ENTREVISTAS EM TORNO DO 25 DE ABRIL: Alpoim Calvão
Alpoim Calvão nasceu em Chaves, viveu em Moçambique, frequentou a Escola Naval,
fez o curso da Marinha e esteve várias vezes na frente de combate, na guerra de África.
Foi um dos oficiais mais condecorados das Forças Armadas, distinguindo-se em Novembro
de 1971 quando conduziu a invasão- fracassada- da Guiné-Conakry.
ENTREVISTA COM ALPOIM CALVÃO
PÚBLICO- Quando é que ouviu falar pela primeira vez do 25 de Abril?
ALPOIM CALVÃO- Quando fui convidado a participar no movimento pelo então
comandante Pinheiro de Azevedo.
P- Quando foi isso?
R- Umas 6 ou 7 semanas antes do 25 de Abril.
P- Aceitou?
R- Não, não aceitei. Ele falou-me (diante de alguém que pode testemunhar
esta conversa), num movimento que pretendia pôr fim ao regime anterior e
na necessidade de democratização. Fiz-lhe a única pergunta que para mim
era fulcral: "E o ultramar, como é?". Respondeu-me que era uma questão
de autodeterminações, achei que isso era vago e insisti. Claro que eu
achava que as democracias são os menos maus dos regimes mas queria
garantias sobre o ultramar. Como ele não saísse das auto-determinações,
pedi-lhe para não contar comigo.
P- Conhecia bem Spínola, estivera com ele na Guiné. Nunca falaram do MFA?
R- Não.
P- Tinha lido o livro dele?
R- Li o "Portugal e o Futuro".
P- O que achara? Como lera o livro?
R- Era uma achega importante para o único problema que tínhamos que era
político. Era uma reflexão que toda a gente fazia: tendo as Forças Armadas
durante 13 anos dado um espaço de manobra para, na metrópole, se pensar
politicamente o problema e se tomarem iniciativas, a verdade é que ninguém
as tomava. Considerei o livro do general Spínola como uma forte contribuição
para explicar ao poder constituído, que havia outras soluções para além
daquele imobilismo. Todos percebíamos como eram frágeis os meandros do poder-
como aliás se confirma por esta correspondência entre Marcello Caetano e Salazar:
era complicada e frágil a teia de poder dentro da tão apregoada ditadura...
P- No dia 25 de Abril, quando viu os seus camaradas na televisão,
o que disse a si próprio?
R- Conhecia alguns: Spínola, Costa Gomes, o Bruno, o Garcia dos Santos que era
do meu curso. Mas vi ali gente que me deixou as maiores dúvidas. O Melo Antunes,
por exemplo. Eu sabia- pela convivência que com ele tivera quando frequentámos
ambos a Escola do Exército-, que era um homem de raiz marxista, o que aliás
nunca escondeu. Pela maneira como o dia decorreu, percebi que se abrira a Caixa
de Pandora e que todos aqueles homens estavam embriagados com a possibilidade
de serem pequenos Che Guevarazinhos. Depois, todo o processo revolucionário
andou durante meses aos solavancos e encontrões, ao sabor do acontecimento do dia...
O que evidentemente impediu qualquer acção- por parte das forças que se agruparam
atrás de Spínola-, de se pôr em prática o programa inicial do MFA.
P- Mas naquele contexto e quarenta anos depois de Salazar, não era fatal
que o sinal da revolução fosse à esquerda?
R- Na época era fatal, senão chamar-se-ia contra-revolução. Esse romantismo
revolucionário que achava que só é legítima a libertação dos povos pela força
das armas... Toda a génese dos movimentos independentistas das ex-colónias
veio desse conceito global da liberdade pela luta armada. Razão pela qual eu,
concordando com a necessidade do Movimento do MFA, dissera a Pinheiro de
Azevedo que se deveria tomar o poder mas endurecer ainda mais as condições.
É que havia uma clivagem entre quem estava em África e o ar da Metrópole...
Custava a quem combatia lá, ver aqui uma certa euforia, um certo laxismo...
P- Então o que teria advogado?
