Vitimas do terramoto de 1755

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Cabeça de Martelo

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Vitimas do terramoto de 1755
« em: Março 21, 2007, 12:04:16 am »
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Investigação impressionante
 
De que falam os restos mortais das vítimas do terramoto de 1755?
 
 
   
As vítimas do terramoto de 1755 têm uma história a contar. Mais de 250 anos depois da catástrofe, que só em Lisboa provocou a morte a 10 mil pessoas, uma equipa de investigadores descobriu uma espécie de vala comum onde estão enterrados cerca de dois mil indivíduos. De que falam estes mortos... quando encontram alguém que sabe falar com eles?
 
Amélia Moura Ramos
 
 
 
 
O arqueólogo João Cardoso foi o homem que trouxe à luz quem estava na escuridão há 252 anos.

Cristiana Pereira, a especialista em medicina dentária forense do Instituto de Medicina Legal, estudou os dentes e revelou os costumes dos antepassados.

O cónego Manuel Lourenço analisou os artefactos religiosos.

E o professor Miguel Telles Antunes, director do Museu da Academia de Ciências de Lisboa, coordenou a equipa de investigadores. É ele o guardião dos ossos.

"Estamos em presença de um crânio de criança, talvez na ordem dos 3 anos, que dá uma demonstração perfeita de uma morte acidental com o terramoto", explica.

O professor mexe e remexe nos ossos da criança. Não há aqui qualquer sacrilégio. Apenas a emoção de estar a fazer História com os principais protagonistas da maior catástrofe natural que se abateu sobre Portugal. Os únicos até agora encontrados.

"Meu Deus, estes indivíduos já morreram há dois séculos. Como é que terá sido, terão sofrido? Morreram durante o fogo, morreram depois? Foi durante a onda?". São questões que inquietaram Cristiana Pereira durante o ano em que trabalhou com a amostragem dos dentes das vítimas.

São elas quem melhor transmite o terror daquela manhã quente de 1 de Novembro de 1755.

No Dia de Todos os Santos, as igrejas cedo encheram. Às 09h45 um ruído subterrâneo antecedeu o primeiro de muitos abalos. Abriram-se fendas nas ruas. Ruíram casas, igrejas e conventos.

O céu, que antes estava limpo, ficou escurecido pelos gases sulfúricos saídos de dentro da terra. A poeira tornou o ar irrespirável.
Às 10 horas, três ondas de seis metros engoliram a baixa e as pessoas que correram para a beira-rio achando estar aí mais seguras.
Depois da fúria da terra e da água, Lisboa foi pasto de outro elemento. O fogo durou seis dias. Temos os relatos dos sobreviventes. Mas só agora é tempo de ouvir os mortos.

"Regressam para falar, desde que alguém saiba falar com eles", remata o arqueólogo.

Os restos mortais foram encontrados por acaso, em 2004.
As obras de restauro do claustro do antigo Convento de Jesus, onde funciona a Academia de Ciências de Lisboa, puseram a descoberto uma vala comum.

O arqueólogo João Cardoso parou de imediato as obras. "Crânios ao lado de tíbias, de ossos diversos, era um ossuário com os corpos anatomicamente desagregados", explica.

Descobriu-se ainda que no fundo havia outras sepulturas, mais antigas, dos frades que viviam no convento muito antes do grande terramoto. Os monges não puderam descansar em paz. Em cima deles, milhares de ossos humanos foram despejados.

"São restos que vão desde esqueleto fetal, que correspondem a mulheres que morreram em estado de gravidez, até pessoas muito velhas. Homens e mulheres. Tudo misturado". Para o professor Telles Antunes e para a comunidade científica, as ossadas vieram provar a verdade dos relatos: a seguir à catástrofe natural veio uma outra, de natureza humana.

Um crânio de uma mulher na casa dos 40 anos evidencia sinais de um assassínio: um orifício de uma bala, também ela encontrada entre os despojos. "O projéctil deslocou-se da direita para a esquerda e teve impacto na zona frontal do crânio", diz Telles Antunes.

A violência invadiu a cidade e a resposta do Duque de Lafões foi mandar enforcar 34 homens. Eram ladrões, na sua maioria. Muitos habitantes fugiram de Lisboa. Os que ficaram tiveram de lutar também contra a doença e a fome.

