Serviços Secretos Portugueses

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Jorge Pereira

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Serviços Secretos Portugueses
« em: Dezembro 01, 2007, 12:22:12 am »
Acabei de ler este livro, que considero juntamente com a obra do General Pedro Cardoso, «As Informações em Portugal» nas suas várias edições, uma das melhores obras sobre os Serviços de Informações em Portugal ao longo da história, e que deveria ser matéria de leitura obrigatória para quem se interessa pelas questões da Defesa Nacional.





Serviços Secretos Portugueses  
José Vegar


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A segurança dos cidadãos e o poder do Estado dependem dos seus serviços secretos. Baseado numa investigação rigorosa com mais de uma década, este livro mostra-nos pela primeira vez a realidade oculta dos serviços secretos portugueses. As ameaças que investigam, os métodos de pesquisa e análise utilizados, o modo como se movimentam no terreno e com que riscos se defrontam os seus operacionais. A ameaça real do terrorismo islâmico no nosso país, o perigo causado pelo crime organizado global, o tráfico de armas e estupefacientes cada vez mais sofisticado, as redes de máfia chinesa impenetráveis, a manipulação do bilhete de identidade nacional por falsificadores de todo o mundo, ou a omnipresença da corrupção numa sociedade cada vez mais dominada por interesses. Serviços de Informações de Segurança, Serviço de Informações Estratégicas de Defesa, Polícia Judiciária, Serviços de Estrangeiros e Fronteiras, PSP e GNR são as principais forças que entram neste perigoso jogo e se confrontam na disputa do espaço das informações e do controlo de um território marcado pela indefinição de fronteiras e competências. Um mundo onde reina a conflituosidade e a falta de cooperação.

Seleccionei dois extractos deste livro que achei muito interessantes para vos estimular a curiosidade em relação ao livro em si, e em relação à própria actividade da «espionagem», actividade central e fundamental para a defesa e sobrevivência do Estado/Nação.

História fantástica daquele que é considerado por muitos o pioneiro do chamado “Grande Jogo” (espionagem) moderna, embora a expressão só apareça trezentos anos depois.

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Pêro da Covilhã, o espião intrépido