R- Nos primeiros seis meses redobrar-se-iam os esforços de guerra onde havia
guerra, Guiné, Angola, Moçambique. Depois, anunciar-se-ia ao mundo que iríamos
dar a autonomia a Cabo Verde e S. Tomé- às outras não, porque se estava em guerra.
Uma autonomia passando pela autodeterminação que escolhecem: com Portugal, ou
associados a Portugal ou independentes de nós. Isto ter-nos-ia dado uma força
negocial muito maior e tiraria a razão aos movimentos que nos combatiam pelas armas.
Nunca ninguém fizera tentativas de diálogo para obter, de outra maneira,
independências ou auto-determinações, começou-se logo a luta armada...
P- Voltando a Portugal: qual foi a sua quota parte no 28 de Setembro?
R- O 28 de Setembro foi organizado por pessoas ligadas ao general Spínola e foi uma
última tentativa para lhe dar uma demonstração de apoio cívico, na ideia de que ele
poderia reconduzir uma vez mais o PREC aos princípios ditados e aceites pelo povo, no
dia 25 de Abril.
P- O general Spínola estava desesperado? Ou desnorteado?
R- Ele nunca pediu aquela mobilização que nós pretendíamos. Mas em múltiplas conversas
contou as suas imensas preocupações sobre a velocidade com que tudo lhe escapava das mãos,
com que as pessoas mudavam de opinião; a velocidade com que, por exemplo, Costa Gomes,
em 25 de Agosto de 74, lhe tirara o tapete dos pés. E sobre a tristeza e o desgosto com
que fora obrigado a fazer um discurso sobre a independência de Moçambique, porque
Costa Gomes lhe anunciou que haveria 150 companhias que se renderiam se ele, Spínola,
não anunciasse imediatamente o fim das hostilidades.
P- ... mas porque é que ele não denunciou as pressões de que era alvo, não se opôs a elas?
R- Mas ele tentou opôr-se de todas as maneiras! Repare que para se poder manifestar tinha
que dar ordens a alguém mas esse alguém nunca cumpria essas ordens...
P- Quem era esse "alguém"? Costa Gomes?
R- Sim, o chefe do Estado Maior das Forças Armadas... A clivagem começou logo aí.
P- Mas o 28 de Setembro foi um fracasso rotundo...
R- O partido comunista mobilizou-se totalmente, ergueu barreiras, etc. Lembro-me de as
passar de pistola na mão para poder ir a Belém! Sei- por interposta pessoa, visto que
lá não estive-, que numa reunião que houve nessa noite em Belém, o general Neto deu
uma bofetada no Vasco Gonçalves, que este se queixou por o outro lhe ter batido,
mas que não passou disto... Não apareceu ninguém na manifestação, as pessoas tiveram
medo das barreiras, dos pregos no chão, etc. Os militares que haviam prometido
movimentar-se não o fizeram... E ficou tudo na mesma e o general Spínola ainda mais
isolado. Aliás nem no próprio Conselho de Estado ele teve apoio... O próprio professor
Freitas do Amaral que lhe tinha proposto redigir dois decretos, um para o estado de
emergência, outro para o estado de sítio, que eu saiba também não lhos redigiu...
P- É a partir daí que decidem partir para outra? Reagir, passando
para "formas superiores de luta"?
R- Por curioso que pareça, essa reacção inicia-se com um documento que tem o visto
do general Costa Gomes e de que eu tenho uma cópia (...). Está aqui, é um documento,
apoiado por uma série de oficiais, em que se descreve a situação, sublinhando que
ela nada tem a ver com o programa apresentado ao país em 25 de Abril, e em que se
descreve a necessidade de mudar o estado das coisas. Por exemplo, esse texto historia
as conclusões de uma reunião ocorrida de 7 para 8 de Agosto, segundo as quais sobressai
a hipótese de anulação do Presidente da República e dos Chefes do Estado Maior do
Exército e Força Aérea; denuncia a existência de uma Comissão Coordenadora que era ilegal-
porque nunca fora prevista no programa do MFA- e ilegítima- porque nunca fora
democraticamente eleita, etc. O general Costa Gomes- a quem se mostrou esse nosso
documento por uma questão de ética militar-, apõe o seu visto, mas mais tarde, quando
confrontado com ele, diz que o facto de lhe ter posto o visto e de o ter assinado, não
significava que forçosamente concordasse.
