de Toronto que inicialmente tinham mostrado interesse em apresenta-lo. E acrescenta que também a Netflix não quer disponibilizar o filme, que, por agora, pode ser alugado ou comprado no Vimeo.