Egipto. O que está à vista? Mudança de liderança ou de regime? (Actualização 3)
Alexandre Reis Rodrigues
Em muitos espíritos continuam as dúvidas sobre se o que está a acontecer no Egipto é causa de preocupação ou de contentamento. Na verdade, tanto pode ser uma coisa como outra; ninguém sabe. Tudo depende de como vai evoluir a situação, presentemente envolvida numa extrema incerteza e alternando entre períodos em que os protestos parecem estar a consolidar-se e alargar-se a outras zonas do país e outras ocasiões em que a estratégia do Governo parece estar a resultar.
Já aqui falamos da opção do Governo em tentar dividir a oposição e jogar com o tempo para cansar os manifestantes - hoje no décimo sétimo dia de protestos - sem, no entanto, ir para o confronto directo, o que motivaria uma séria condenação internacional do regime. O objectivo será “aguentar” Mubarak até ter uma solução para a sua saída airosa e, entretanto, evitar o caos. O problema é que será preciso, em troca, fazer algumas concessões à oposição.
A reunião entre o Vice-Presidente e os representantes convocados pelo Governo, no dia seis de Fevereiro, em que foram retomadas promessas feitas pelo Presidente, foi um primeiro passo no sentido de dar algo em troca e de algum modo um sucesso; conseguiu trazer para a mesa a Irmandade Muçulmana, que anteriormente se declarava indisponível para negociar antes da saída de Mubarack.
Uma próxima reunião - se realizável - será certamente bem mais difícil; em especial se as desconfianças de que o Governo faz manipulações se acentuarem; el Baradei, por exemplo, aceite pela oposição como representante, não foi convidado. Pior, não houve qualquer representação dos jovens, a quem a oposição deve grande parte dos protestos iniciais. A forma como Suleiman tentou corrigir à posteriori este segundo erro é revelador da táctica pouco “limpa” do Governo; reuniu-se depois com um grupo de jovens de um movimento de que anteriormente ninguém tinha ouvido falar (Movimento 25 de Janeiro) e que saiu da reunião a concordar com a ideia de Mubarak continuar. O Movimento Seis de Abril, que de facto existe e esteve por detrás dos protestos, já reagiu com a acusação de que o outro não tem qualquer representatividade (O Movimento Seis de Abril começou em 2008 através do Facebook e rapidamente agregou 70000 participantes; Ahmad Maher, co-fundador do Movimento, foi preso pouco depois).
Que pode o Governo oferecer mais à oposição? A hipótese mais falada, de momento, passou a ser a da utilização do pretexto da necessidade periódica de Mubarak deslocar-se para tratamento numa clínica alemã; uma vez fora, seria fácil arranjar argumentação para não voltar. A possível ida para uma residência que tem em Sharm-el-sheik deixou, entretanto, de ser referida. A sua eventual colocação fora da gestão corrente dos assuntos do País, restringindo-o a uma função meramente “decorativa”, opção proposta por um grupo de “Wise Men” que participou também na reunião de seis de Fevereiro, foi rejeitada.
Este tema leva-nos directamente para a questão central de saber se pode o Egipto iniciar algum processo sério de transição continuando Mubarack no poder. A administração americana pareceu inicialmente acreditar que não era possível, quando Obama referiu que o processo devia começar já; embora nunca tenha sido explícito sobre o destino de Mubarack, ficou o entendimento de que se pretendia a sua saída. De momento, já não é assim; veio a clarificação de que o processo de mudança deve ser conduzido por Mubarack. Talvez tenha sido isso o que acabou por recomendar o enviado especial do Presidente Obama depois de se encontrar com Mubarack. Um mau sinal: indica que os EUA vão a reboque dos acontecimentos, sem uma estratégia própria.
Quem decide, no entanto, serão os militares, aliás, como tem sido habitual. O Egipto, mal grado outras aparências, tem funcionado como uma ditadura militar desde 1952, data do golpe do então coronel Nasser. Presentemente, metade do Governo, incluindo o topo (Presidente, Vice-Presidente, 1º Ministro e ministro da Defesa) é composta por ex-militares; 80% dos governadores espalhados por todo o País vieram também das fileiras das Forças Armadas. Poderá um Governo deste tipo conduzir um processo de liberalização, quando a crise por que o País está a passar parece estar a ser aproveitada para ajustar contas com a elite empresarial que Gamal Mubarack, filho do presidente, liderava?
Há muitas tensões à volta desta luta de interesses; o peso que o Exército tem na economia do País não é obviamente estranho a isso. Não obstante a opacidade que rodeia todos os assuntos militares, alguns observadores não hesitam em situar esse peso entre 30 e 45% da economia; outros, avaliam-no entre os 10 e 15%. Ao certo só se sabe que o Ministry of Military Production emprega 400.000 civis, gere 16 fábricas e produz muitos bens que não têm natureza militar: água engarrafada, azeite, extintores, computadores, cimento, etc.
Naturalmente, as Forças Armadas negam esta situação; dizem que 85% da economia está privatizada. É verdade que Sadat deu passos concretos para abertura da economia, depois de duas décadas de socialismo. Mubarack também introduziu alguma liberalização mas o sector do Estado continua com um peso grande. Gamal, ao liderar uma corrente de maior abertura, colocou-se em rota de colisão com os interesses da Velha Guarda militar, nada disponível para alterar o statuo quo. O resultado está à vista: foi demitido, juntamente com o seu círculo próximo, da liderança do Partido Nacional Democrático, de que Mubarak continua a ser presidente. De nada lhe valeu o estatuto que o pai lhe foi construindo e cujo esperado desfecho, há pouco mais de um mês atrás, ainda era a sucessão na Presidência do País.
Que se pode esperar desta situação? Uma mudança drástica do regime, como está implícito nas pressões que a administração americana e a UE têm feito, é muito pouco provável. Quando muito apenas o indispensável para desmobilizar os protestos.
Jornal Defesa