A administração Lecor e a Montevidéu portuguesa: 1817-1822

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Doctor Z

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A monarquia portuguesa, durante o período de sua permanência no Rio de Janeiro, entre 1808 e 1821, tenta, em três momentos, conquistar o que corresponde à atual República Oriental do Uruguai. A primeira tentativa, em 1808, tem, inicialmente, o apoio do príncipe regente D. João, e corresponde ao projeto de Carlota Joaquina em exercer a regência espanhola a partir do Rio da Prata. No entanto, pela ação de Lorde Strangford, representante britânico no Rio de Janeiro, e de D. Rodrigo de Souza Coutinho, ministro de D. João, o plano de Carlota malogra.

Uma segunda tentativa expansionista lusa ocorre em 1811, mesmo ano em que José Gervásio Artigas adere à Revolução de Maio, iniciada em Buenos Aires, e que busca o rompimento com a Espanha. As tropas de D. João invadem o território oriental sob a alegação de preservá-lo aos Bourbon, casa real a qual Carlota pertence e, também, sob o argumento de que as perturbações no território oriental causavam turbulências na fronteira com o Rio Grande. No entanto, mais uma vez por pressão inglesa, D. João retira as suas tropas desse território em 1812.

Em 1816 ocorre a terceira tentativa expansionista lusa, que obtém êxito. As tropas do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves são lideradas pelo então general Carlos Frederico Lecor e invadem o território oriental, conquistando Montevidéu em 20 de janeiro de 1817.

Uma vez estabelecendo-se a conquista e o governo luso de Montevidéu, permanece à frente desta empreitada o general Lecor, que administra o território oriental a partir de Montevidéu até 1825. Assim, nas linhas a seguir serão apresentados alguns aspectos da administração Lecor.

Sobre Carlos Frederico Lecor, líder do projeto expansionista português na região do Prata, nasceu em Faro1, no Algarves. Descendia, pelo lado paterno, de franceses e, do materno, de alemães, sendo destinado por seus progenitores à vida comercial, vivendo, assim, na Holanda e na Inglaterra. Entretanto, opta pela carreira militar, assentando praça no regimento de Artilharia de Faro.

Na última década do século XVIII e na primeira do XIX, Lecor ascende no exército português, tendo tido, dentre outras patentes, as de soldado de artilharia, sargento e capitão. Com as três invasões francesas que Portugal sofre a partir de 1807, lideradas, respectivamente, pelos generais Junot, Soult e Massena, Lecor participa da ação contra os ocupadores e ascende na hierarquia militar durante a guerra contra Napoleão e, ainda, “[...] ostentaba como galardón de su carrera, el haber iniciado en Portugal la reacción contra el invasor. Carlos Frederico Lecor, el único de los oficiales extranjeros que mereciera el honor de comandar una división inglesa a las órdenes de Wellington [...]”2

Durante o conflito o então Tenente-Coronel Lecor deserta, assim como outros oficiais lusos, indo para a Inglaterra, onde organiza a Leal Legião Lusitana contra o sistema napoleônico. Lecor luta em território francês e, uma vez havendo a derrota do oponente, as vitoriosas tropas portuguesas retornam ao seu país lideradas pelo marechal-de-campo Lecor.

Assim, com o fim da guerra no velho mundo e com os interesses da monarquia de Bragança nos assuntos americanos, é decidido que tropas sejam enviadas para a América. O Tenente-General Lecor, então Governador da Praça de Elvas3, é escolhido4 para liderar os militares portugueses envolvidos na conquista da Banda Oriental.

