Renovo os meus cumprimentos a todos. Peço também as minhas desculpas por só agora regressar a este espaço. Para um Oficial de Cavalaria os mecanismos da torre, peça e motores de um carro de combate serão sempre mais fáceis de entender do que os meandros da comunicação via Internet.
Queria responder às questões colocadas por ordem de entrada.
Fgomes
Em 1967 havia a consciência do apoio que a retaguarda tinha que dar às unidades combatentes. Estou hoje convencido que me seria permitida a possibilidade de levar dez ou mais carros de combate se os tivesse pedido - na época existiam cerca de oitenta M5A1 aguardando a sucata no depósito de Beirolas. Pedi apenas três carros porque era o número mínimo de CC com vista a um emprego operacional e porque sabia que, a nível de batalhão, seria difícil dispor de mais meios materiais e humanos.
Do ponto de vista da arma de Cavalaria, os três carros de combate cumpririam as suas missões: dois CC fariam as escoltas, usualmente um à frente e outro atrás da coluna (em caso de avaria só um blindado com a potência de um carro de combate podia rebocar um outro) e o terceiro ficava na base em contacto rádio permanente (exactamente como se procedemos em Nambuangongo). O apoio dado por este terceiro CC era essencial. Antes do embarque dos carros para Angola consegui que os M5A1 fossem equipados com rádios SCR-528 (os mesmos então usados nos modernos carros de combate «Patton» M-47). Ao contrário da maior parte do equipamento de comunicações disponível na guerra em África, estes aparelhos de rádio eram de uma enorme fiabilidade e eficácia. Atrevemo-me a dizer que, só por esse facto, as colunas sob escolta dos carros de combate M5A1 ofereciam uma poderosa ajuda e mais valia. Só quem esteve debaixo de fogo numa emboscada sabe o valor de uma comunicação por rádio permanente.
Mais tarde, quando o general Spínola me pediu para levar o maior número possível de carros de combate para a Guiné (em termos militares tratava-se de uma simples ordem e missão) o ambiente já era diferente. Faziam-se contas ao custo das revisões, protelavam-se reuniões e sentia-se um certo grau de incompetência. O soldado português lutava no meio do mato, por vezes em condições bem adversas, mas a vontade inicial (hoje a mesma seria catalogada de ingenuidade) já não vencia: o mundo vivia então o complicado xadrez da «guerra fria» e os equilíbrios geo-estratégicos eram medidos ao milímetro.
Em 1967, os carros de combate com destino a Angola foram embarcados à luz do dia, sob as gruas do cais de Alcântara, com as gaivotas e barcos à vela no Tejo (as imagens fazem parte do DVD que acompanha o livro) e duvido que um observador da embaixada dos Estados Unidos estivesse presente. Se o envio destes carros foi depois usado como «peso» nos meandros da diplomacia foi porque algum embaixador terá referido que «Portugal estava a usar carros de combate fornecidos pela NATO nas campanhas de África». Entretanto, se os Estados Unidos tinham - à data - um bom parceiro diplomático em Portugal (base das Lajes, votações na ONU), o facto é que não desejavam a agressividade dos movimentos nacionalistas africanos. E pouco importou, no contexto, defender que os carros de combate M5A1 eram armas há muito consideradas obsoletas - mesmo sabendo que o inimigo usava o mais moderno armamento (como os RPG7 que ainda hoje, 30 anos passados, mostram a sua eficácia).
O facto - histórico - é que o exército português usou carros de combate M5A1 em Angola, e que estes velhos tanques de guerra - graças ao empenho, dedicação e criatividade de um punhado de homens - protegeram muitas das vidas dos nossos soldados.
Sobre os aspectos políticos inerentes ao contexto histórico, convém aqui referir que nunca os CC M5A1 participaram em acções de «agressão» ou similares (por muito que tivessem essa capacidade) e tal ideia só revelaria um total desconhecimento das condições específicas com as quais o exército português se debatia. A missão dos CC era antes de tudo defensiva, possibilitando uma resposta imediata e eficaz perante as emboscadas, reagindo sobre fogo IN e imediatamente impondo o seu respeito - os testemunhos dos protagonistas são particularmente evocativos a este respeito.