P- Daí até à formação do MDLP foi um passo?
R- Este documento foi a génese e congregou á sua volta muita gente preocupada com o andar
das coisas aqui e pelo rumo que elas tomavam em África onde se inventavam partidos
políticos para lhes entregar o poder. O Almirante Rosa Coutinho, há tempos na televisão,
disse mesmo que quando tomou posse do seu Alto Comissariado em Angola, não sabia a quem
entregar o poder. Sabíamos que o MPLA há seis meses que desaparecera do terreno, a FNLA-
disse-me pessoalmente o Holden Roberto, no Ambriz, em Setembro de 75- tinha condições
para aguentar mais um ou dois meses, a UNITA toda a gente sabia que teria 300 guerrilheiros.
Ora é o MFA da época que força a entrega nestas condições: foi preciso andar a correr para
agarrar os restos destes partidos, financiá-los, procurar quadros, etc. Tudo foi feito por
esse MFA, sempre dominado por aquela ideia dominantemente estúpida de que a liberdade dos
povos só podia ser conseguida pela força das armas e que só os partidos que combatiam é
que tinham direito a sentar-se à mesa das negociações e tomar o poder. Foi o que se passou.
P- Entretanto houvera esse vosso documento e a derrota de Spínola.
Em face disso, que decidiram fazer?
R- A partir do discurso de renúncia dele, começou a haver conversações para
se ver se se minimizavam os males.
P- Isso é vago. O que queriam? Que objectivos tinham?
R- Parar o partido comunista. Fui formado na luta contra a ideia, a filosofia e a forma
do comunismo, contra a ditadura do proletariado, contra o espezinhamento do homem e as
"nomenklaturas" vivendo nas suas "datchas". Só se fosse insensível é que não partiria
para esta guerra. Parti.
P- Partiu então para essa guerra. Houve entretanto o 11 de Março:
qual é a sua versão sobre esse acontecimento?
R- Como era preciso parar o PC, começou a gizar-se- com a colaboração de membros do
Conselho dos Vinte-, um plano para aproveitar certas facilidades que havia.
Por exemplo: sabíamos que se poderia contar com a guarda de Belém, onde esse
Conselho se reunia. Essa Guarda era assegurada por várias forças entre elas uma
companhia de pára-quedistas cujo capitão estaria disponível para as operações
que queríamos fazer.
P- Quais eram essas operações?
R- Prender alguns membros do Conselho dos Vinte que sabíamos ligados ao PC. E através
de um golpe palaciano, travar o rumo do PREC. As coisas iam sendo cada vez mais difíceis,
já nem tínhamos o general Spínola na Presidência da República.... Mas foram-se instalando
dúvidas, havia suspeitas de fugas de informação, desconfianças, alguns dos que estavam
comigo consideraram que se tinha ainda de ouvir este ou aquele, etc. A primeira tentativa-
feita numa noite em que essa tal companhia estava de guarda- falhou justamente porque houve
pessoas que não apareceram por causa das tais dúvidas. Ora esta companhia- cujo oficial
comandante estava perto de nós-, só voltava a estar de serviço um mês depois, isto é, só
se voltaria a tentar de novo, a partir de 17 de Março. Ora nesse intervalo, eu deixei-me
estar, apesar de suspeitar já de fugas de informação gravíssimas. No dia 10 de Março um
oficial vem ter comigo e fala-me da "matança da páscoa": uma "operação" que o PC iria
levar a cabo para eliminar os contra-revolucionários, entre os quais eu. Não fiz caso mas
de súbito algo me alertou. Foi quando esse amigo me disse que afinal a nossa tentativa de
tomada de poder no Palácio de Belém- já programada para 17- seria feita antes, dias depois.