Com a conquista lusa de Montevidéu, Lecor fica à frente do governo instalado neste núcleo urbano e, na campanha, travam-se lutas contra Artigas. Uma vez no poder, Lecor aproxima-se de pessoas de destaque de Montevidéu, tendo no seu circulo figuras como, por exemplo, o Padre Larrañaga, que outrora fora aliado de Artigas, além de ter sido o fundador da Biblioteca Pública de Montevidéu, e autor de várias obras no âmbito científico, literário, teológico e político; Francisco Llambi, assessor do Cabildo de Montevidéu em 1815, período em que a cidade está sob o poder das forças artiguistas; e, ainda, Nicolas Herrera, figura controversa na historiografia uruguaia, pelo fato de ter sido aliado do portenho Alvear e, depois, de Lecor. Sobre este oriental, soma-se que, segundo Donghi, quando as forças de Lecor marcham sobre o território oriental, Herrera está ao lado do general, além de que “(...) ahora su función es asesorar a sus nuevos amos en esa conquista pacífica que debe acompañar a la militar.” 5

Lecor também tenta compor politicamente com Artigas, entretanto, não obtém êxito. O general português, de acordo com as instruções que recebeu, propõe ao caudilho que venda as suas propriedades e bens legitimamente seus, além do exílio no Rio de Janeiro ou em qualquer outro lugar que D. João autorize e, ainda, o ganho de um soldo, que não exceda o de coronel de infantaria portuguesa. Porém, com Artigas, a “diplomacia” de Lecor malogra, não conseguindo a pacificação do território oriental.6

Para derrotar Artigas, Lecor aproveita-se do contexto oriental, pois à medida que o poderio do caudilho encolhe e o luso cresce, a população demonstra-se mais favorável aos ocupadores e, assim, Lecor militariza a população e organiza-a contra Artigas.7

Entretanto, isto não significa que Lecor obtém unanimidade, pois a resistência artiguista perdura até 1820. Porém, observa-se que Lecor sabe atrair para o seu lado aliados do caudilho8, como, por exemplo, Fructuoso Rivera.

Sobre a administração Lecor, é válido salientar que

“Mediante dádivas y honores, ganó la voluntad de los hombres; profundo conocedor de las flaquezas humanas, halagó a unos con promesas y a otros con realidades; repartió cruces y condecoraciones; distribuyó tierras que no eran de su Rey; conquistó a la sociedad de Montevideo con fiestas y saraos; casó a su oficiales con hijas del país, haciendo él lo propio; seleccionó los hombres para casa cometido; eligió a su gusto los Cabildos, organismos que tenían prestigio popular y que fueron el secreto de su política, y de tal suerte dispuso las cosas, que todos los actos de incorporación a la corona de don Juan VI o cesiones a favor de ella, parecieron siempre hechos espontáneos, debidos a solicitudes y ruegos de nuestro pueblo, que se lisonjeaba en proclamarlo su Rey.”9

Medida tomada por Lecor e apresentada na extração acima é a de incentivar o casamento entre os militares luso-brasileiros com as mulheres de Montevidéu. Observa-se, inclusive, que o próprio Lecor casa-se, em 1818, com Rosa Maria Josefa Herrera de Basavilbaso, que à época possuía 18 anos de idade.

No mesmo ano do seu casamento, Lecor recebe o título nobiliárquico de Barão da Laguna, em virtude das mercês que D. João VI concede pela sua aclamação e coroação como rei de Portugal, Brasil e Algarves. Sobre a origem do Laguna no título do militar português, Duarte afirma que “Acreditamos que, ao conferir o título de Barão da Laguna ao General Lecor, reportara-se o Rei ao fato de que fora naquela povoação catarinense que o Comandante da Divisão de Voluntários Reais iniciara a penosa marcha para atingir Montevidéu.”10

Uma vez no poder, Lecor também distribuí terras entre os ocupadores, tanto as que são de posse dos chefes artiguistas, quanto as abandonadas. Além deste benefício, os invasores adquirem estâncias a baixíssimo custo, tirando proveito da situação em que o território oriental vive. Igualmente os estancieiros criollos que apóiam Lecor são contemplados com essa política.11