A cada país compete defender os seus soldados: enviados em missões de guerra, vergonha seria a de uma Nação que não o fizesse. E aqui reside a minha crítica, mais direccionada às autoridades políticas de então do que às militares: o Estado Português já antes tinha comprado armamento na União Soviética (indirectamente), na Alemanha e em França, bastando adquirir meia dúzia de M5A1 para provar à ONU que se tratava de material «legítimo». O certo é que o uso destes carros de combate (tão antiquados para a guerra moderna como aptos para as missões em muitos dos cenários Africanos) teria constituído um poderoso aliado das NT.
Yosy
É verdade, tratou-se do baptismo de fogo da nossa cavalaria moderna. Mais: esperando (e desejando) que tais cenários não se apresentem no futuro, foi a única vez que o exército português usou carros de combate em acções de guerra.
Luís Filipe Silva
As auto-metralhadoras Panhard EBR e ETT foram fundamentais na abertura de itinerários e na conquista da Vila de Nambuangongo. As suas características técnicas não lhes permitiam, no entanto, a eficácia dos carros de combate ligeiros M5A1. Se bem entendi a questão, a referência aos Sherman prende-se com as próprias designações dos carros de combate americanos: o Sherman é um carro de combate médio e a sua designação oficial é M-4. O tanque ligeiro M5 era uma evolução directa do M3 (todos estes carros de combate foram empregues pelo exército americano na Segunda Guerra Mundial).
As EBR do esquadrão de Luanda (cerca de vinte unidades) não conseguiam manobrar nas picadas mais estreitas e muito menos entrar capim fora em perseguição do inimigo. Desde logo, as próprias dimensões da EBR constituíam um problema: sete metros de comprimento, para além de um longo canhão de 75mm que batia nas árvores. Além disso, a viatura não dispunha de lagartas e a falta de aderência TT (todo o terreno) tornava-se óbvia: tal como todas as outras viaturas de rodas, as EBR também ficavam atascadas na picada.
Escrevendo sobre esta aventura - a dos carros de combate em África - não posso deixar de recordar, quando chegámos a Luanda, as pequenas picardias entre o pessoal das guarnições das Panhard EBR e os militares dos nossos carros de combate (CCS, B. Cav. 1927). Realmente, a princípio, os velhos tanques de guerra foram um motivo de riso. Depois, na picada, bem demonstraram as suas capacidades. Sublinho este facto porque sinto algum orgulho: o carro de combate M5A1 foi o único blindado na guerra do Ultramar que, por meio de fogo e movimento, obrigou o inimigo a abandonar os abrigos e posições de emboscada e proceder a uma rápida retirada (de tal forma que passaram a evitar o contacto caso detectassem a presença dos blindados na coluna).
Rui Elias
Vou tentar enviar algumas fotos. Está em construção um site dedicado ao historial dos carros de combate em Angola. Nesse espaço estarão disponíveis dezenas de fotografias dos M5A1 em Nambuangongo e Zala, bem como testemunhos, documentos oficiais e excertos dos únicos filmes existentes sobre a actuação dos CC em África, bem como a preparação e treino do Batalhão e embarque dos carros em Alcântara. Confirmo (e lamento): o Coronel Maçanita morreu há cerca de um mês.
TOMKAT
Todos aqueles que serviram sob a nossa bandeira estarão por certo de acordo consigo. Trinta anos é tempo suficiente. Como oficial do exército, só posso dizer que o soldado português foi (e acredito que será sempre) o melhor soldado do Mundo - não só pelas suas evidentes qualidades militares como também pela capacidade de adaptação, contacto com as populações locais e criatividade demonstrada nos diferentes cenários de operações (incluindo bases perdidas no meio da selva, autênticos «buracos» sem o mínimo de enquadramento logístico ou possibilidade de apoio).
