A pirataria marítima: envolvente e cenáriosAlexandre Reis Rodrigues Introdução“Global commons” é uma expressão que designa «os espaços que não estão sob o controlo directo de qualquer estado mas que são vitais para o acesso e ligação a quaisquer pontos do mundo». Na interpretação actual, são as águas e espaço aéreo internacionais, o espaço exterior (outer space) e o ciberespaço. No entanto, o termo abrange também as zonas económicas exclusivas onde os respectivos estados costeiros têm direitos sobre os recursos mas não têm competência sobre como regular outras actividades de onde, por exemplo, possam surgir ameaças.
Num contexto de segurança em que a utilização livre e segura desses espaços está bem menos garantida do que estava no passado, este assunto é da maior actualidade. As razões são conhecidas; resultam de um conjunto diversificado de ameaças opacas e difusas, provenientes de grupos que operam à margem da comunidade internacional e cujos alvos principais são as bases financeiras, económicas, políticas e sociais em que assenta o funcionamento das nossas sociedades. Relembro duas recentes evidências desta situação: a pirataria nas costas da Somália e o ataque cibernético que sofreu a Estónia em 2007.
Estas circunstâncias obrigaram a rever a prioridade sob que devem ser encaradas as ameaças convencionais à soberania e integridade territorial e as ameaças não convencionais ao acesso e à livre utilização dos “global commons”, as quais precisarão de receber, pelo menos no futuro próximo, a maior parte da nossa atenção.
É aliás o que também nos diz o conceito estratégico da NATO, aprovado a 19 de Novembro, embora não use esta terminologia e, mais curioso, nunca mencione a palavra marítima. Faria bom sentido que a referisse até porque, na descrição do ambiente de segurança, um dos pontos que o conceito destaca é precisamente o facto de «todos os países cada vez mais terem de confiar nas linhas de comunicação vitais, no transporte e rotas de trânsito, de que estão dependentes o comércio internacional, a segurança energética e a prosperidade». Ora isto é essencialmente matéria de segurança marítima, faça-se ou não menção expressa. É da utilização livre e segura desse “global common” que depende, em grande parte, a continuação do processo de globalização, em que a grande maioria dos países aposta para a sua prosperidade e de que o mar é geralmente considerado o principal facilitador.
É sob esta perspectiva de segurança marítima, de visão do mar como espaço de desenvolvimento económico que é preciso proteger de ameaças que possam pôr em causa a passagem livre e segura dos navios em águas internacionais, que pretendo enquadrar o tema da pirataria, afinal o objectivo deste artigo.
Deixo de lado, por não respeitar a esse âmbito, as ameaças que visam o uso do mar para outros tipos de actividades criminosas, por exemplo, na área do tráfico de drogas, de pessoas ou de armamento, mal grado estas ponham também problemas de segurança que podem afectar a estabilidade necessária para que haja progresso.
A pirataria marítimaA pirataria marítima é algo que a opinião pública julgava desaparecido mas que nunca deixou de existir; na verdade, apenas a sua importância, em dimensão e impacto, tem variado ao longo dos tempos. Já era uma preocupação no século XVI; nos séculos XVII e XVIII era um fenómeno quase global e especialmente florescente em diversas áreas. Teve uma época de ouro entre 1650 e 1720.
Começou a perder importância quando algumas potências da época, designadamente a França e o Reino Unido, começaram a reconhecer o comércio por via marítima como a principal fonte de riqueza dos países e deixaram de considerar vantajoso e lucrativo apoiá-la quando dirigida contra navios de países rivais (o “privateering” ou guerra de curso). Hoje, constitui de novo um tema de geral preocupação de políticos e responsáveis pela segurança marítima.
Quando, em 1982, foi finalmente aprovada a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar não se lhe deu suficiente atenção, porque já não fazia parte das preocupações. Admitia-se que se voltasse a ser problema seria facilmente resolvido com o maior número de meios disponíveis e a maior capacidade de efectuar um controlo efectivo do mar. No total dos 320 artigos da Convenção apenas sete foram dedicados à pirataria e mesmo esses foram adoptados tal como tinham sido previstos na Convenção do Alto Mar de 1958, onde aliás apareceu pela primeira vez a definição de pirataria, circunscrevendo-a ao mar alto, situação que se mantém.