No que tange a política de Lecor para os Cabildos, o general, através da sua destreza e de promessas, busca a interferência e, também, a simpatia destes corpos municipais. Lecor mantém os Cabildos e os alcaides de acordo com as instruções dadas pelo Marquês de Aguiar.12 Sobre o general e esta instituição municipal, é válido observar que

“En 1819 dispuso Lecor que se alejase del Cabildo la tercera parte de sus integrantes, a excepción de Juan José Durán y Jerónimo Pío Bianqui, debiéndose elegir los sustitutos y confirmar en sus puestos a los restantes; y el 9 de agosto de 1820, el propio Lecor ordenó la separación de cinco cabildantes que protestaban por el incumplimiento de las bases de incorporación ajustadas por los pueblos del interior con el Cabildo de Montevideo.”13

Ainda sobre os Cabildos, estas instituições “[...] habían perdido el carácter popular que en otras épocas los hiciera respetables, por irregularidades en la forma de su elección e influencia que en sus deliberaciones ejerciera el Barón de la Laguna.”, além de que durante o período do governo luso

“La posición de esos cuerpos municipales respecto de Lecor, no era uniforme. El de Montevideo, nombrado bajo su directa influencia, respondía ciegamente a sus intenciones cuyos secretos conocía; los del interior obedecían también sus directivas, pero sin tener una noción exacta de cuáles eran los planes de que venían a ser instrumentos.”

Assim, desacreditando estas instituições municipais, Devoto afirma que

“En los Cabildos de 1821, podía, sin duda, desde el punto de vista de las formas de su elección, reconocerse organismos legalmente constituidos, pero nombrados bajo la inspiración de Lecor, ¿hasta dónde representaban los intereses y las ideas de los pueblos? ¿Tenían, acaso, competencia para elegir sus diputados [no caso, elegê-los para o Congresso Cisplatino].”14

É válido observar que com o trecho acima, além de questionar a autonomia dos Cabildos, principalmente o de Montevidéu, Devoto apresenta as características de articulador político do general Lecor e a influência do mesmo nas instituições políticas orientais.

A atuação de Lecor à frente do território oriental é definida por Devoto como uma ação política, e que sua administração é baseada em suas articulações. O autor inclusive afirma que a característica política do personagem prepondera sobre a militar, pois, após citar o destaque de Lecor nas lutas da Europa, afirma que “en América [Lecor fue] un General de Gabinete que ganó en el campo de la intriga todas sus batallas” e que “Sus contemporáneos señalaron preferentemente una característica de su personalidad: la astucia. Lecor ‘es un raposo y no un León’, expresó con acierto Lavalleja.”15

A ação política de Lecor no território oriental não é ignorada por Duarte. O autor afirma que “Instalado em Montevidéu, iniciou o General Lecor seu trabalho de sapa, subterrâneo e paciente, implantando uma espécie de quinta-coluna, a fim de fortalecer o partido que representava, e fomentar a oposição à reconquista espanhola”16. O autor também expõe que

“Silencioso, mas dinâmico, caprichoso e astuto, sem parecer, por mais diplomático, que militar, como aparentava à luz do sol pelas revistas, formaturas e desfiles da Tropa, o General escolhido por D. João [...] desenvolvia intenso labor num meio estranho, cercado de interesses de todos os matizes.

E, para bem cumprir a tarefa de extrema delicadeza que recebera, Lecor passou a usar a sutileza, a finura na penetração dos sentidos, agindo tanto pela força, como pelo suborno, estes às vezes claro, chocante, outras vezes, ameno e até colorido de malícia... Sempre no afã de arregimentar prosélitos, procurando-os, principalmente, nas agremiações nas quais uma defecção era compromisso passível de morte, em caso de reconquista espanhola ou portenha; era indispensável admitir ambas as hipóteses. Assim, entre os castelhanos buscava adeptos que, mais tarde, pelo próprio instinto de conservação, embaraçariam e afastariam a volta do domínio de Fernando VII, e nisso sua política, embora em círculo muito limitado, evidenciou-se portentosa.”