O cavaleiro cristão resigna-se à sorte, dando graças ao seu Deus por ter ainda um resto de água para si e para o camelo. Pousa as armas no chão de areia, e retira uma manta para se proteger do intenso frio nocturno. Durante a tarde, não encontrou sequer um ramo para fazer fogo. Está só, encurralado pelo deserto e pelo céu. Para onde quer que olhe, encontra apenas uma imensa vastidão a que não pertence.
O miserável pedaço de carne salgada que retira do saco quase vazio de mantimentos pouco conforto lhe dá.
Esgotado, o cavaleiro deixa-se escorregar para o solo, procurando o sono, que, no entanto, descobre, demora a chegar. São tantas as dezenas de meses desde que partiu de Lisboa, que o tempo já não é urna medida que o oriente. A missão que o rei lhe confiou parece-lhe agora uma temeridade tresloucada, própria de um homem incapaz de se resignar ao lugar que o Poderoso lhe destinou no mundo. Pela primeira vez, o cavaleiro, que nos seus vinte anos de vida adulta nunca conheceu senão a aventura, pensa em desistir. Talvez o falhanço seja o preço justo a pagar pela ousadia, admite. À medida que a noite se adensa, o frio gela-o cada vez mais. Os interesses do reino, a fortuna do seu povo, a riqueza e a glória para exibir ao mundo, tudo graças que tanto dependem de si, garantira-lhe o soberano, parecem-lhe agora coisas irreais. O sono alcança-o finalmente corno uma bênção.
O Sol está ainda raso quando ouve os primeiros ruídos da caravana, em marcha a umas escassas centenas de metros. Já erguido, o cavaleiro observa a formação com minúcia, tal como lhe ensinara o seu mestre sevilhano. Percebe, pelas vestes, que são árabes. Mas sabe que não tem escolha.
Obrigando a montada a um andamento lento, aproxima-se do meio da caravana. Não tarda a ser detectado e rodeado por infiéis ruidosos. Mas consegue chegar ao líder, um mercador egípcio, e, no dialecto árabe compreensível que aprendeu, estabelecer diálogo. Apresenta-se como um comerciante andaluz, sem avançar muitas explicações. A caravana segue para Medina, que o cavaleiro sabe ser um lugar sagrado para os árabes. Compra o seu lugar e mantimentos, e junta-se aos viajantes, próximo da cauda da longa formação de homens e animais carregados de mercadorias. Ninguém descobre, graças às vestes que adquiriu em Marrocos, à tez escura e ao seu domínio básico da linguagem, que é um cristão, do reino de Portugal. Quando a caravana reinicia o seu lento andamento, o cavaleiro sorri pela primeira vez em muitos dias. Acredita agora numa ténue possibilidade de cumprir as ordens que lhe foram entregues.
Nos meses que se seguem, o cavaleiro vive experiências que nunca ousara sequer imaginar. Sempre na companhia de um dos filhos do egípcio, com quem estabelece uma relação de simpatia, visita pormenorizadamente Medina e Meca, o coração dos infiéis, onde, pedindo intimamente perdão ao seu Deus, chega a fingir que reza, para manter as aparências. Observa os costumes, e, nas longas tardes de sombra à volta do chá e dos figos, nos povoados e ao longo da rota, recolhe informações. Como quaisquer outros muçulmanos, o jovem egípcio e os seus conhecidos gostam de falar, e o português não rejeita semelhante fortuna. Interessa-lhe sobretudo saber quem manda naquela estranha parte do mundo, a origem das mercadorias, e as rotas mais seguras para as transportar. É para estes temas que encaminha os diálogos, com uma doçura, pensa com um sorriso, igual à do mel que é lançado nos copos de chá.
Em Novembro de 1488, saberá dias depois, através de um missionário, chega ao reino indiano de Calecute. Não sem alguma emoção despede-se do jovem egípcio e do seu séquito, prometendo visitá-lo nas terras pertença de seu pai.
Em Calecute, o português, mantendo o disfarce, introduz-se nos meios que lhe interessam. Entre mercadores, funcionários do reino, viajantes, prossegue a recolha de notícias de que tinha sido incumbido Por ordem majestática. Descobre que muitas das informações dadas como certas em Lisboa eram apenas mitos directamente proporcionais à distância que separa os territórios indianos da sua capital. É assim que se inteira das paragens estranhas onde nascem as especiarias, e das verdadeiras rotas seguidas para as transportar. A qualidade das notícias que recebe desafia a sua curiosidade. Sabe que está a arriscar porventura de mais, mas foi sempre o seu instinto a guiar-lhe os passos. E este diz-lhe agora para ir. O cavaleiro atravessa toda a costa oriental