O que é e o que vai fazer a Irmandade Muçulmana no Egipto?Alexandre Reis Rodrigues A Irmandade Muçulmana, que pode estar hoje bem mais perto de finalmente participar num futuro governo egípcio, tem uma história atribulada, com poucos anos de existência legal, no Egipto. Criada em 1928, como uma organização religiosa (da’wa) e um movimento social para prestar serviços de assistência, nunca seguiu o caminho linear e claro traçado inicialmente e que não previa actuar como um partido político.
Por mais do que uma vez enveredou por orientações não aprovadas pelo seu fundador (Hasan al-Banna), nomeadamente quando criou um “braço armado” secreto para lutar contra a ocupação estrangeira (do Reino Unido no Egipto e de Israel na Palestina) e mais tarde utilizou-o para assassinar um juiz que condenara um seu militante. Este último acto, em 1948, valeu-lhe a primeira ilegalização, ainda pelo regime monárquico, um ano antes de o seu fundador ser assassinado.
A segunda ilegalização veio em 1954, dois anos depois do golpe militar que derrubou a Monarquia (Free Officers Movement) quando um dos seus membros tentou assassinar Nasser, o líder da revolta, e este começou a vê-la como contrária à revolução levada a cabo pelos militares e decidida a impor a “sharia” no País. O facto de ter ajudado o Free Officers Movement a deitar abaixo a Monarquia de nada acabou por valer para a sua continuação como movimento autorizado.
Com Sadat, que sucedeu a Nasser em 1970, ganhou alguma liberdade de actuação como contrapartida da renúncia à violência que a organização fez por essa altura, mas não chegou a ser legalizada. Neste momento, encontra-se banida à luz da revisão constitucional de 2007 que não permite partidos com conotações ou bases religiosas.
A postura política e ideológica foi também evoluindo ao longo do tempo, mas a organização esteve sempre longe de ser um movimento monolítico, situação que permanece hoje e torna difícil a sua caracterização. Já na era ”Nasser” se verificavam duas correntes opostas, uma que defendia o radicalização, o jihadismo (liderada por Sayyid Qutb, um estranho que se tornou ideólogo e foi executado em 1966 sob a acusação de conspiração para derrubar o Governo), e a que optava por cautela (chefiada por Hasan al-Hudaybi).
Em 1984, contra o parecer de alguns dirigentes que receavam compromissos com outras forças políticas, a Irmandade começou a concorrer a eleições (sindicatos, Parlamento, etc.) inicialmente com os seus membros na qualidade de jovens parceiros dos Partidos legalizados e depois como independentes (nas eleições de 2005 obteve 88 lugares). Esta situação repercutiu-se internamente através de pressões internas para reformas, a partir de 1990, o que, mais tarde, em 1996, deu origem a divisões. É nesta altura que emana da organização o Central Party, cujos lideres depois, entre 2004 e 2005, ajudam a criar o “Movement for Change”, agora de algum modo renascido pelas movimentações de protesto na Praça Tahrir.
A diversidade interna parece ser sobretudo o resultado do confronto entre duas gerações: a dos jovens (reformistas) que pretendem ver a Irmandade evoluir para um movimento islamita moderado, eventualmente do género do Partido AKP da Turquia (Turkey’s Justice and Development Party que se encontra no poder) e a dos conservadores que não se mostram disponíveis para fazer concessões. Alguns analistas reconhecem uma tendência intermédia, a que se poderia dar o nome de “conservadores pragmáticos” e que inclui os membros com experiência parlamentar.
Não é claro, no entanto, com que flexibilidade - se alguma - estas facções encaram a posição tradicional de recusa de apoio ao Acordo de Paz que o Egipto fez com Israel em 1975, em Camp David. Muito embora, no seu conjunto, a Irmandade Muçulmana procure seguir uma estratégia que permita a sua participação no processo político de abertura em que se espera o Egipto possa agora entrar e pareça prevalecer a corrente pragmática, os mais conhecedores do seu funcionamento apontam ambiguidades e falta de transparência.
Só duas coisas parecem claras de momento, segundo as declarações mais recentes dos seus líderes: se chegarem ao poder farão um referendo sobre os Acordos de Paz e não negociarão com o Governo enquanto Mubarak não se retirar da cena política. Vejamos estas duas eventualidades.
A hipótese de um referendo não se põe no curto prazo por dois motivos. Em primeiro lugar, porque as Forças Armadas, muito dependentes da assistência dos EUA, não o permitiriam. Em segundo lugar, porque a hipótese de chegarem ao poder em condições de impor essa decisão é remota; a sua base de apoio, presentemente à volta de 20% e em declínio (
The Economist, 5 February 2011), é insuficiente para subirem isoladamente ao poder, objectivo que, aliás, a actual liderança recusa. Mal grado o elevado número de membros (300.000) e a influente rede de instituições que gere um pouco por todo o País (hospitais, escolas, bancos, negócios, fundações, etc.) a Irmandade Muçulmana está longe de ser consensual e de ser capaz de se ocupar sozinha, sem a concorrência de outras organizações, dos assuntos religiosos. Em qualquer caso, com ou sem referendo à vista sobre o Acordo de Paz com Israel, o tempo do Egipto como aliado fiel dos EUA já pertence à história.
A recusa de negociar antes que Mubarak se demita pode ser, de momento, um dos principais obstáculos à procura de um entendimento para saída da crise. O Presidente, para já, mostra-se determinado em ficar («I am a military man and it is not my nature to abandon my duties»), no que pode estar a ser ajudado pela evolução da situação, com os manifestantes a começar a dar sinais de cansaço, como aliás Mubarak previa. Mas a qualquer momento a situação pode mudar; não é possível prever. O que parece incontornável, em qualquer caso, é que como dizia Ed Husain, do Council on Foreign Relations, sem a participação da Irmandade Muçulmana não haverá legitimidade no que quer que aconteça daqui para a frente no Egipto.
Jornal Defesa