Assim, verifica-se que a dominação lusa não acontece somente pela força militar, outros componentes, como os de caráter político, são de fundamental importância para a permanência de Lecor no poder. O trecho acima também evidencia o lado político do general, além de que há a existência de um grupo em Montevidéu que dá-lhe suporte e articula com ele, e que existem alianças e negociações entre o militar e os habitantes da cidade ocupada.

Segundo Duarte, a conquista só concretiza-se em função das habilidades pessoais de Lecor:

“[...] o General Lecor emprestou grande contribuição pessoal [à tolerância e simpatia dos orientais em relação as tropas de ocupação], impondo a seus comandados uma disciplina que contrastava com o bárbaro procedimento dos soldados de Otorgués [representante de Artigas em Montevidéu]; sobretudo atuando junto aos párocos, de maneira que estes influíssem na opinião das ovelhas de seus rebanhos [...]”

A respeito, é válido observar a relação de Lecor com a Igreja Católica. As forças ocupadoras têm, desde o início, o apoio do padre Larrañaga que, a princípio, pode ser entendido como o representante do clero católico na administração portuguesa de Montevidéu. Larrañaga está ao lado de Lecor em diversos momentos da administração do general, como, por exemplo, no Congresso Cisplatino, e na instalação da Escola de Lancaster na Cisplatina17.

Sobre o Congresso, realizado em julho e agosto de 1821, os seus deputados – Larrañaga é um deles – votam pela incorporação da Banda Oriental à monarquia portuguesa sob o nome de Estado Cisplatino Oriental, sendo, inclusive, a nomenclatura sugerida pelo sacerdote18. Grande parte da historiografia uruguaia aponta os congressistas como aliados de Lecor, e que o resultado do Congresso foi fruto das articulações políticas entre o general e os orientais. O contato com as atas do Congresso, disponíveis no Archivo General de Nación de Montevidéu, permite verificar o processo de articulação política entre Lecor e os congressistas em torno da criação da Cisplatina.

A Escola de Lancaster é implementada devido à atuação de Larrañaga e, com a aprovação do Cabildo, Lecor autoriza a implementação do método no território que está sob a sua autoridade. A Sociedade Lancasteriana de Montevidéu, constituída no dia 3 de novembro de 1821, tem como presidente Lecor

Assim, a participação do padre na constituição da Sociedade Lancasteriana, na adoção do método de ensino, e na criação da Cisplatina, são evidências que mostram a participação do sacerdote no governo luso-brasileiro e a proximidade existente na relação entre Larrañaga e Lecor. O relacionamento entre os dois também evidencia a participação oriental na administração Lecor.

Entretanto, apesar de ocorrer a participação de habitantes locais na administração do general, Lecor também atua na repressão aos seus opositores. Ele ordena, via uma publicação, que em relação aos seus oponentes a ordem é a de que

“[...] tais partidas seriam tratadas como salteadores de estradas e perturbadores da ordem pública. E, no caso de não poderem ser aprisionados os autores de tais atentados, se faria a mais séria represália às famílias e bens dos chefes e elementos dessas partidas, podendo [...]
  • Exército português [...] queimar as estâncias e levar suas famílias para bordo dos navios da esquadra.”19


Com isso, pode-se perceber a repressão por parte do governo de Lecor aos seus opositores. Autores uruguaios com os quais obtivemos contato caracterizam o governo de Lecor como violento. O que é bem provável, pois a força ocupadora, por mais que tenha um grupo que a apóie, tem os seus oponentes, que precisam ter a sua atuação anulada. Ressalta-se, também, que os opositores agem através da força e em um contexto de guerra, então para silenciar a oposição, emprega-se igualmente a força.

Provavelmente, Lecor, em determinados momentos, usa da força para alcançar os seus objetivos, no entanto, não pode-se ignorar a questão da cooptação, onde Lecor conquista a sociedade montevideana com títulos, festas e promessas.