da África, chegando a Sofala, dois anos depois. É aqui, numa hospedaria modesta, mirando o sono da prostituta negra que contratara por uma noite, que tenta ordenar, mentalmente, os dados mais importantes de uma missão que dura há mais de cinco anos. O reconhecimento que el-rei lhe ordenara está feito. E tempo de voltar para trás. Um ano depois, chega ao Cairo, no Egipto, o ponto de encontro combinado anos antes em Lisboa, pêlos estrategas do rei. E, provando que um monarca ambicioso não admite falhas, manejando os seus peões com precisão matemática, eis que o seu contacto aparece escassas semanas depois, no ponto combinado. O rabino de Beja, o homem enviado pelo rei, transporta consigo ferramentas preciosas: papel e tinta.
O cavaleiro passa a noite toda a escrever as suas informações. Tem dificuldade em dar urna ordem ao tamanho caleidoscópio informativo que viu e ouviu. E a escrita não é o seu forte. Mas faz parte do trabalho, e ele está ali para cumprir. De manhã, o rabino esconde cuidadosamente o relatório no corpo, e, sem grande emoção, parte para Lisboa. O cavaleiro prepara-se para a sua nova missão: demandar o reino de Preste João, na Etiópia.
O relatório escrito por Pêro da Covilhã em terras do Egipto será Precioso para D. João II, e determinará decisivamente a rota de Vasco da Gama, oito anos depois, fazendo com que este não perca tempo com pontos inúteis da costa africana e também da asiática.
A ser americano, e a ter nascido uns séculos depois de Ï500, Pêro da Covilhã seria há muito um herói global. Nasceu numa família da classe média da Covilhã. Formado nas artes da esgrima e do combate. A sua aventura começou aí.
Em 1474, é já escudeiro do rei português D. Afonso V, que lhe aprecia o talento de cavaleiro e a queda para as línguas, entre elas o árabe. E ao serviço do rei que trava as primeiras guerras com Castela, intervindo na batalha de Toro.
Mas é com D. João II, em 1477, que Pêro tem oportunidade para aplicar todos os seus talentos. O «Príncipe Perfeito» confia no beirão como em ninguém, e promove-o a seu braço direito para os sensíveis jogos de sombra que é obrigado a executar, que, num curto espaço de tempo, irão da sobrevivência a um plano de domínio do mundo. É o escudeiro que reporta sobre os nobres amotinados contra o seu rei, e fornece a este último as informações fundamentais para a desmontagem da conspiração. A operação termina em sangue. D. João II executa o duque de Bragança, e, um ano depois, trespassa com o seu punhal o duque de Viseu. Pêro está ao seu lado. Assegurada a segurança interna, o rei ganha espaço para o seu magno projecto, a expansão a Oriente, terra das especiarias, e, acima de tudo, do lucro.
A epopeia marítima tem, afinal, muito mais de estratégia do que de descoberta. D. João II sabe que necessita de um exaustivo, longo e demorado reconhecimento, para adivinhar perigos, encontrar rotas, alcançar aliados, e ser eficaz no envio dos meios marítimos.
Para a execução do seu projecto, precisa de homens que saibam dominar o medo, que sejam capazes de percorrer território inimigo, e que tenham capacidades para descobrir e guardar as notícias que interessam. Homens como Pêro da Covilhã, que não abundam na Corte.
Primeiro, envia-o para firmar acordos com os soberanos muçulmanos de Fez e outras terras do Magrebe, que são conseguidos.
Em 1487, envia o escudeiro, juntamente com Afonso de Paiva, ao Egipto, Etiópia e Índia. Os dois homens separam-se em Adem, no que é hoje a Arábia.
Quando, em 1491, Pêro encontra o seu contacto no Cairo, como já referimos, é informado de que a sua mulher dera à luz um filho varão um ano antes. Apesar da boa nova, segue a sua missão, e uma ruma ao reino de Preste João, na Etiópia, que alcança três anos depois.
Nunca deixará estas terras altas africanas. O soberano de Preste toma-o como conselheiro político, e impede a sua partida. Vinte e poucos anos depois, já com o império marítimo português em desenvolvimento fulminante, o Padre Francisco Alvares atinge a Etiópia, e recolhe as impressões do exilado. Pêro da Covilhã morre em 1530, na Etiópia, sem nunca ter voltado a Lisboa, sem nunca ter reencontrado a mulher, sem nunca ter visto o rosto do seu filho.
As interrogações provocadas pelo trilho deste homem extraordinário deverão ficar para sempre sem resposta. Os arquivos do Estado português nunca foram um modelo de organização, e uma parte fundamental destes desapareceu no terramoto lisboeta de 1755.