"Como?", interroguei-o. Ele disse-me que a Base Aérea de Tancos estava de acodo, que os
pára-quedistas de Rafael Durão iriam participar e que bastava levar o general Spínola para
Tancos e protegê-lo. Fui para Tancos sem saber o que se passava.
P- Mas como é possível, que tenha caído daí abaixo, um oficial superior e experimentado como era?
R- Eu estava preparado para, num golpe palaciano, agarrar alguns elementos do Conselho dos
Vinte e não para aquilo... Mas se aquela gente a quem estivera ligado todo esse tempo estava
na disposição de proceder de outra maneira, se me diziam que a Força Aérea estava connosco,
eu confiei. Além disso já não havia tempo, era mergulhar ou abandonar o navio. Como não sou
rato, fiquei. Apareci em Tancos às 2 da manhã, e ouvi Spínola, no meio da confusão e da
efervescência, dizer-me: "Estou a ver que não há plano nenhum!". Disse-lhe que íamos tentar
segurar alguma coisa. Tínhamos a Região Militar do Brigadeiro Morais, a própria Base de
Tancos, etc. Mas desconfiei ainda mais quando ouvi o Comandante da Base de Tancos dizer ao
telefone ao Chefe do Estado Maior da Força Aérea, general Mendes Dias, "que sim, que estavam
todos com ele". Não houve nem organização, nem tempo, tudo se precipitou: os pára-quedistas
saem para atacar o Ralis, os aviões descolam, mas tudo se processou sem base nem organização...
Destruiu-se o Rádio Clube mas ninguém sabia onde era a Emissora...
P- Conclusão?
R- Foi uma formidável armadilha essa história da "matança da páscoa"! Lançou-se o furão e os
coelhos saíram. Algumas pessoas foram de helicóptero para Espanha com Spínola, outras ficaram.
Quando o general foi para o Brasil- estava eu já em Madrid-, consegui arranjar meios de ir lá
vê-lo e aos oficiais que o tinham seguido. Foi a partir daí que se começou a activar a Frente
Democrática para a Libertação de Portugal, depois Movimento Democrático para a Libertação de Portugal.
P- Onde e como recrutavam as pessoas para o MDLP?
R- Era um movimento aberto, as pessoas passavam palavra... A partir de certa altura as fileiras
foram engrossando e umas pessoas ficaram em Portugal, outras em Madrid. Eu? Andava de um lado
para o outro, a salto, apesar de diversos mandatos de captura e da acusação por 17 crimes.
P- De onde vinham os financiamentos?
R- Ao princípio, dos próprios. Houve muita gente do norte que contrabandeou coisas através da
fronteira. Eu próprio vendi, num antiquário de Madrid, um serviço que me pertencia, da Companhia
das Índias, com o qual financiei, de início, estas minhas andanças. Depois foram aparecendo
pessoas, como por exemplo o Manuel Queiroz Pereira que contribuiam mensalmente para o Movimento.
Depois, quem passou a controlar as finanças foi o dr. Manuel Cotta Dias.
P- Havia muita gente do antigo regime ligada ao MDLP?
R- Figuras de proa, não. Havia até pessoas que dantes tinham feito oposição ao regime e que
passaram a colaborar connosco, não gostavam do rumo que o PREC tomava.
P- E do regime saído do 25 de Abril?
R- Repare que nós nos conhecíamos todos: sou do curso do Almeida Bruno, do Melo Antunes,
do Garcia dos Santos, do Eanes, do Jaime Neves, etc, etc. E o facto de termos estado pelo
menos um ano juntos na Escola Militar, deu-nos um grande conhecimento, uns dos outros.
Por isso, tínhamos contactos estreitos com muitos oficiais. No Conselho da Revolução,
com Canto e Castro e Pinho Freire, por exemplo, mas dentro do Exército também. O Eanes
foi contactado mas como já estava comprometido com o grupo dos Nove, não pôde aceitar.
No entanto, esteve sempre ao corrente de tudo, soube a cada momento o que se ia passando.