Naturalmente, esta abordagem acabou por reflectir-se no direito interno de vários países, entre os quais Portugal, que deixaram de prever o crime de pirataria no seu ordenamento jurídico-legal. Esta situação cria limitações às possibilidades de intervenção das marinhas de guerra dos respectivos países mas a solução desta questão, através de uma alteração ao Código Penal, como fez a Espanha, França e Japão, não altera substancialmente a situação. Fica por resolver o problema de se encontrar uma forma prática e eficaz de lidar com os piratas, uma vez feitos prisioneiros, isto é, accionar a sua apresentação a julgamento (e o subsequente cumprimento da pena aplicada). São duas vertentes a ter em consideração: por um lado, as dificuldades logísticas, administrativas do transporte e apresentação dos detidos para julgamento no país que fez a detenção, um processo que, como facilmente se adivinha, é inevitavelmente complexo, demorado e com encargos financeiros pesados; por outro lado, a necessidade de um ponto de apoio próximo em terra onde os detidos possam ser entregues para ulterior encaminhamento para o país que os julgará. Este ponto de apoio deve ser tão próximo quanto possível da área de operações para que seja mínimo o impacto da deslocação do navio na manutenção do dispositivo naval.
É fácil compreender, à luz do que se acaba de explicar, por que não se encontra generalizada a prática de julgar os piratas detidos, mesmo entre os países onde a pirataria já consta do respectivo direito interno. Na realidade, apenas há registos de julgamentos em cinco países (Alemanha, Espanha, Estados Unidos, França e Holanda), e, mesmo assim, numa base pontual (experimental), quando estiverem envolvidos cidadãos nacionais.
Para resolver este problema, nas Nações Unidas, estão em análise sete possíveis alternativas de criação de um tribunal ad hoc. É necessário que se faça brevemente uma opção e se proceda à sua implementação no terreno porquanto a solução entretanto acordada pela União Europeia com o Quénia, que se comprometeu, mediante apoios, a fazer o julgamento dos piratas feito prisioneiros, encontra-se suspensa desde Setembro. Uma vez resolvido o problema, será então necessário que a recomendação constante da Resolução n.º 1918 do Conselho de Segurança para que a pirataria volte a ser incluída como crime no direito interno nos países em que isso não se verifique, terá que passar a ter uma resposta positiva generalizada por parte de todos os países envolvidos.
A evolução recenteA forma como tem evoluído o fenómeno, e em particular como cresceu exponencialmente nos últimos quatro anos, mostra-nos que as suas áreas de actuação se têm deslocado em função da mudança da localização dos centros de poder económico, da necessidade de apoios em terra e da proximidade de zonas de grande densidade de navegação. O fenómeno como que vai atrás do crescimento das economias, da importância das linhas de navegação do tráfego petrolífero e da existência de Estados incapazes de lhes negarem o “santuário” de que precisam em terra para actuar no mar, que é precisamente a situação existente na Somália.
Depois de se desvanecer das Caraíbas no século XIX, a pirataria tornou-se mais importante no Pacífico no século XX; hoje, concentra-se na costa oriental de África, mas existe em proporções também alarmantes também na costa ocidental de África e no sul do Mar da China e pontualmente noutras zonas.
O seu objectivo também se alterou; em vez de visar a posse dos navios apreendidos e respectiva carga, passou a ser conseguir um pagamento elevado pelo seu resgate.
Hoje, receia-se que comece a ter uma ligação com o terrorismo marítimo, não obstante as diferentes motivações: ganhos materiais no primeiro caso, objectivos políticos, religiosos ou ideológicos no caso do terrorismo. É, aliás, neste ponto que se centram presentemente as preocupações sobre a forma como poderá evoluir no futuro a segurança marítima. Embora, de momento, se considere que a pirataria se compara e associa melhor com o crime organizado do que com o terrorismo, existem indícios de que esteja a financiar o último; na verdade, há quem refira mesmo evidências, mas as opiniões dividem-se. É muito possível que as organizações terroristas estejam a ver na pirataria uma possibilidade de tornear as dificuldades de financiamento que enfrentam devido à pressão que a comunidade internacional tem feito para cortar, a quem apoia a sua actividade, o acesso a fontes de financiamento externo.
Vários peritos têm alertado para a probabilidade de que o próximo grande ataque terrorista venha por mar, depois de o primeiro ter vindo por via aérea (11 de Setembro) e os segundos terem surgido por vias terrestres (Metro de Londres e Estação de comboios em Madrid). Ninguém consegue adivinhar o futuro. Sabemos, no entanto, que os terroristas, regra geral, procuram o alvo mais fácil e, se possível, o mais inesperado. O transporte marítimo, sendo o menos regulado entre todos os meios de transporte e o que tem menos acompanhado a adopção de medidas de segurança, pode, de facto, tornar-se o alvo ou instrumento mais fácil para uma organização terrorista montar um golpe espectacular, com muitas vítimas e grave perturbação do comércio internacional.
