Como foi desmascarado o carrossel do GES com a Venezuela que tornou Salgado suspeito de associação criminosaUm emigrante português na Suíça transformado em gestor de alta finança mediava negócios com venezuelanos ligados a Chávez e Maduro. Mais de 120 milhões giraram entre o Dubai, o Texas e a Madeira. Os fundamentos para o crime de associação criminosa
O papel de Salgado, a investigação dos EUA e a nova offshore da ex-PGR da Venezuela
Presos em Espanha e extraditados para os Estados Unidos
O envolvimento do BES no esquema de Rincon e Shiera
Os primeiros pagamentos e o homem da mala para Cristina Kirchner
O aprofundamento da relação com o Grupo Rincon e Shiera
Como Roberto Rincon perdeu 200 milhões de dólares com a queda do GES
Era um homem pacato que trabalhava num pequeno hotel na Suíça. Como tantos portugueses, tinha emigrado para terras helvéticas com a sua mulher em busca de melhores condições de vida. Trabalhador e atento a novas oportunidades, Paulo Murta — assim se chama o nosso protagonista — conheceu no final dos anos 90 um suíço chamado Michel Joseph Ostertag, um financeiro da confiança de Ricardo Salgado. Quase sem dar por isso, Murta tinha nas mãos um convite para ir trabalhar na Gestar, uma sociedade de gestão de fortunas do Grupo Espírito Santo (GES). Não olhou para trás e entrou no mundo da alta finança. Algo que mudaria a sua vida para sempre.
Avancemos um pouco mais de 10 anos. Paulo Murta já vive no Dubai, é o braço direito de Michel Ostertag na ICG Wealth Management, uma sociedade semelhante à Gestar, e passa a vida entre os Emirados Árabes Unidos e a Suíça. Pelo meio, faz algo que lhe desagrada de sobremaneira: viaja inúmeras vezes para Caracas, a capital da Venezuela. Para quê? Para tratar diretamente com os verdadeiros titulares das estruturas (leia-se sociedades offshore) que Ostertag, o ‘fininho’ como era conhecido entre a família Espírito Santo, criava para os clientes venezuelanos que Ricardo Salgado escolheu para o ajudarem, na fase de puro desespero na salvação do GES. Muitos desses clientes não só eram membros dos Governos de Hugo Chávez e do seu sucessor Nicolas Maduro como faziam parte da elite política e económica da Venezuela — um país onde as duas esferas tinham sido alvo de fusão com o patrocínio da revolução bolivariana.
O papel de Paulo Murta era recolher assinaturas para a documentação de criação das sociedades offshore, assim como para as transferências bancárias entre diferentes instituições financeiras — como as do GES e de outros grupos bancários europeus — que criariam um pequeno carrossel financeiro entre o Dubai, a Suíça, a Madeira e o Texas, nos Estados Unidos. Praticamente todos os clientes de Murta escolhiam familiares como testas-de-ferro das sociedades sediadas em paraísos fiscais, para ocultarem o verdadeiro proprietário. Estávamos em 2012. A Venezuela estava longe da crise económica e humana dramática em que está hoje mergulhada e o GES era, à primeira vista, uma rocha financeira — sólida e segura. Contudo, todo o cuidado era pouco, apesar da crença de que todas aquelas empresas e transferências seriam secretas para sempre.
Mas, como esta história revela, não só a crença estava errada, como é difícil guardar segredos quando as justiças de Portugal, Espanha e Estados Unidos cooperam de forma eficiente. Como tem acontecido no envolvimento de Ricardo Salgado e do GES no alegado desvio de mais de 3,5 mil milhões de euros da empresa Petróleos da Venezuela, que o Observador noticiou em exclusivo. Pelo meio, há malas de dinheiro a partirem de Caracas com centenas de milhares de dólares para financiar em Buenos Aires a campanha da futura presidente Cristina Kirchner e a prisão preventiva dos alegados principais cabecilhas venezuelanos nos Estados Unidos e em Espanha. Em Portugal, depois do fim da prisão domiciliária de João Alexandre Silva (ex-diretor do BES Madeira) ninguém está detido. Nem a acusação do processo Universo Espírito Santo estará terminada antes do final de 2019.