Entretanto, passados os anos, o esforço e a notável acção das NT foi já motivo de análise de muitos estudiosos e especialistas. A título de exemplo, refiro o livro «Contra-Insurreição em África», de John P. Cann (Oficial da Marinha dos Estados Unidos e depois doutorado em Estudos de Guerra na Universidade de Londres). Neste trabalho, editado nos EUA e em Portugal (Edições Atena), o autor, após uma meticulosa análise da situação nas três frentes de guerra (Angola, Moçambique e Guiné) chega à conclusão de que foi o exército português o único capaz de suster e mesmo vencer a acção da guerrilha - caso singular na história moderna dos conflitos. Embora norte-americano, o autor não deixa de fazer constantes comparações entre a guerra no Vietname e a guerra em África (conhecimento do terreno, uso de helicópteros, contacto com as populações, organização das unidades, etc), concluindo sempre no elogio absoluto ao modo de acção das nossas Forças Armadas.
dremanu
Tem inteira razão, a maior parte dos portugueses têm familiares que participaram na guerra do Ultramar. Goa - a «Jóia da Coroa» - foi um mais um caso: cinco séculos de História comum. Como tenente, vinte e poucos anos, ali aprendi a comandar homens (a «prática» efectiva no comando de soldados não se aprende na Academia Militar). Recordo as auto-metralhadoras Humber que equipavam os nossos pelotões de reconhecimento, recordo os soldados africanos (mobilizados em Moçambique) e recordo para sempre (nunca esquecerei) o hastear da bandeira e o toque de alvorecer - ali, nos confins do território, a poucos quilómetros dos tanques AMX13 e jactos da União Indiana. A comissão terminou quatro meses antes da invasão e o mesmo paquete «Índia» que me levou de regresso a Lisboa trouxe as últimas tropas destacadas e que depois acabaram por ficar lá ficar, como prisioneiros de guerra.
Papatango
O modo de acção dos CC teve origem na doutrina clássica: intervenção potente e imediata, através da acção de fogo e movimento - naturalmente, com as devidas adaptações ao meio, terreno e inimigo. Os M5A1 estavam equipados com uma peça 37mm e duas metralhadoras Browning 7,62 com fitas de 225 cartuchos (uma tracejante em cada 4). Uma terceira Browning, colocada na frente do carro, era menos usada. Este poder de fogo revelou-se suficiente em situações de emboscada.
Seria realmente difícil usar os carros de combate em escoltas contínuas e prolongadas - esse papel adequava-se mais às auto-metralhadoras. Na guerra «clássica», os carros eram levados para a frente de combate em zorras, de modo a poupar as lagartas e o combustível.
No Norte de Angola, em 1967 e 68, as zonas mais sensíveis eram o eixo Nambu-Beira Baixa (a 30 km, em direcção a Luanda) e Nambu-Fazenda Madureira, (a 20 km, direcção Zala.) Os CC realizaram missões de escolta às colunas de MVL (Movimentos de Viaturas Logísticos) e, quando emboscados, ripostaram de imediato e perseguiram mato adentro os grupos de elementos IN. Não houve uma única baixa nas NT nestas acções (como, aliás, em todas em que os CC estiveram presentes).
Entre outras capacidades e sucessos dos M5A1, relembro o sucedido com uma coluna MVL (mais de meia centena de Scanias, Volvos e Unimogs) que se deslocava entre a Beira Baixa e Balacende: em consequência da chuva e da lama, um terço das viaturas ficou atascada na picada e lá permaneceram dois longos dias e noites. Feito o pedido, os M5A1 entraram em acção: em 3 horas todas as viaturas foram rebocadas e escoltadas até Balacende. O caso repetiu-se várias vezes até que os camionistas civis fizeram saber que só seguiam em colunas escoltadas pelos carros de combate. Verificou-se também, como antes referi, que o IN, após os primeiros confrontos, preferia não atacar as colunas protegidas pelos blindados. Recordo o depoimento do furriel José de Matos Bento. «Quando os carros de combate saíam, os soldados sentiam-se muito mais seguros. Eles até costumavam dizer: Hoje vão os carros de combate, então podemos ir à vontade... e assim aconteceu sempre».
Quanto ao consumo de combustível, é verdade que os CC não eram muito modestos. Neste caso, tratava-se apenas de tanques ligeiros, mas é um facto que os carros de combate são, por concepção e uso, as armas de Cavalaria por excelência e as suas capacidades superam fortemente os custos. Este facto foi dramaticamente sentido pelos exércitos aliados que combateram na Europa no final da Segunda Guerra Mundial: os últimos Panzer alemães (que consumiam quantidades impensáveis de combustível) eram meios temíveis, existindo relatos de um único CC ter destruído vinte blindados americanos antes de ser finalmente atingido.