Lembro-me de que o tenente coronel Dias Lima, que estivera com Spínola na Guiné e na
Presidência da República, se deslocou uma vez a Espanha para falar com Sá Carneiro quando
ele lá estava em convalescença, para o informar. Havia também contactos com o CDS e com o
próprio PS, mas a minha função do MDLP sempre foi essencialmente operacional...
P- ... isto é?
R- ... deslocava-me dentro do país, organizava as células, o MDLP chegou a ter uma estrutura
complicada: um directório presidido pelo general Spínola; um Gabinete Político onde estavam
o José Miguel Júdice, o José Vale Figueiredo, o Luís Sá Cunha, entre outros. E uma
organização operacional composta pelo Gilberto Santos e Castro, pelo tenente coronel Pires
de Lima e por mim próprio. E no interior, havia as comissões coordenadoras: uma no norte,
outra no centro e estava-se a organizar a do sul.
P- O que era o trabalho no "interior"?
R- Mobilizar, esclarecer e inclusive cimentar a ideia de que, se houvesse um conflito armado-
o que não excluíamos- havia que estar preparado para ele: saber onde se depositavam as armas,
quais seriam as forças que nos três ramos das Forças Armadas distribuiriam as armas,etc.
P- Onde arranjaram essas armas?
R- No Exército, sobretudo. Pela minha parte arranjei duas mil armas que pedi ao Holden Roberto
em troca de uma operação que faria para ele- fechar o porto de Luanda- que afinal acabou por
não se consumar. Mas isso é outra história... Mas o Holden Roberto cumpriu a parte dele,
entregou-lhe duas mil armas e quinhentas mil munições.
P- Onde estavam essas armas?
R- Estavam na Tunísia, transportámo-las como se fossem para Angola e o navio, ao chegar a
Gibraltar, rumou a norte a foi para Cadiz. Aí, através de contactos que estabeleci com a
Guarda Civil- e com a sua colaboração-, foi-nos indicado um pequeno porto onde foi possível
descarregar o armamento e conduzi-lo, em camionetas, pela Espanha, até Tuy. Quando andávamos
nisto, dá-se o 25 de Novembro e o MDLP começou a desfazer-se. E as armas foram entregues
às autoridades espanholas.
P- Queriam parar o Partido Comunista. Mas o dr. Mário Soares também. Como olhavam para ele?
Não lhes parecia que ele estava bem colocado- com a maior parte do país atrás dele-,
para lograr o vosso objectivo que era também o dele?
R- Respeiro o Presidente da República, já respeito menos o dr. Mário Soares.
Passou pelo PC, trabalhou em S. Tomé para os latifundiários, em Paris foi advogado
de banqueiros. Está no seu direito, foi uma opção. Mas quem como eu viveu a questão
africana, não podia aplaudir nem concordar com o modo como ele, como Ministro dos
Estrangeiros, correu pressurosamente pelo mundo fora, para entregar as províncias o
mais depressa possível! Reconheço os seus dotes políticos, sei que é um homem de
cultura, mas nesse tempo, tinha as maiores desconfianças daquela pressa toda!
P- Só o dr. Mário Soares lhe incutia essa desconfiança?
R- Não, claro, tinha a mesma desconfiança em relação a muitos militares, por exemplo:
vinham aos molhos comer à mesa do poder! Alguns Conselheiros da Revolução andavam num
desvario, para dividir os BMW do Jorge de Brito ou os Mercedes do Jorge de Mello...
Outros, civis ou militares, insultavam diariamente na rádio os soldados portugueses
que estavam em África... Mas assim como digo isto, reconheço que se conseguiu um
objectivo fundamental: a democracia, o menos mau dos sistemas, o mais sólido, apesar de tudo.
P- Falou há pouco que o MDLP se desmembrou a partir de Novembro.
Mas até lá, que participação vossa houve no 25 de Novembro?
R- Aliámos o povo do norte, já que a rapaziada do Alentejo andava na euforia da reforma agrária.
P- Quem é o povo do norte?
R- É toda a gente, desde a Igreja a milhares de pessoas...
P- O cónego Melo, de Braga?