Durante a administração Lecor, mais precisamente em 1819, é construído um farol na Ilha das Flores, nas imediações de Montevidéu. A alegação é a de que no local ocorrem constantemente acidentes – o que não é falso, inclusive, na ocasião, havia ocorrido um –, no entanto, o farol de Lecor tem um preço: o Cabildo montevideano passa para o Rio Grande vasto território pertencente à Banda Oriental.20

Neste território, de escassa população, mas abundante em gado, os ocupadores fazem vastas doações a oficiais e soldados portugueses e brasileiros, constituindo, deste modo, grande dependência econômica do território doado com o Rio Grande, “[...] a la que se pretendió anexar en 1819 con el denominado Tratado de la Farola que fijaba el límite meridional de aquélla en el río Arapey.”21

Ainda sobre a atuação de Lecor à frente do governo instalado em Montevidéu, observa-se que o personagem atua com relativa autonomia em relação ao monarca português, principalmente nos últimos momentos de união de Portugal e do Brasil. Como exemplo, pode-se citar o Congresso Cisplatino, onde o general age diferentemente das ordens do governo português, bem como procura atender os seus interesses e os do seu grupo de apoio:

“En uso de las amplias facultades que le diera la Corona, Lecor había gobernado la Provincia Oriental de manera absoluta y, en algunos casos, con independencia de la voluntad del Soberano y sus ministros, especialmente en los últimos tiempos en que los graves acontecimientos políticos de la metrópoli, rodearon de atenciones a estos últimos. La celebración del congreso dispuesta por Juan VI, fue encarada por Lecor como un asunto de su interés particular y del de su círculo. El ‘Club del Barón’ llamaron los contemporáneos a ese grupo político integrado en distintas épocas por Tomás García de Zúñiga, Juan José Durán, Nicolás Herrera, Lucas J. Obes, Dámaso A. Larrañaga, Francisco Llambí, Francisco J. Muños, Jerónimo Pío Bianqui, José Raimundo Guerra, entre otras figuras de menor volumen.”22

A respeito da participação de Lecor no Congresso Cisplatino e da conjuntura no território oriental à época do resultado da votação, Duarte afirma que

“Se a incorporação da Banda Oriental aos domínios da Coroa Portuguesa havia sido uma vitória pessoal das qualidades do Barão da Laguna, nem por isso foi ele justamente recompensado de seu árduo trabalho. Por essa época, irrompeu nas fileiras da Divisão de Voluntários Reais o manifesto desejo de retornar a Portugal [...]”23

Pode-se constatar na extração acima as dificuldades que as tropas portuguesas estão a causar durante a administração de Lecor. Agrega-se, também, a habilidade política que o general tem que ter para mantê-los e comandá-los de maneira conveniente aos seus interesses.

Nesse momento, a situação do grupamento militar português instalado no território oriental é de insatisfação. As tropas portuguesas são a favor de que se jure a Constituição, enquanto Lecor não apóia o juramento, assim como as tropas americanas24 e, ainda, os lusos reclamam pelo fato de não receberem há vinte e dois meses e desejam retornar para Portugal.

Outra insubordinação que Lecor tem que lidar durante a sua administração é o motim das tropas portuguesas em 20 de março de 1821. Na ocasião, aquela Divisão, na praça de Montevidéu, reivindica o comprometimento do Barão da Laguna com a constituição e, ainda, exige a presença de Lecor para que seja formado um Conselho Militar sob a presidência do mesmo.

Agrega-se, ainda, que é proclamada e jurada a Constituição que viesse a ser realizada pelas Cortes de Portugal, e as forças lusas obrigam Lecor a fazer o mesmo. Estas tropas também solicitam a D. João VI o regresso ao seu país de origem.

Sobre o episódio acima, Duarte25 afirma que a conspiração é chefiada pelo “turbulento” e “sumamente ambicioso, agitado e despótico” Coronel Claudino Pimentel que, tendo perdido uma promoção para o Coronel D. Álvaro da Costa de Sousa Macedo, passa a “formar na facção dos revanchistas”.