O professor exibe um fémur de uma criança com uma perfuração pequena. "Foi produzida pelo canino de um cão". A fome passou todos os limites. Um fémur em particular chamou a atenção do professor. O osso em causa não está em Portugal. Foi analisado na Universidade de Cambridge, em Inglaterra, e testemunha um caso de canibalismo: "Apareceu um osso de perna com indícios claros de corte à faca que indiciam descarnação. Casos pontuais de antropofagia".

Pela observação morfológica dos dentes, Cristiana Pereira ficou a conhecer melhor do que ninguém o que é que os lisboetas de setecentos levavam à boca. Através do macroescópio pôde determinar que a alimentação era deficitária em vitamina D, presente no peixe, na carne e no leite. Em contrapartida, a falta de dinheiro evitou a proliferação de cáries dentárias.

"Nem toda a população tinha acesso à compra do açúcar e por isso o número de cáries não era grande". Dos 1099 dentes isolados que Cristiana Pereira analisou, apenas 179 estavam cariados.

Nas gavetas do gabinete do Museu da Academia, o professor guarda os maxilares que ainda não foram estudados. São as dentições de cerca de 200 indivíduos, algumas delas queimadas pelo fogo. É, aliás, através delas que se conseguiu determinar a que temperatura ardeu Lisboa. "A temperaturas que se elevaram a mais de 1000 graus", diz o professor Telles Antunes.

Se dúvidas houvesse que estavam perante vítimas de 1755, foram dissipadas quando os investigadores analisaram os objectos da sepultura.

Um dado feito de osso. Botões ricos e outros mais pobres. Haveria mesmo uma fábrica de botões por perto do local onde os restos mortais estavam abandonados. Há pedaços de cachimbos ingleses e holandeses. Um dente de javali usado como amuleto. Colchetes. Uma fivela e, agarrado, ainda um pedaço de tecido.

Pouco dizem a olho nu. É a análise profunda à terra que com eles foi encontrada que revela a origem dos restos mortais. Muitas destas vítimas eram do vale de Alcântara. "Aparecem também fósseis misturados com ossos, e tudo aquilo vem de uma faixa geológica que vem de Alcântara e que termina em Santos-o-Velho".

Até um vintém de prata com uma coloração alterada indica que o proprietário foi uma vítima das ondas do Tejo.

"Para ter esse tipo de alteração esteve em contacto com um fornecedor de cloro. A própria água salgada. Isso sugere que houve vítimas do tsunami que também aqui estão", revela o professor.

As vítimas do terramoto juntaram especialistas que nunca antes se tinham cruzado.

Para apurar a origem das medalhas religiosas, o professor teve de recorrer aos conhecimentos do juiz de direito canónico, do Patriarcado de Lisboa, especialista também em arte sacra, o cónego Manuel Lourenço.

"Há medalhas de S. Domingos, de Santo António e S. Francisco". São os nomes que ainda perduram na devoção de Portugal. Mas foram outros santos, já desaparecidos na memória dos portugueses, que despertaram a curiosidade do cónego.

"Santo André Avelino, hoje as pessoas não se lembrarão. Santo Cestaneslau Costa, que é um jesuíta, os santos boémios", diz o especialista.

À falta de comércio religioso, era nas ordens que as medalhas eram adquiridas.

A Ordem de S. Bento, situada ao fundo da rua da Academia das Ciências, estava bem perto das sepulturas. Com a ajuda da câmara clara, Telles Antunes copiou todas as medalhas e moedas. Só uma ampliação fiel permitiu identificar cada uma das figuras.

Foram dezenas os profissionais que ajudaram a descobrir a verdade. De Norte a Sul do país, académicos das mais variadas áreas. Nenhum deles foi pago por este trabalho feito nas horas vagas. "Se me põe essa questão a resposta é simples, ninguém foi pago, que eu saiba".

Os especialistas responderam ao apelo do professor só pelo privilégio de tocar num dos momentos mais dramáticos da História de Portugal.
O espólio vai ficar guardado no gabinete da Academia, à espera que alguém o ache suficientemente importante para lhe dar outra visibilidade.

No chão do claustro continuam enterradas centenas de pessoas, e com elas vão permanecer por desvendar outras histórias dos dias negros de 1755.

http://sic.sapo.pt/online/noticias/vida ... e+1755.htm
7. Todos os animais são iguais mas alguns são mais iguais que os outros.