Isto é um artigo escrito para o DN numa série de fascículos chamados "Portugal e os Conflitos Internacionais".
Os Planos de Defesa de Portugal Continental
António José Telo
Em meados dos anos trinta toda a política militar portuguesa é revista, perante o agravar das rivalidades europeias, que acabará por desembocar numa nova guerra geral. A grande preocupação para Portugal é a situação na vizinha Espanha, onde vigora um regime republicano democrático, mas numa situação instável de um país á beira da guerra civil.
Um conjunto de reuniões de Conselho de Ministros que preparam a revisão política militar mostram que se temem vários cenários, desde uma invasão em força da Espanha, até acções de grupos armados na fronteira, ou acções da oposição portuguesa a partir do país vizinho. No caso de uma invasão em força, espera-se o apoio da Inglaterra, mas é sabido que o primeiro embate terá que ser aguentado por Portugal sozinho. Existe, igualmente a preocupação de aumentar a capacidade de defesa, de modo a interferir nos assuntos internos da vizinha Espanha, especialmente no caso de um golpe de estado, como viria a acontecer.
Estes cenários e receios levam a que se aprove em 1935/36 um dos mais ambiciosos programas de rearmamento terrestre que Portugal conheceu. Este visa obter a curto prazo uma força de cerca de duas divisões, que assegura a defesa da fronteira contra pequenos grupos; numa segunda fase, uma força de cerca de cinco divisões, que permite uma defesa da zona de Lisboa durante um período limitado contra uma invasão em força; numa terceira fase, uma força de 15 divisões (5 de segunda linha), que permite uma defesa do país com um mínimo de apoio externo, ou mesmo sem ele.
Tudo devia ser acompanhado do crescimento da aeronáutica do Exército, vocacionada para o apoio táctico e a defesa aérea. Os planos navais que estavam a ser executados desde 1930, são abandonados e não mais serão retomados. Há assim defesa essencialmente naval e apoiada na aliança inglesa, para outro que visa criar uma capacidade efectiva de defesa da fronteira terrestre e de intervenção na vizinha Espanha, com apoios mínimos. Por detrás da mudança estão preocupações com a evolução da Europa e o futuro do regime.
A guerra civil de Espanha provoca um afastamento em relação á Inglaterra, o que atrasa o programa de rearmamento. Este avança mais lentamente do que se esperava e com apoio fundamentalmente alemão a partir de 1937. São técnicos alemães que reorganizam a indústria de defesa portuguesa e é essa a origem da maior parte do armamento.
Em 1940, só há armamento e equipamento modernos para uma única divisão e, mesmo assim, em condições muito deficientes. Um relatório do Major-General do Exército dessa data, chega á conclusão que as forças existentes só se podem manter em operações durante cerca de 4 dias e são incapazes de criar um dispositivo de defesa da metrópole minimamente eficaz, isto depois de 5 anos de rearmamento.
É justamente a partir de 1940 que o perigo de uma invasão se torna real. Com o colapso da França, as forças alemãs chegam aos Pirinéus e pressionam a Espanha para entrar na guerra, mediante um ataque a Gibraltar, conjugado com a ocupação do Norte de África francês, de Cabo Verde e, possivelmente, da Madeira. Os planos recebem o nome de código de “Félix”. Prevêem que duas divisões blindadas e uma motorizada alemã se situem na Zona de Cárceres-Badajoz e na Andaluzia, de modo a fazer um avanço fulgurante sobre Lisboa em caso de necessidade.
Portugal desconhece o plano “Félix”, mas prepara a defesa a partir de 1940. Uma mobilização parcial faz passar os efectivos do Exército de 32.594 homens, em fins de 1939, para mais de 116.000, em fins de 1942. Com o aumento é possível enviar uma importante força expedicionária para os Açores (26.500 homens) e outras menores para Cabo Verde (6.690 homens), Madeira (3.940 homens) e o Império (19.170 homens). A Aeronáutica segue quase toda para os Açores.
O Estado-Maior continua a considerar que o continente não tem defesa possível em caso de invasão. Continuam, no entanto a ser feitos planos, sobretudo para estabelecer alvos de curto prazo para o rearmamento em curso e para testar a boa vontade inglesa. A Inglaterra sabe que qualquer força própria que destaque para a defesa de Portugal seria sacrificada inutilmente pelo que os únicos planos reais que desenvolve, dizem respeito à ocupação das ilhas atlânticas em caso de crise e à ocupação dos corredores de passagem em Moçambique e Angola (em conjugação com a África do Sul e a Rodésia). Isto não a impede de aceitar pensar em planos conjuntos para a defesa do continente, mais como forma de manter os laços de colaboração e conseguir informações e contactos que outra coisa.
Os contactos de Estado-Maior entre os dois países recomeçam em Fevereiro de 1941, no seguimento dos planos elaborados antes da guerra com uma missão militar inglesa para a defesa de Lisboa. A Inglaterra concorda com a posição portuguesa de que só Lisboa é defensável, tendo o resto do país de ser abandonado. Concorda igualmente com o traçado geral das três linhas de defesa propostas pelos portugueses, embora seja evidente que não existem forças para assegurar a sua guarnição de forma efectiva. Portugal pede que a Inglaterra desloque 6 a 8 divisões e duas brigadas blindadas para concretizar os planos propostos. Isto é muito mais do que as forças britânicas no Mediterrâneo, e não havia forças disponíveis, mesmo que Londres as pretendesse deslocar. Os ingleses não dizem abertamente que não. Limitam-se a afirmar que só se deve contar com um efectivo considerável cerca de 20 dias depois das primeiras unidades partirem de Inglaterra, ou seja, qualquer coisa como um mês depois da invasão. Isto impede por si só qualquer esquem de defesa, pois as unidades motorizadas alemãs ocupariam Lisboa em menos de um mês.