Regressando aos CC do exército português em Angola, o principal eixo de acção no Norte era o de Luanda-Caxito-Balacende-Beira Baixa-Nambuangongo. Em todas estas bases existiam quartéis com reservas de gasóleo, gasolina normal e de 80 octanas para as EBR, M5A1 e GMC (grandes camiões do exército americano, ainda em uso - quando carregadas gastavam 70 litros aos 100km). O abastecimento correu sempre bem, nunca faltou gasolina nem foi necessário qualquer procedimento especial de logística para aguentar os carros. Também só escoltavam o percurso mais perigoso, menos de metade do total. Só uma vez foram a Luanda para mudar motores.
Quanto à manutenção dos CC, o aspecto mais complicado foi a substituição das rodas de apoio (revestidas de borracha maciça) e as lagartas que se gastavam como pneus de automóvel (ficámos sem o nosso stock de reserva porque nunca imaginámos que os M5A1 andassem tanto). Para dar uma ideia dos trajectos percorridos refiro a estimativa da quilometragem realizada durante o primeiro ano: 30.000km (!) no conjunto dos três carros. Como refiro no meu livro, a distância percorrida pelos M5A1 em Angola foi superior à realizada pelo conjunto de todos os carros de combate então existentes em Portugal - acresce a este facto que os CC na Metrópole só participavam em exercícios e desfiles, ao contrário dos M5A1 que actuavam na guerra e nas condições mais difíceis (picada, lama, pó, emboscada).
Sobre o armamento dos movimentos nacionalistas, não posso deixar de concordar que o RPG-7 foi uma arma poderosa, muito utilizada na Guiné e em Moçambique. Felizmente para os militares dos nossos CC em Angola, a FNLA não parecia dispor desses meios à época. O efeito da arma podia ser letal para qualquer blindado e recordo uma Chaimite destruída por uma granada de RPG-7 na Guiné, entre Bafatá e Nova Lamego, em Março de 1974. Entretanto, esta Chaimite estava parada na picada quando foi atingida e a granada entrou perpendicularmente por detrás da roda da frente (local de blindagem mínima da viatura). Os carros de combate M5A1, por instruções e experiência própria, nunca estavam parados: avançavam sobre o inimigo ou ultrapassavam a coluna através do capim de forma a localizar o ataque. Ainda hoje tenho dúvidas quanto à coragem necessária a um lançamento eficaz de RPG-7 sobre um carro de combate: os CC dispunham de razoável poder de fogo e movimentavam-se com grande facilidade e «ronco» na picada (barulho dos motores, blindagem, nuvem de poeira, efeito psicológico, etc) e não seria fácil apontar uma destas armas - se por acaso o apontador falhasse o lançamento, não teria certamente uma segunda oportunidade.
Volto de novo às condições específicas da guerra em África. Nas emboscadas, no primeiro instante, todos se deitavam para o chão e só a reacção imediata dos valorosos apontadores das metralhadoras das Berliet, dos lançadores de dilagrama e guarnições de morteiro de 60 podia evitar o assalto, as baixas e os incêndios nas viaturas. No entanto, esta era sempre uma postura defensiva. Os grupos IN estavam protegidos em abrigos cavados a 10/20 metros da picada e só retiravam quando atingidos pelos impactos de dilagrama ou pelas granadas de morteiro (e, no meio do mato, era difícil acertar no alvo com estas armas). Com a actuação dos M5A1, o inimigo passou a ser desalojado, alvejado e perseguido. E a emboscada deixou de ser um risco apenas para as NT - pela primeira vez, constituiu também um risco para os atacantes. As torres nas Berliet seriam sempre úteis, evitavam o assalto do inimigo para capturar armas, incendiar viaturas. Mas não os desalojavam das suas posições.
Logo que possível, terei todo o prazer em indicar o endereço do site dedicado ao livro, DVD e historial dos carros de combate M5A1 em Angola.
É sempre com emoção que recordo a dedicação, esforço, sacrifício e coragem dos nossos soldados. São memórias que acompanham os tempos, nos dias de ontem e de hoje - como voltei a sentir ao ler a mensagem de Jorge Pereira e um certo «orgulho de ser português».
A todos agradeço as palavras de estímulo e consideração que me dedicaram.