E outra bem menos abonatória para nós, mas não só para nós, que nos demonstra a importância de possuirmos Serviços de Informações altamente eficientes.

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O russo do arquivo que assustou os políticos portugueses

Quando no princípio de 1997, o representante do MI 6, o serviço de espionagem externa do Reino Unido, mencionou ao seu contacto no SIS o nome de Vasili Mitrokhin, este último não mostrou qualquer interesse especial, mantendo a caneta pousada no bloco-notas.
O inglês estava habituado àquele tipo de reacções, típicas dos homens das informações, e prosseguiu a sua revelação. Vasili Mitrokhin era o mais importante desertor do KGB que o Ocidente jamais conhecera, acrescentou, só para chatear o funcionário português, que se agitou na cadeira.
Nascido em 1922, agente secreto do Primeiro Directório Central do KGB, a quem cabia a espionagem externa, a partir de 1948, Mitrokhin, já com a patente de major, foi colocado a partir de 1956, aparentemente devido a um mau desempenho numa missão, como responsável do arquivo do seu departamento.
A desilusão com o sistema soviético, segundo o próprio, e o ressentimento profissional, acrescentam alguns historiadores, levaram-no a desencadear uma operação inimaginável até para os mais dotados ficcionistas. Durante mais de 25 anos, o major copiou, usando pedaços minúsculos de papel, a quase totalidade do arquivo que dirigia.
Primeiro na própria sede do KGB, em Lubianca, e depois com liberdade, aproveitando a mudança do arquivo para a nova sede da secreta russa, em Yasenevo, na periferia de Moscovo.
O recorte foi diário. Alegando que necessitava de acesso dossiês para os organizar no novo espaço, Mitrokhin copiava todas as informações relevantes das redes e operações russas par os referidos papelinhos, e saia da sede com eles nos sapatos Depois, escondia-os num buraco do chão da sua dacha, dentro de caixas de cartão.
Em 1985, aproveitando o facto de ter atingido a idade necessária, o major dos arquivos a quem ninguém ligava, reformou-se. Sete anos depois, em 1992, sentindo-se relativamente tranquilo pelo afrouxamento do controlo interno na Rússia, dirigiu-se a Riga, na Lituânia, e entrou em contacto com a embaixada dos EUA nesta capital báltica. Ao oficial da CIA que o recebeu, contou quem era e o que tinha, mostrando algumas amostras de documentos que transportava no fundo falso da sua mala de viagem. Os americanos, numa decisão que ficará para a história, não acreditaram nele. Acharam que era uma operação dos russos, e que o major tinha apenas um saco de desinformação.
Mitrokhin não tinha passado mais de vinte e cinco anos da sua vida a documentar o alcance da espionagem soviética para desistir à primeira. Do mesmo modo discreto, contactou a embaixada inglesa em Riga. Reza a crónica oficial, que foi atendido por uma funcionaria jovem e simpática, que lhe serviu chá, o ouviu com toda a simpatia, e aceitou fazer cópias das amostras documentais, pedindo ao major que voltasse um mês depois.
Mitrokhin assim fez, e, depois de lhe servirem novamente chá, os ingleses convidaram-no a desertar para o Reino Unido, juntamente com a família e o arquivo. Durante esse ano, os ingleses montaram uma complexa operação para retirar da Rússia as vinte e cinco mil páginas do arquivo. Concluída, transportaram o arquivista e a família para Londres.
Foi só durante as sessões avançadas de debriefing de Mitrokhin, o exercício de interrogatório não forçado de um agente com o objectivo de que este partilhe de forma sistematizada as informações que possui, e também com a exploração sistemática do arquivo retirado, que os ingleses se aperceberam do que tinham entre mãos. Como mais tarde escreveu um responsável do FBI americano, fazendo uma espécie de mea culpa, Mitrokhin era o veículo da «mais complexa e extensa informação jamais recebida de qualquer origem» Efectivamente, os ingleses passavam a ser os proprietários de um conhecimento profundo das operações soviéticas de espionagem entre 1930 e 1985, bem como das redes e dos informadores.
Ao funcionário do SIS que agora já seguia a sua conversa com bastante concentração, o homem do MI 6 não adiantou os pormenores do debriefing inglês, que só viria a ser conhecido na parte autorizada em 1999, quando os ingleses deixaram o historiador Christopher Andrew publicar um livro em co-autoria com o major arquivista.
O que é sabido é que, devido ao caudal de informações, o debriefing em exclusivo para os ingleses durou vários anos. Em termos muitos generalistas, os súbditos de Sua Majestade concentraram-se nas operações soviéticas em áreas geográficas e temáticas do seu interesse, e, claro, na penetração das redes do império vermelho no seu aparelho de Estado.
Depois, numa segunda fase, deixaram que os primos americanos tivessem acesso a Mitrokhin. Com relutância primeiro, e com alguma incredulidade mal contida depois, a task-force «CIA-FBI» descobriu que James Jesus Angleton, o mítico patrão da contra-espionagem americana durante a guerra-fria, considerado um paranóico no fim da sua carreira, tivera sempre razão. O grau de penetração da administração americana era enorme. Do que foi tornado público até hoje, os soviéticos tinham espiões activos na maior parte dos sectores vitais da Defesa e da diplomacia americana, inclusive em empresas privadas de topo, como a Lockheed.
Mas o major arquivista foi ainda o centro propulsor de uma terceira fase, desencadeada em 1996, e motivo principal da conversa Pedida pelo operacional do MI 6 em Lisboa. Os dados sobre a acção soviética no Ocidente e em África eram tantos, que os britânicos sabiam que jamais lhes poderiam dar uso activo. Decidiram então partilhá-los com os seus aliados, não por um súbito ataque de generosidade, coisa em que o reino de sua Majestade nunca foi pródigo, mas para que fossem estes a controlar os danos, e a tentar «tapar os buracos» do presente para o futuro.
Deste modo, várias redes activas e adormecidas, que por vezes incluíam políticos de topo, caíram nos principais países europeus, como foi o caso das que tinham sido criadas em França, Alemanha, Inglaterra e Itália.
Chegava agora a vez de Portugal. Num tom monocórdico inglês passou o que tinha.