Os fundamentos para o crime de associação criminosa
As autoridades norte-americanas e espanholas não só ajudaram a equipa do procurador José Ranito, titular do inquérito Universo Espírito Santo, a identificar os beneficiários venezuelanos que receberam somas avultadas da sociedade offshore Espírito Santo (ES) Enterprises, o famoso saco azul do GES, como deram informação essencial para reconstruir o alegado esquema de corrupção e branqueamento que tem a Venezuela como centro da ação.
Pior: Ricardo Salgado passou a ser suspeito da alegada prática do crime de associação criminosa.
Quem o diz é o procurador José Ranito que constituiu Paulo Murta como arguido em dezembro de 2017, tendo voltado a interrogá-lo em setembro de 2018. Tido por Ranito como um dos principais operacionais do alegado esquema de corrupção do BES na Venezuela, Murta foi constituído arguido pelo crime de associação criminosa por uma prática continuada e duradoura de alegado branqueamento de capitais como forma de apoio a alegados crimes de corrupção de políticos e funcionários públicos venezuelanos. Tudo com base numa alegada cadeia de comando que seria liderada por Ricardo Salgado — sendo que a organização, alegadamente o BES, estava dispersa por várias jurisdições internacionais para facilitação do alegado plano criminoso.
Paulo Murta, por exemplo, é suspeito da alegada prática de 14 crimes de branqueamento do produto de corrupção no comércio internacional, sendo que onze deles terão por base alegados atos de corrupção com prejuízo no comércio internacional que alegadamente terão sido decididos por Ricardo Salgado e de inúmeros alegados crimes de falsificação de documento.
O Observador enviou um conjunto de perguntas a Paulo Murta mas o seu advogado, Henrique Salinas, recusou responder, invocando o segredo de justiça. “Os factos sobre os quais são pretendidos os esclarecimentos estão, todos eles, abrangidos pelo segredo de justiça relativo a processo pendente, pelo que a prestação de esclarecimentos ou a publicação dos mesmos traduz a prática do crime de violação de justiça”, justificou.
As mesmas questões foram enviadas a Ricardo Salgado que, através do seu porta-voz, afirmou que “não comenta inquéritos em curso.”
Como o Observador já tinha noticiado, o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) tem na sua posse uma lista de 30 sociedades offshore alegadamente criadas por Michel Ostertag que pertencem a Pessoas Politicamente Expostas (PEP) venezuelanas — um conceito da legislação europeia contra o branqueamento de capitais que, em parte, se refere a todo e qualquer responsável público ou político e aos seus familiares mais diretos. As 30 sociedades offshore tinham todas contas no Espírito Santo (ES) Bankers Dubai — e, algumas delas, no Banque Privée Espírito Santo, na Suíça — e receberam pagamentos regulares da ES Enterprises, alegadamente a mando de Ricardo Salgado.
Três dos nomes dos titulares das offshore acima descritas já foram revelados pelo Observador:
Margarita Mendola Sanchez — ex-procuradora-geral da Venezuela e atualmente ministra conselheira da Embaixada da Venezuela em Lisboa que será a titular da offshore The Paratus Investments Ltd que um total de 6,8 milhões dólares americanos (cerca de 5,8 milhões de euros) entre 16 de março de 2009 e 26 novembro e 2012.
Rafael Cure — pai de Rafael Alfredo Cure Lopez, gerente das operações internacionais da Petróleos da Venezuela (PDVSA), titular da sociedade offshore Golden Captive que terá recebido cerca de 10,8 milhões dólares americanos (cerca de 9,2 milhões de euros ao câmbio atual) entre 16 de março de 2009 e o 2 de fevereiro de 2012.
Arnoldo Cardenas Hernandez — tesoureiro do Banco del Tesoro que terá recebido uma transferência de 330 mil euros da ES Enterprises no dia 15 de junho de 2009 através da sociedade offshore AC [Arnoldo Cardenas] Chacal Investiments, Ltd.
Assim, como Domingo Galán Macias, chefe da Divisão de Engenharia Financeira da PDVSA, que terá recebido cerca de 3 milhões de euros como alegada contrapartida por ter favorecido o GES num concurso público para a gestão de um fundo de pensões da PDVSA.
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