Falhanço da imaginaçãoNuno Félix
Ex-Operações Especiais, ex-Consultor Wikistrat e comentador do @MriyaReport no Twitter
Na última sexta feira, dia 23, o grupo Wagner encetou o que se poderá considerar, na melhor das hipóteses, um motim e, na pior, uma tentativa de golpe contra o poder instituído na Rússia. Vladimir Putin não foi, aparentemente, o alvo principal desta acção. Esses seriam o ministro da Defesa, Sergey Shoigu, e o Comandante do Estado Maior russo, Valery Gerasimov. O próprio Prigozhin assim o disse e salientou.
Esta competição dentro da “vertical de poder” russo já data de algum tempo e tem vindo a acentuar-se com o progredir da guerra na Ucrânia, onde a Wagner teve um papel relevante como uma força organizada e capaz, pese embora os métodos brutais e os múltiplos crimes de guerra cometidos. As necessidades da guerra reforçaram os meios desta PMC (private militar company) significativamente ao longo deste ano e meio. Aliás, há já algum tempo que Prigozhin não se coibia de criticar abertamente a liderança das Forças Armadas russas e do Ministério da Defesa, nas figuras dos seus mais altos responsáveis.
Quando o Ministério da Defesa russo decidiu que a Wagner tinha de ser incorporada nas Forças Armadas até 1 de Julho, num claro ataque à base de poder de Prigozhin, esta dinâmica de competição acelerou muito. Tendo percebido que Vladimir Putin apoiava esta opção, Prigozhin decidiu agir e, no dia 24, após um suposto ataque pelo exército russo a um campo da Wagner, no dia anterior, liderou elementos da Wagner até Rostov-on-Don, um centro logístico nevrálgico das operações na Ucrânia. Aí, ocupou o Quartel General do Distrito Militar Sul sem qualquer oposição. Seguidamente, colunas da Wagner foram em direcção a Voronezh.
Num discurso ao país, a 24 de Junho, Vladimir Putin foi bastante duro, qualificando as acções como “traição” e “motim armado” e dizendo que iria punir exemplarmente todos os que nelas participaram. As autoridades russas decretaram uma operação anti-terrorista em Moscovo, tendo movido forças para a capital, pois os comboios da Wagner estavam a caminho de Moscovo. Por umas horas, no dia 24 – enquanto a Força Aérea russa atacava a Wagner, via aeronaves abatidas e a Rosvgardia se preparava para, juntamente com unidades chechenas e o FSO para defender Moscovo –, parecia estarmos a viver um qualquer romance de Tom Clancy. Mais uma vez, a realidade lembrava-nos que os falhanços da imaginação existem.
Tudo isto teve, de repente, um desfecho anti-climático quando, Aleksander Lukashenko, presidente da Bielorússia, entrou em cena e, supostamente, mediou uma solução entre Putin e Prigozhin, tendo a Wagner regressado às bases em Rostov-on-Don. É complexo especular sobre os contornos exactos que levaram a este súbito volte-face. Mas, do que sabemos, alguns apoios que Prigozhin poderia contar não se materializaram, podem ter existido meios de pressão mais pessoais sobre figuras da estrutura de comando da Wagner e ainda o facto de Prigozhin ter atingido, eventualmente, alguns dos seus objectivos, nomeadamente garantir que a Wagner continuava a existir como Empresa Militar Privada (PMC, na sigla em inglês), mas agora na jurisdição da Bielorrússia. Isto porque o objectivo de substituir Shoigu e Gerasimov, claramente não foi atingido.
Sergey Shoigu conta com uma rede de patrocínios e apoios políticos de décadas, sobretudo nas repúblicas orientais, nas estruturas militares e é leal a Putin. Este dificilmente tem condições políticas para substitui-lo, para além de que iria parecer ter cedido a Prigozhin.
No esteio destes eventos, temos fracturas expostas em Moscovo, sendo a suposta detenção do general Sergey Surovikin, alinhado com a Wagner e aparentemente membro VIP em segredo, a primeira vítima de alto nível destes eventos. Mais se seguirão, até porque os Serviços de Informações ocidentais e ucranianos estão a fazer o seu trabalho de instigar e propagar a paranoia. Os “recibos” existem e virão a público, e a competição dentro das elites russas está a começar a ganhar massa critica. Se a fragilidade do regime russo não for aparente, não sei o que mais é preciso. E não, não foi nenhuma jogada estratégica extraordinária de Putin.
Tenhamos um plano caso algum dia a Rússia colapse, num processo de dissolução e guerra civil. E sei que, para muitos e muitas, vai parecer uma loucura e um cenário praticamente impossível, mas os falhanços da imaginação pagam-se caro. Os planos são como os preservativos e as armas de fogo, mais vale ter e não precisar do que precisar e não ter.
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