O agente do SIS achou que era inútil disfarçar o que lhe estava a passar pela cabeça, enquanto tomava notas. Já com o seu superior directo, conseguiu ser um pouco mais sóbrio. As informações foram a despacho do director, na altura o jurista Rui Pereira, e a investigação foi activada pouco depois, no primeiro trimestre de 1997. O funcionário superior da direcção de contra-espionagem que recebeu a incumbência, encarou o material com o mesmo cinismo de sempre. Nos serviços de informações, os homens da espionagem são o equivalente aos homens que investigam a corrupção nas polícias, O tempo ensina-os que à partida terão poucos resultados para apresentar, e que sempre que fecham um caso, acabam com mais perguntas que respostas. Por uma razão muito simples: lidam com crimes onde as vítimas não sabem que o são.
Os dados compilados pelo major arquivista eram graves, e não eram vagos. A serem verdadeiros, revelam uma penetração profunda e sistemática do Estado português. Segundo os dados fornecidos, entre 1975 e 1984, políticos de relevo do PS, do PSD, do PP e do PCP tinham fornecido informações da NATO e de Portugal aos seus controladores soviéticos. Vários destes políticos ocuparam cargos de responsabilidade na administração pública, e por vezes em Governos, num período entre 1984 e 2000.
As informações que durante décadas estiveram num buraco de uma dacha russa indicavam, metodicamente, os nomes dos políticos, os seus códigos nominais, e as respectivas datas de nascimento.
O funcionário encarregue do caso não conseguiu impedir um sorriso ao tomar conhecimento das informações adicionais. Ao contrario do padrão comum, o de acederem a espiar por convicção ideológica, que foi o grande trunfo estratégico do KGB em todo o mundo, os informadores portugueses mostraram, segundo Mitrokhin, motivações muito venais. A primeira foi a do dinheiro, quase todos eles eram pagos, mas também, em número significativo, a satisfação de desejos sexuais, de orientação homossexual. O relatório era explícito ao referir que, detectando esta fraqueza, o KGB tinha enviado para o terreno português controladores aptos a satisfazer o desejo das suas fontes, numa versão gay do sistema «Romeu» empregue por Markus Wolf na Alemanha Ocidental.
O historiador inglês Timothy Garton Ash, que durante vários anos investigou o colossal arquivo da Stasi, a polícia secreta da Alemanha de Leste, escreve que «o que se descobre aqui, nos dossiês, é como o nosso comportamento é profundamente influenciado pelas circunstâncias [...|. O que se descobre é menos malícia que fraqueza humana, uma vasta antologia de fraqueza humana. E quando se fala com aqueles envolvidos, o que se encontra é menos desonestidade deliberada do que a nossa capacidade quase infinita para nos desiludirmos a nós próprios».
O funcionário superior e a sua equipa começaram a trabalhar no caso. O primeiro passo foi óbvio: Contextualizar. Sem fazerem qualquer juízo de valor sobre a veracidade das informações, que mais tarde seriam postas em causa em todo o mundo, especialmente pêlos acusados de informadores, pegaram nos nomes e cotejaram--nos com as funções públicas que os políticos tinham desempenhado, para verem a que qualidades de material teriam tido acesso.
Se os políticos referidos realmente passaram informações ao KGB, ocorreram fugas sobre tudo o que é importante para o Estado português e para os seus aliados: Defesa, especialmente material bélico, economia, África, Nato, União Europeia, Acordo das Lajes. Depois, meses mais tarde, os funcionários começaram «a bater às portas das capelinhas», como frequentemente se diz na gíria, em busca de peças que os ajudassem a iniciar o acerto dos puzzles. O arquivo da DINFO, e alguns dos seus funcionários foram consultados, bem como os serviços da NATO, da PJ e de alguns congéneres europeus tentando sempre, claro, não levantar muita poeira.
Obviamente, encontraram muitas pontas soltas, algumas pistas e constataram, com surpresa, que a «história», de um modo fragmentado, era conhecida por vários elementos do aparelho de segurança português, e por alguns representantes da classe política.
Três anos depois, na sua secretária, o funcionário superior terminou o seu relatório final. Como suspeitara, saiu do terreno com mais perguntas que respostas. O problema, pensou naquele momento, é que o major arquivista, ou os seus mestres ingleses, não puderam ou não quiseram dar os pormenores operacionais. Para o agente do SIS, o facto de não existirem dados específicos, numa quantidade mínima que fosse, sobre as «actividades» dos informadores, nomeadamente sobre quem deu o quê, em que data, e de que forma, inviabilizou toda a operação. Como em qualquer outra acção longa de espionagem, as informações foram transmitidas de forma oral, ou através de documentos sem cópias. Uma década depois do período activo das redes, não restava qualquer prova do crime, se é que alguma vez a houve, nem obviamente foi detectada qualquer vontade de confissão por parte de um dos presumíveis espiões portugueses. Montar uma operação para detectar um «flagrante» estava fora de causa, porque as redes pareciam, pelo que os homens do SIS detectaram no terreno, adormecidas.
O funcionário superior recordou com alguma repulsa a iniciativa de contacto que o SIS tinha realizado junto do serviço russo. Os russos, rudemente, fizeram saber que não tinham interesse algum cm cooperar. Como é natural com qualquer serviço, consideram que as redes adormecidas podem sempre ser activadas.
O agente do SIS olhou com atenção para o documento particular que o director lhe solicitou. Terá como destino o gabinete do primeiro-ministro, para dar início, se os decisores assim o entenderem, a um processo discreto de afastamento ou impedimento de acesso a funções executivas de alguns dos políticos referenciados na investigação, sobre os quais existiam indícios relativamente consistentes. A intenção é a de evitar que governantes com funções importantes possam vir a ser alvo de chantagem futura de estados ou de empresas privadas. Mas, bem sabe o homem do SIS, o acto de limpeza reactiva ou preventiva só acontecerá se o poder executivo assim o quiser.
O funcionário superior começou a ver as folhas do relatório a saírem da impressora. Colocou o ficheiro informático num disco seguro. Retirou as folhas, que enviou, agrafadas, para o 7.° andar. Anos depois, a 25 de Janeiro de 2004, viu a pequena notícia no The Times da morte, no dia anterior, de Vasili Nikitich Mitrokhin, o major arquivista. Em frente à banca, ficou a pensar que naquele momento muitos políticos portugueses podiam respirar de alívio. No mundo da espionagem, ao contrário do que acontece com o passado, as suspeitas podem muitas vezes ser enterradas.


