Viagem ao interior da Eurocracia

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Viagem ao interior da Eurocracia
« em: Agosto 31, 2007, 08:21:32 pm »
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O prestígio que cerca os funcionários europeus é alvo de crítica e seus salários, privilégios e vantagens são invejados.
Mas esquece-se muitas vezes a urgência com que eles trabalham, o desarraigamento que sofrem em relação a seus países de origem, ou a dificuldade de trabalhar todos juntos pertecendo a culturas diferentes. A seguir, a visão de um etnólogo sobre os homens e mulheres que constroem a Europa todos os dias.
Nos primeiros tempos da construção européia, os funcionários europeus constituíam um pequeno grupo de pioneiros muito ligados ao ideal comunitário. Porém, muito rapidamente a ordem de valores inverteu-se.

 A função pública européia não era, de fato, tão respeitada como é atualmente. Bruxelas não representava uma opção muito disputada pelos funcionários dos países-membros. Eram poucos os "enarcas"1 que se sentiam atraídos por essa carreira. Quando perguntamos aos antigos que viveram os anos 60, eles são unânimes em destacar o lado "missionário" dessa escolha, que representava uma espécie de engajamento. Eles são enfáticos ao falar da motivação quase militar que tiveram na época.
 Hoje as coisas estão muito mudadas.
Muitos jovens eurocratas seguem essa carreira porque ela abre uma nova perspectiva em um mercado de trabalho muitas vezes restrito a nível nacional. O salário e a estabilidade no emprego são argumentos de peso para atrair os recém-formados a Bruxelas. Além disso, desde o final dos anos 80, a Europa vem tendo um peso maior no plano mundial, e a carreira comunitária adquiriu um verdadeiro prestígio.

Hoje as coisas estão muito mudadas. Muitos jovens eurocratas seguem essa carreira porque ela abre uma nova perspectiva em um mercado de trabalho muitas vezes restrito a nível nacional. O salário e a estabilidade no emprego são argumentos de peso para atrair os recém-formados a Bruxelas. Além disso, desde o final dos anos 80, a Europa vem tendo um peso maior no plano mundial, e a carreira comunitária adquiriu um verdadeiro prestígio.

 

Reinventar-se todos os dias

Mas, os eurocratas encontram-se tomados por uma espécie de movimento perpétuo. Nas instâncias européias, com efeito, gosta-se de trabalhar em regime de urgência; essa organização é particularmente eficiente quando tem objetivos a serem atingidos a curto prazo. A palavra "finalizar" está sempre ressurgindo no vocabulário dos funcionários. Seja em se tratando de um dossiê, de uma reunião ou de uma negociação em curso, o importante é terminar dentro do prazo. É necessário que a ação iniciada seja realizada. Nos períodos de refluxo, a atmosfera torna-se sombria: pode-se observar no seio da Comissão uma corrente de incerteza e até mesmo de angústia.

A ausência de um referencial forte, como representam para os funcionários no âmbito dos países suas regras e seu governo, torna-se palpável. O que transparece então é a incapacidade da Comunidade de retornar a si mesma. Podemos medir nessa conjuntura a dificuldade de uns e outros de se situar em relação a uma história. "Na Comissão tudo caminha mais rápido do que em uma administração comum. Nós avançamos sem nos voltar",  constata um funcionário. Trata-se de digerir o acontecimento evitando comentar as suas implicações além do necessário.

Tudo acontece como se a Europa tivesse que se reinventar a cada dia, afirmar a sua persistente atualidade. O trabalho da memória parece ser ignorado de tal modo que cada crise sucessiva encontra-se escondida sob uma chapa de esquecimento. A referência ao passado limita-se a uma breve evocação dos pais fundadores. Nenhum sinal vem testemunhar a presença de uma tradição. Divididos entre as urgências do presente e o ideal de um futuro melhor, os próprios eurocratas experimentam o sentimento de estar bem longe dessa (ou dessas) sociedade(s) européia(s) para a(s) qual(quais) trabalham. "Nós somos anjos sem corpos", constata um dos mais desiludidos. Suspensos no ar por um ideal ou pegos pelas contingências do presente, os "praticantes"  da Europa encontram-se numa situação delicada que os transforma em excelentes alvos para críticas vindas das diversas categorias sociais, o que gera stress e angústia nos mais vulneráveis.

Outra característica da vida comunitária é o fato de misturar culturas, tradições e línguas muito diferentes. Construir a Europa é entregar-se a uma grande bricolagem onde se tenta fazer a combinação dos conhecimentos, das linguagens, das concepções a respeito da administração e da política, que são às vezes dificilmente conciliáveis. A produção escrita (notas, regulamentos, circulares, etc.) que resulta dessa incansável mixagem de culturas é freqüentemente classificada de esotérica. Para muitos, ela é simplesmente incompreensível.

Os eurocratas diante do multiculturalismo

Pois bem, é precisamente porque são levadas em conta a diferença de línguas e a necessidade de atenuar os erros das traduções que se chega a essa espécie de jargão. A "euro-língua" é um dos florões da bricolagem multicultural próprios às instituições européias. Porém, além disso, na vida cotidiana dos funcionários, a coexistência permanente de universos culturais diferentes, embora seja um fator de abertura incomparável, pode também suscitar uma certa desestabilização. Entre as origens de grandes e pequenos países, entre as tradições do Sul e as do Norte, entre bebedores de vinho e de cerveja, as diferenças estão visivelmente presentes. Ser constantemente confrontado a outras maneiras de pensar e falar obriga todos a darem prova de uma grande flexibilidade.

Mas os eurocratas têm às vezes a necessidade de reencontrar suas raízes. Cada nacionalidade tem um clube ou uma associação onde os compatriotas se encontram. Assim, tenta-se atenuar esse sentimento de não pertencer a lugar algum. Tanto mais que em Bruxelas até os funcionários europeus têm a reputação de serem privilegiados; a isenção de pagamento de imposto na Bélgica, que é retido na fonte em favor do orçamento comunitário, o montante dos salários e gratificações e as vantagens em bens são freqüentemente malvistos e submetidos ao ataque constante de críticas muitas vezes injustas.

Mas, por trás da fachada de concreto das instituições comunitárias encontram-se homens e mulheres que vivem uma situação complexa. A exterioridade relativa dos funcionários em relação a seu local de residência alimenta uma certa angústia. Perceptível hoje, ela torna-se mais forte quando eles pensam no futuro, na aposentadoria, no destino dos filhos. Elite privilegiada à primeira vista, eles são também seres mais frágeis do que parece, atrelados a uma tarefa interminável, afastados de seus países de origem e mergulhados em um caldeirão de multiculturalismo.

Marc Abélès
Diretor de Pesquisa do CNRS
Diretor do LAIOS2
When people speak to you about a preventive war, you tell them to go and fight it. After my experience, I have come to hate war. War settles nothing: Dwight David Eisenhower : 34th president of the United States, 1890-1969