Assim, Pimentel lidera o movimento, aproveitando-se do desconhecimento da tropa do que está ocorrendo na Europa. Observa-se ainda que, no caso de Lecor não aderir ao grupamento reivindicador, ele estaria deposto e substituído por Pimentel.

A atitude de Lecor diante de tal episódio é assim definida por Duarte:

“O arranhão na ‘disciplina militar prestante’ a que se sujeitou o Capitão-General, de certo modo foi um expediente hábil e sagaz, atendendo à situação periclitante em que se encontrava à frente dos destinos políticos da Banda Oriental. [...] Foi um recurso extremo, empregado somente por aqueles que têm alto sentido político, para safar-se de críticas situações.

E o Barão da Laguna, parecendo vencido nessa batalha contra alguns de seus camaradas ambiciosos, era na verdade o vencedor, pois foi capaz, com uma atitude paciente e tolerante, de impedir o agravamento da situação política em que se encontrava, sem ter em quem escorar sua autoridade, em face dos graves acontecimentos ocorridos fora da sua área de comando, em Lisboa e no Rio de Janeiro, e que fatalmente propiciariam a eclosão de uma revolta declarada, sem precedentes, no seio da Divisão de Voluntários Reais.”26

Com a extração acima verifica-se as características políticas do personagem, apresentando atitudes pensadas, premeditadas e pragmáticas de Lecor.

Esta não é a única insubordinação que Lecor tem que enfrentar enquanto está no poder. Alguns meses mais tarde, mais precisamente na noite de 23 de julho, ocorrem novos problemas com as tropas lusas, em virtude dos soldos atrasados e do desejo de retornarem para Portugal.27

Assim, em 1821, a relação entre Lecor e as tropas lusas tornam-se tensas, estando a aproximação de Lecor com o governo do Rio de Janeiro como um dos fatores, bem como a assinatura da Constituição. Os portugueses são favoráveis a questão constitucionalista e ao movimento que originou-se no Porto, já Lecor não, posterga o seu posicionamento público em relação a Constituição. Sobre a questão, Devoto afirma que “El ejército portugués americano parecía no estar dispuesto a reconocer la Constitución liberal; los ‘Voluntarios Reales del Rey’ eran decididos partidarios de ella.”28

Durante a permanência de Lecor no poder, há também momentos de tensão com os governos limítrofes. O Barão da Laguna cogita e articula uma invasão a Entre Rios. Carreras e Alvear, opositores do governo portenho, buscam o apoio do militar português para ocupar militarmente Entre Rios. No entanto, a possibilidade da ocupação malogra, dentre outros fatores, pelas turbulências ocorridas no interior das tropas de Lecor.29

No que diz respeito a Buenos Aires, quando o General Martín Rodrigues toma conhecimento da ordem para a realização do Congresso Cisplatino, ele redige epistola ofensiva a Lecor, taxando o general português de o “dono do Mundo”30. Em ofício de seis de julho a Estanislao Lopez, líder de Santa Fé, Rodríguez ressalta o perigo do expansionismo luso na região. Acreditando que o Congresso poderia votar pela anexação do território oriental à monarquia portuguesa, o general portenho expõe a Lopez que poderia haver também a apropriação, por parte de Portugal, do território oriental ao Paraná, e que Santa Fé e o Paraguai poderiam vir a ser vítimas da expansão lusa na região.31

Rodrigues, em função do expansionismo luso no espaço platino e das atividades de Lecor neste sentido, “[...] dirigió en abril 1º de 1821, un violente oficio al Barón de la Laguna en el que calificaba de insulto la ocupación de la Provincia Oriental y pedía satisfacciones por las maniobras para invadir Entre Ríos [...]” e que “El plan del Gobierno de Buenos Aires era provocar la insurrección en la Provincia Oriental para apoyarla luego”.32 Os portenhos tentam cooptar para a sua causa Fructuoso Rivera, que permanece ao lado de Lecor, e o plano não vinga.