R- Sim, o cónego Melo foi uma pedra chave em toda esta movimentação.
P- Quem incendiou as sedes do PC no norte?
R- Havias já algumas outras movimentações no terreno.
Por exemplo, havia um pirata chamado Paradela de Abreu, mas que era um pirata útil.
E a ligação do seu movimento- "Maria da Fonte"- connosco, era feita pelo engenheiro
Jorge Jardim, por quem eu tinha consideração e admiração. Houve assim alguns movimentos
como este que se juntaram a nós e chegou a haver 10, 15, 20 mil pessoas como aconteceu
em Braga e noutros sítios. Quando os da Dinamização Cultural chegavam a certas aldeias
encontravam 50 burros à espera deles e a aldeia deserta... Incendiaram-se as sedes,
reagiu-se... Gerou-se assim uma vaga de fundo em que uns entravam pelo rés-de-chão e
os outros, saiam a voar pelo primeiro andar. Mas em muitas sedes os comunistas
defenderam-se a tiro de caçadeira... Seja como for, arranjou-se muita gente o que
explica que, a dada altura, o MDLP tivesse logrado uma certa expressão e importância.
P- Voltando a Novembro de 75...
R- Apesar de haver já nessa altura muitos contactos com oficiais de vários lados, com o
grupo dos Nove, com civis dos partidos, o 25 de Novembro passou por uma unha negra:
quando se quebra a disciplina militar e a cadeia de comando, ninguém sabe a quem obedecer.
Mesmo o Jaime Neves- uma das figuras de proa- só devia confiar em meia dúzia de homens!
E um dos responsáveis pelo sucesso desse 25 de Novembro foi o Otelo.
P- Como assim?
R- Porque foi ele que reintegrou o Jaime Neves nos Comandos. Ele fora saneado por um
grupúsculo de extremistas- e mais uma vez os que o apoiavam ficaram paralisados!-
mas quando depois disso o Otelo vai à Amadora e, chegando à conclusão de que afinal
quase todos queriam o Jaime Neves de volta, reintegra-o... Se ele não o tem feito,
estou certo de que o 25 de Novembro não teria ocorrido nem naquela data, nem daquela maneira.
P- E o MDLP, ficou satisfeito com o 25 de Novembro? Ou...
R- Bem... eu não sei se alguma vez leu os objectivos do MDLP... Um deles era a garantia
de eleições democráticas. E quando acontece o 25 de Novembro, levanta-se a questão
de saber quem ia falar para explicar as coisas... porque era preciso senso e serenidade,
toda aquela gente queria comer os comunistas! Havia o consenso geral de que deveria ser
o Eanes... mas claro que se o Eanes fosse à televisão, os comunistas não acreditavam.
E foi o Melo Antunes. Mas ele, intencionalmente ou não, em vez de dizer- o que seria
aceite por todos- que os culpados da situação a que se chegara haviam sido os comunistas,
declarou que o PC era fundamental para a democracia em Portugal. A maioria dos nossos
pensou: "Então fez-se o 25 de Novembro e estes tipos continuam"?
P- Mas o que é que essa maioria de gente que estava consigo queria fazer ao PC?
R- Eu nunca fui sequer dos mais radicais, mas penso que poderia ter havido mais equilíbrio.
Uma coisa é dizer que o PC era "fundamental para a democracia", outra era ter deixado
claro perante o país que eles tinham sido os culpados e depois então dar-lhes generosamente
a "chance" para se recuperarem e participarem na construção da democracia.
P- Que aconteceu ao MDLP depois disso?
R- Fomos fechando a loja devagarinho... mas continuando a falar uns com os outros.
Pinheiro de Azevedo pediu um dia a Vitor Alves, então ministro da Educação, que fosse
lá acima falar comigo. Encontrámo-nos, foi fácil dialogar com ele, concordámos que as
coisas tinham corrido mal até aí por causa desses grandes democratas que são os comunistas,
mas que entre nós, queríamos afinal todos a mesma coisa... Simplesmente havia sectores
mais radicais no MDLP a murmurar que "afinal ficava tudo na mesma, ue alguns deles
continuavam com mandatos de captura" etc. O resultado foi que alguns destes elementos
entraram numa espécie de auto-gestão difícil de travar... Apareceram aí umas bombas
que ninguém mandou pôr...