A actual dimensão O que as estatísticas revelam, nas costas da Somália, é uma situação preocupante mas, no entanto, sem dimensão estratégica. A taxa de incidência de tentativas de ataque e de ataques bem-sucedidos é, respectivamente, de 0,6% e 0,2% do total de 25000 navios que cruzam a área.
Segundo um estudo da RAND Corporation, o prejuízo da actual situação mantém-se em dois por cento do rendimento gerado anualmente pelo comércio marítimo mundial. Provavelmente, seria maior se, por exemplo, se os navios tivessem que substituir a passagem do Índico para o Atlântico, feita presentemente através do Estreito de Bab el Mandeb e Canal do Suez, pela volta ao continente africano, o que corresponderia a mais quinze dias de viagem, a uma velocidade económica de 14 nós.
O International Maritime Board, que faz um registo dos incidentes desde 1991, reportou uma média de cerca de 100 por ano (entre tentados e consumados) até 1994 e depois um crescimento em espiral que em 2000 atingiu 469 ocorrências, pico depois repetido em 2003, ano em que os piratas causaram 23 mortes entre tripulantes dos navios apresados.
A partir desse ano a média total baixou para menos de 400 incidentes mas a partir de 2007 verifica-se um crescimento exponencial nas costas da Somália e no Golfo de Aden, região onde passou a ocorrer a maioria de apreensões de navios mercantes, incluindo super-petroleiros e navios similares.
As estatísticas de 2008 e 2009 mostram o retomar do crescimento global do fenómeno, 306 incidentes em 2008 (mais 8,5% do que em 2007), 406 em 2009 (mais 24,6% do que em 2008).
A Somália, sozinha, foi responsável por 88 dos 100 casos a mais que aconteceram em 2009, o que significa que a sua quota-parte do total global cresceu, em termos percentuais, de 43,8% em 2008 para 54.5% em 2009. No entanto, continuando a falar da Somália, ao contrário deste crescimento de incidentes, o número de ataques bem-sucedidos tem diminuído. Passou de 45,5% em 2008 para 26,5% em 2009; isto é, enquanto em 2008, do total de 134 ataques verificados 73 não se consumaram, em 2009, num total de 222 ataques houve 163 que não se concluíram. Estas estatísticas mostram que o dispositivo naval na Somália, embora não conseguindo impedir o crescimento da pirataria, tem pelo menos conseguido manter o número de navios assaltados em cerca de 0,2% dos 25000 que se estima cruzarem a área, por ano. Naturalmente, estes resultados devem-se também a uma melhor preparação dos navios mercantes para atravessar esta área perigosa.
Em outras partes do mundo em que a pirataria tem também dimensão relevante, o sul do mar da China com 71 casos e a costa ocidental de África com 46 em 2009, as percentagens de ataques consumados é muito superior, respectivamente, 80% e 74%.
Como poderá evoluir a situaçãoCompreende-se a perplexidade com que alguma opinião pública encara as dificuldades de se acabar, de uma vez por todas, com a pirataria na Somália, tal a desproporção entre os meios sofisticados do dispositivo naval e os equipamentos e armamento rudimentares dos piratas. No entanto, o assunto tem fácil explicação; basta lembrarmo-nos de que, tirando as especificidades de se passar no mar, a pirataria é apenas mais um dos conflitos assimétricos como os outros que longamente defrontamos em terra em várias partes do mundo. O da Somália não será eliminado totalmente sem uma intervenção em terra que reponha a lei e a ordem no país. O seu combate, na essência, nada difere da luta contra o terror, o crime organizado, o tráfico de drogas, etc., nenhum dos quais terá uma solução exclusivamente militar.
Também se compreende o comentário que se ouve fazer frequentemente em defesa de uma postura mais “musculada” das unidades navais na forma de lidar com os piratas. Este aspecto, no entanto, também tem a sua explicação; a actuação dos navios é regulada por “regras de empenhamento” que definem o modo de actuar e como deve ser usada a força, o que por sua vez decorre da estrita observação do Direito Internacional aplicável. Não se vê como poderia ser diferente, mas, como também se observou atrás, há passos a dar, em primeira instância, pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas (na criação de um tribunal ad hoc) e depois pelos países que ainda não “criminalizaram” a pirataria (na revisão do seu Código Penal).
De facto, não obstante ter-se conseguido diminuir a percentagem de ataques concretizados, o crescimento do número de ataques tentados, verificado nos dois últimos anos, mostra que continua a faltar um sistema de dissuasão que actue sobre a margem de impunidade com que os piratas actuam.