Deixo aqui uma ideia central retirada da leitura deste (e outros livros) sobre os Serviços de Informações em Portugal.

 :arrow: Os períodos mais áureos e poderosos de Portugal estiveram sempre associados a uma grande preocupação em ter Serviços de Informações altamente eficientes. O contrário também se verificou sempre e continua a verificar-se nos dias de hoje.
Um dos primeiros erros do mundo moderno é presumir, profunda e tacitamente, que as coisas passadas se tornaram impossíveis.

Gilbert Chesterton, in 'O Que Há de Errado com o Mundo'






Cumprimentos
 

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JLRC

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« Responder #1 em: Dezembro 01, 2007, 03:04:47 am »
Obrigado Jorge. Muito interessante. Vou tentar comprar o livro na FNAC.
 

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Miguel

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« Responder #2 em: Dezembro 01, 2007, 02:34:59 pm »
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contrario do padrão comum, o de acederem a espiar por convicção ideológica, que foi o grande trunfo estratégico do KGB em todo o mundo, os informadores portugueses mostraram, segundo Mitrokhin, motivações muito venais. A primeira foi a do dinheiro, quase todos eles eram pagos, mas também, em número significativo, a satisfação de desejos sexuais, de orientação homossexual.


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Duarte

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« Responder #3 em: Dezembro 02, 2007, 06:01:02 pm »
Citação de: "Miguel"
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contrario do padrão comum, o de acederem a espiar por convicção ideológica, que foi o grande trunfo estratégico do KGB em todo o mundo, os informadores portugueses mostraram, segundo Mitrokhin, motivações muito venais. A primeira foi a do dinheiro, quase todos eles eram pagos, mas também, em número significativo, a satisfação de desejos sexuais, de orientação homossexual.

 :shock:  :shock:
Era mesmo preciso trair a pátria para satisfazer os "desejos sexuais, de orientação homosexual"? Não bastavam os "serviços" que já estão disponíveis?? :?:
слава Україна!

“Putin’s failing Ukraine invasion proves Russia is no superpower"

The Only Good Fascist Is a Dead Fascist