P- Já depois do 25 de Novembro?
R- Sim. Antes disso, podem dizer que fui eu quem as mandou pôr, a todas, que eu não desminto.
Depois disso, nem uma! Bem, as coisas foram-se resolvendo pelo tempo e pelo diálogo,
embora, dentro daquilo que restava do MDLP, houvesse ainda quem continuasse a pôr bombas
quase por profissão... Já não tive nada a ver com isso.
P- Vinte anos depois acha que o MDLP teve de facto um papel?
R- Teve, foi positivo, em algumas alturas foi mesmo um referencial. A imprensa publicava
coisas, fazia entrevistas, conseguíamos publicitar os nossos objectivos e simultaneamente
angariar mais pessoas, mais vontades. Muita gente sentiu que de facto alguma coisa se
conseguiria. O que veio a acontecer, com as eleições de Abril de 76. Depois, a gente
apagou-se, foi cada um à sua vida.
P- Entretanto, houvera a independência nas várias Áfricas...
R- Quem viveu tremendamente isso tudo foi o Gilberto Santos e Castro que trabalhou durante
meses e meses com o Holden Roberto em Angola. Nós ficámos em Madrid, ele mudou-se para Angola.
P- Porquê com a FNLA?
R- Porque era quem combatia no terreno. A UNITA não combatia, era meia dúzia de gente...
o MPLA foi construíndo e financiado pelo Rosa Coutinho e pelo MFA. Com dinheiro e tudo.
P- Tem provas disso?
R- Sabíamos isso mas agora é o próprio Rosa Coutinho quem o vem dizer à TV...
P- É caso para dizer que a cada um, os seus apoios: a CIA apoiava a FNLA...
R- Apoiava, também o sabíamos. O Holden Roberto tinha oficiais brasileiros do II Exército
como observadores- e o Fernando Câmara Casculho como uma espécie de Ministro da Informação-
e contava também com tropas zairenses.
P- E no exterior?
R- No exterior contava igualmente com apoios. Em Paris havia um representante do Holden,
o Miguel Quina, que coordenava o apoio financeiro à FNLA.
P- Há pouco referiu que a troco de armas, se disponibilizou a fechar o porto de Luanda,
a favor da FNLA. Não chegou a fazê-lo. Porquê?
R- Se se fechasse o porto- o que não era difícil, é uma piscininha com uma milha de largura
e 30 metros de profundidade- o MPLA morreria porque deixava de ser abastecido.
O Miguel Quina pegou nesta ideia e eu fui convidado a ir a Angola, ao Ambriz, falar
com o Holden Roberto e com o Gilberto Santos e Castro. Tinham-me dito que o Holden
não falava português, exprimia-se num português correctíssimo. Nessa altura, em
Setembro de 75, estavam a aproximar-se do quilómetro 16, da estação de água.
Quando foi submetido o plano ao indivíduo da CIA, ele também concordou. Mas uns dias
depois, não me pergunte porquê, a CIA diz que não faz a operação. Mas apesar disso,
o Holden Roberto dá-me as armas que me prometera.
P- O 25 de Abril surge-lhe vinte anos depois, como negativo?
R- Dos três "D", realizou-se apenas um: a democratização do país.
A descolonização foi o que se viu, é o que se sabe. O desenvolvimento... aconteceu
por acaso e mais tarde. Porque durante anos e anos, após o 25 de Abril, houve a
destruição do tecido industrial português, a subversão de todas as regras da economia.
Houve empregos às catadupas, dinheiro lançado a rodos. Até que veio a integração europeia,
embora alguém venha um dia a pagar a factura dos fundos comunitários... Mas esta questão
traz outra: qual será a nossa identidade na Europa com todos os outros caminhos fechados-
não estou a ver, pelo menos nos próximos anos, um regresso a África... Por isso, qual será
então essa identidade?