Em Maio de 1941, a Inglaterra reconhece esta realidade e recomenda que o Governo se retire para os Açores em caso de ataque. No continente só se devia aplicar um plano de destruições de tudo o que pudesse ser útil ao agressor. É esta a perspectiva oficial até meados de 1943, quando já se consolidou a presença aliada no Norte de África e a relação de forças é muito diferente.
Nessa altura, a Inglaterra pede oficialmente a cedência de bases nos Açores, o que é aceite rapidamente. As negociações que então recomeçam incluem a preparação de um novo plano de defesa de Portugal. A posição inglesa é que prepara o plano, mas não assume um compromisso firme para a sua execução em caso de ataque, pois não faz parte da sua estratégia desviar forças para a Península.
O plano final só está pronto em Outubro de 1943 (PRO A.P.P. 43-2-4). Mais uma vez se parte da hipótese de que se devem concentrar as forças na defesa de Lisboa-Setúbal, prevendo-se agora a formação de duas linhas. Uma força menor opera no Norte do país, de acordo com a situação concreta.
Na zona de Lisboa, concentra-se o corpo de Exércitos português com as três divisões que é possível formar nesta altura e um corpo britânico de uma divisão blindada e duas de infantaria, que só está completo 48 dias depois do dia Z (começo da execução do plano). Na zona do Porto e norte, opera uma força muito menor, formada por: da parte portugesa, um grupo de artilharia de montanha, um batalhão de infantaria e outro de metralhadoras; da parte britânica, uma brigada de infantaria que só chega em Z+29. O objectivo das forças do Norte é tentar a defesa do Porto.
No Sul estão mais de 80% das forças conjuntas. As divisões portuguesas estão concentradas em Constância, Santarém e Montemor. A preocupação é cobrir os dois eixos tradicionais de invasão de Portugal, respectivamente a sul e a norte do Tejo. Na fronteira só ficam as unidades de cavalaria, engenharia e anti-tanques, para atrasarem o avanço inimigo. Só devem tentar alguma resistência à volta dos cruzamentos de estradas, como Mourão, Elvas, Santa Eulália, Arronches, Portalegre e Castelo de Vide, mas devem retirar perante um ataque em força. As pontes, caminhos-de-ferro e depósitos devem ser sistematicamente destruídos.
O apoio inglês faz-se sentir na primeira fase da batalha só em termos de grupos de demolição, de unidades aéreas e de ataques aos portos e navegação espanhola. A primeira áerea geral de concentração das forças de cobertura é formada pela linha geral Estrmoz-Vendas Novas e Alpalhão-Abrantes. A divisão C em Abrantes deve reforçar o flanco mais ameaçado.
Se as operações iniciais das forças portuguesas forem bem sucedidas, as primeiras unidades britânicas devem começar a desembarcar em Setúbal a partir de Z+15. A força inicial é formada por grupos de engenharia, um regimento blindado e uma brigada de infantaria, e fica sob as ordens do Estado-Maior português. O grosso das três divisões britânicas só chega depois de Z+48, sendo a sua utilização a estudar de acordo com a situação. Não fica claro quem comandará as forças alidas na fase final.
A RAF toma a seu cargo desde o primeiro momento a defesa aérea nocturna de Lisboa e do Porto e o reforço da defesa aérea diurna. Deve igualmente atacar os portos e pontos de concentração em Espanha a partir de bases na Inglaterra e no Norte de África.
Estes planos servem de base ás grandes manobras de Outubro de 1943, quando se mobiliza uma força de três divisões e se fazem exercícios de defesa civil em Lisboa, na altura em que a Inglaterra ocupa as Lajes. O plano de Outubro de 1943, apesar de nunca ter sido encarado a sério pela Inglaterra, teve um efeito muito real. Foi ele que serviu de base ao rearmamento potuguês posterior a 1943, a “fase inglesa” do rearmamento, que beneficiou sobretudo a Aeronáutica e o Exército. Em 1945, há já a possibilidade de armar quase por completo três divisões de infantaria e um batalhão de carros e, de forma incompleta, mais duas divisões. A Aeronáutica tinha-se transformado numa força considerável, com cerca de 13 esquadrilhas de Hurricanes II e Spitfire V.
Foi igualmente este plano que orientou todo o pensamento de defesa português no pós-guerra, quando se aposta na aproximação à Inglaterra, encarada ainda como um dos três grandes. Na perspectiva portuguesa devia ser à sua volta que renascia a Europa tradicional, ligada a África e distante da URSS e dos EUA.
Ainda em 1947, Portugal propõe à Inglaterra a revisão do plano de 1943, acompanhado por um novo programa de rearmamento, que visa aumentar o Exército para 15 divisões.
A resposta negativa britânica provoca uma nova inversão na política militar portuguesa. A partir de 1947, aceita-se a ideia de que Portugal só se pode defender nos Pirinéus, o que implica uma aproximação à Espanha e aos EUA. É a transição para uma nova fase política e militar.
Os pouco conhecidos planos de defesa do continente durante a 2ª Guerra desempenham pois um papel muito real e efectivo, apesar de nunca terem sido executados.