Mais meios poderiam melhorar marginalmente o resultado do esforço naval que a NATO, a UE e outros países isoladamente têm estado a fazer para conter a situação num baixo nível de risco para a navegação na área, mas a relação custo/eficácia daí resultante não seria atractiva. Hoje, é todo o oceano Índico e não apenas a costa oriental de África que os piratas exploram, deslocando a sua área de actuação em função da presença naval; um dos últimos apresamentos ocorreu precisamente ao largo da Índia.
Se o fenómeno continuar a crescer e atingir um nível de impacto estratégico que, como se disse atrás, hoje não tem, então certamente outras medidas terão que surgir. As primeiras serão, com certeza, desencadeadas pelas companhias de seguros e pelos próprios armadores na sequência da avaliação que fizerem dos custos e riscos de apresamento dos seus navios. Até ao momento, os armadores têm-se limitado a mandar evitar a proximidade das costas da Somália e a arriscarem, em última instância, a possibilidade de terem negociar o pagamento dos resgates exigidos.
Em qualquer caso, os EUA, que são o principal garante da segurança do tráfego marítimo internacional, não deixarão de se antecipar se os seus interesses na manutenção do controle do mar, uma das bases da sua hegemonia militar e domínio económico, estiverem ameaçados.
Se a situação se agravar e forem necessárias medidas mais drásticas, então poderá ser inevitável lidar directamente com as raízes do problema, incluindo possivelmente uma intervenção em terra, circunstância em que o Conselho de Segurança das Nações Unidas terá então que decidir o que é mais importante: se pôr termo à pirataria ou respeitar a soberania do Estado de onde provem, não intervindo em terra.
O objectivo de curto prazo, para além do que compete às Nações Unidas e de continuar o esforço naval de contenção da situação, será melhorar a cooperação internacional, começando pelo nível regional. A esperada aprovação para breve de uma nova estratégia marítima da NATO virá formalizar e dar maior realce a este aspecto e, em particular, à participação da Aliança em tarefas de segurança marítima.
A NATO tem já um longo registo de participação neste tipo de tarefas. A de maior dimensão ocorreu nos Balcãs, na primeira metade da década de noventa, para implementação dos embargos marítimos decretados pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas às antigas Repúblicas da Federação Jugoslávia. A mais longa é a Operação “Active Endeavour” no Mediterrâneo, lançada a seguir ao 11 de Setembro para controlo de navios suspeitos de colaborarem em actividades terroristas, e que permanece activa ainda hoje. O envolvimento no combate á pirataria nas costas da Somália começou em Outubro de 2008, em resposta a um pedido das Nações Unidas para protecção dos navios mercantes a participarem no World Food Program.
No entanto, daqui para a frente, já não se tratará apenas, como foi no passado, de dar resposta a solicitações pontuais de empenhamento de meios. Tratar-se-á de tomar a iniciativa de dinamizar parcerias de colaboração regional que ajudem a limitar o impacto económico, financeiro e de segurança que as novas ameaças estão a criar no domínio marítimo, procurando, numa primeira fase, pôr os seus originadores na defensiva.
Como devem as Marinhas adaptar-seComo se compreende, esta nova situação levanta interrogações sobre como deve evoluir no futuro a configuração e composição das forças navais, à vista do crescendo de ameaças assimétricas à utilização segura e livre do mar. A principal questão que os planeadores navais debatem é decidir como se deve combinar, num contexto de sérias restrições orçamentais, o factor quantidade com o factor qualidade.
Quantidade é o que deve prevalecer em operações de segurança marítima que se desenrolarão sobretudo no litoral e num contexto de ameaças assimétricas, situações em que o potencial combatente das mais modernas unidades navais não pode ser explorado em todas as suas dimensões e não é geralmente de utilidade decisiva.
Qualidade (sofisticação tecnológica, armamento de precisão, poder de combate à distância, etc.) é o factor onde estão a apostar as novas potências emergentes, com destaque para a China e Índia, seguidas a alguma distância pela Rússia, que tenta regressar ao mar, pelo Brasil e outras potências asiáticas.
Como se definirá o equilíbrio entre estas duas concepções está dependente da forma como se clarificarão as actuais incertezas sobre o futuro da globalização das economias, tendo em conta a relação directa que existe entre esta e o uso do mar para as trocas comerciais de que o processo está quase totalmente dependente.
Estados incapazes de tirar benefícios da globalização, ou não interessados em acompanhá-la, continuarão a ser fontes de conflito e instabilidade, facilitando, ou não conseguindo impedir, a interferência de actores fomentadores de instabilidade. Esta possibilidade obrigará a planear para situações de ameaças assimétricas, mas a eventualidade de conflitos entre estados, embora mais remota, continuará como uma hipótese que os planeadores não arriscarão excluir, principalmente no caso das grandes potências ou países com importantes interesses marítimos.
Jornal Defesa