A intervenção russa na Síria
Alexandre Reis Rodrigues
Putin alega que está a intervir militarmente na Síria estritamente ao abrigo dos princípios consagrados na Carta das Nações Unidas, uma vez que está a responder a um pedido do respetivo governo legítimo no combate contra o terrorismo.
Porém, o momento em que decidiu avançar retira credibilidade a essa alegação. Ou já deveria ter iniciado esse apoio há muito tempo, antes de o país entrar numa situação que torna praticamente impossível o regresso ao que era anteriormente, ou então há outras razões que levaram, finalmente, Moscovo a intervir. Trata-se de uma guerra civil que dura há mais de quatro anos e da qual resultaram cerca de 310.000 mortos, 6,5 milhões de deslocados internos e mais de quatro milhões de deslocados externos, parte deles a tentar, em desespero de causa, adquirir o estatuto de refugiado. É uma catástrofe que está em curso há já quatro anos. Que facto novo terá desencadeado a decisão russa de intervir agora?
Assad poderá ser mantido mais algum tempo como Presidente do que resta da Síria, mas tem os seus dias contados. Na melhor das hipóteses ficaria como o líder do enclave alauita, onde vive a minoria síria que o tem mantido no poder e cuja sobrevivência está em causa. Importa tentar identificar o que terá levado Putin a ajudar Assad com uma intervenção militar direta, bastante depois de a situação ter chegado a um ponto em que a solução final não passará pela sua manutenção no poder.
O que pretenderá, afinal, Putin? Ajudar Assad a sobreviver ou ajudar a encontrar uma solução? Quer a Rússia, quer o Irão, isoladamente ou em estreita coordenação, se quisessem, já poderiam ter posto fim à disputa pressionando Assad a fazer as cedências necessárias para a formação de um governo de transição. Não é esse, porém, o sentido da intervenção em curso, quer na vertente dos raides aéreos russos, quer na ajuda iraniana com tropas no terreno. Exatamente ao contrário disso, é uma intervenção desenhada para dar condições a Assad a empreender uma contraofensiva e começar a recuperar um pouco do controlo perdido sobre 80 a 90% do país.
Já se concluiu, há bastante tempo, que o pior que poderia acontecer seria a queda abruta de Assad. Foi por absoluta falta de qualquer alternativa política sobre quem deve ser ajudado a tomar o seu lugar à frente dos destinos da Síria que o Presidente Obama abandonou a estratégia de forçar a sua saída. Mas uma coisa é garantir que Damasco não venha a cair abruptamente nas mãos do ISIS ou grupos ligados à al Qaeda, outra, bem diferente, é “dar uma mão” a Assad que o ajude a permanecer no poder lutando indiscriminadamente, quer contra as forças da oposição, quer contra o ISIS e outras frentes ligadas ao islamismo radical.
Os EUA têm-se empenhado em garantir o primeiro desfecho, mesmo contra a vontade dos seus principais aliados locais (Turquia e Arábia Saudita) que querem o afastamento imediato de Assad. Obama não quer pressionar Assad ao ponto de provocar a sua queda sem que exista uma solução de poder aceitável. Em especial, não quer ver repetida, na Síria, a desastrada experiência do desmantelamento do exército iraquiano e destruição das principais instituições do país, o que levou ao caos de que ainda hoje se sofrem consequências.
Com a intervenção em curso, embora apresentada como um combate ao ISIS – que também é -, Moscovo mostra-se apostado no segundo desfecho – reforçar a posição de Assad -, pelo menos para o curto prazo. Segundo alguma imprensa, geralmente menos lida, Moscovo poderá ter decidido intervir em função da análise da situação tática no terreno, a pender rapidamente para o lado das forças que se opõem a Assad, principalmente a partir do momento em que passaram a ter acesso à utilização dos mísseis “Tow” adquiridos pela Arábia Saudita aos EUA e/ou fornecidos por estes à oposição moderada, alguns dos quais terão caído nas mãos da frente al Nusra (Army of Conquest) ligada à al Qaeda. O aparecimento desta nova arma retira ao Exército Sírio a vantagem de blindados de que tem beneficiado, sendo, portanto, mais um revés. Aceita-se que este novo quadro possa ter ajudado a desencadear a intervenção militar. Pelo menos estará a ser um elemento determinante na forma como Moscovo está a conduzir a campanha aérea, tendo começado por dar prioridade aos ataques contra a frente al Nusra, que é, na sua avaliação, o que, de imediato, mais ameaça o regime de Assad.
Estamos, no entanto, a falar apenas do nível tático. Não é a esse nível que se situa a grande motivação para a intervenção russa. É ao nível estratégico e tem a ver, sobretudo, com a tentativa de readquirir o estatuto de uma potência sem a qual não haverá solução para o martirizado Médio Oriente. Falo de uma campanha que se vem desenvolvendo com maior dinâmica desde fevereiro deste ano quando Putin visitou o Cairo, na procura de apoios para uma solução de crise síria. E que depois se estendeu a Países do Golfo, numa tentativa do que alguns interpretaram, como de preparação para o pós-Assad. Não faltam sinais de que Moscovo admite a queda do presidente sírio mas apenas de acordo com o calendário de interesses russos e nunca com o calendário americano.
É neste ponto que se situará – na minha interpretação - o centro da disputa entre os EUA e a Rússia. Nenhum dos lados quer intervir decisivamente para a saída imediata de Assad pois isso arrastaria responsabilidades de intervenção com tropas no terreno, para ajudar a normalizar a situação. Mas ambos querem estar no controlo, quer do calendário da sua saída, quer das condições em que ocorrerá pois é daí que dependerá parte significativa do novo equilíbrio regional.
Jornal Defesa