Assim, não só a possibilidade de ocupar Entre Rios causa em Buenos Aires a hostilidade em relação ao Barão da Laguna e a ocupação luso-brasileira. O asilo que Lecor outorga a Carreras e Alvear contribui para o recrudescimento das relações entre o general e Buenos Aires.

A respeito da relação entre os governos luso-brasileiro e portenho, Devoto afirma que

“[...] se habían desarrollado en un terreno de neutralidad hasta el momento en que la protección dispensada en Montevideo a Carrera y Alvear, y posteriormente el apoyo prestado a los planes de Ramírez contra Buenos Aires, llevaron al ánimo de aquel Gobierno el convencimiento de que las aspiraciones de los portugueses en el Río de la Plata – de Lecor y su partido, mejor dicho – eran de una latitud indefinida.”33

Em novembro de 1821, mesmo depois da derrota de Ramírez, Lecor continua a ser uma ameaça a Entre Rios, tanto que o novo governador, Lucio Mansilla, através de ofícios, busca a cordialidade com o general português, evitando, deste modo, a invasão do território entrerriano. Lecor e Mansilla acabam por acordar a neutralidade, o primeiro não interviria em Entre Rios e o segundo faria o mesmo em relação à Cisplatina.34

Com a Independência do Brasil, agrava-se outro ponto de tensão existente na administração Lecor: o contingente militar luso. O Barão e as tropas portuguesas ficam de lados opostos, lutando uns contra os outros até 1824.

A respeito dos últimos anos de vida de Lecor pode-se dizer que após negociações de paz entre portugueses e brasileiros, em 1824, o general retorna a Montevidéu, ficando toda a Cisplatina sob o controle brasileiro, sendo este núcleo urbano o último ponto português na América.

No ano seguinte, o Império do Brasil eleva Lecor a Visconde da Laguna. Entretanto, a partir daí, o general enfrenta uma série de derrotas. Em 1825, os 33 orientais35 declaram a independência da Cisplatina e a reunião desta com as Províncias Unidas. Iniciam-se as lutas com os insurgentes, no que depois vem culminar na declaração de guerra do Brasil às Províncias Unidas do Rio da Prata, em 10 de dezembro de 1825, e a declaração dos portenhos, no primeiro dia de 1826, aos brasileiros. Assim, esse é o primeiro conflito externo do Brasil independente.

É válido observar que antes mesmo da resposta argentina, mais precisamente no dia 18 de novembro de 1825, Lecor é destituído pelo Imperador do governo da Cisplatina. O substituí o Tenente-General Francisco de Paula Magessi Tavares de Carvalho, futuro Barão de Vila Bela.

Lecor fica no comando do Exército do Sul, no entanto, é logo exonerado pelo Imperador, substituindo-o o Marquês de Barbacena. Porém, Lecor retorna ao cargo por mais duas vezes, somando três vezes a sua seleção.

Em 1828, após a intermediação da Inglaterra, finda-se o conflito entre o Brasil e as Províncias Unidas, criando-se a República Oriental do Uruguai. Não havendo mais o conflito entre Portugal e Espanha no território oriental, Brasil e Argentina, nos anos seguintes, exercem a sua influência e interferência na política uruguaia.

Em 1829 Lecor é promovido a marechal-de-exército e, assim, passa para a reserva. Entretanto, apesar da promoção, neste mesmo ano o Visconde da Laguna é submetido a um Conselho de Guerra Justificativo, em função da Guerra da Cisplatina, onde a votação é pela absolvição de Lecor. Após seu julgamento, o militar ainda preside uma comissão que tem o objetivo de reformar o artigo 150 da Constituição do Império, referente ao exército.

No dia 3 de agosto de 1836 falece Carlos Frederico Lecor, no Rio de Janeiro, a contar 72 anos de idade, sendo sepultado na Igreja de São Francisco de Paula. Lecor deixa como viúva a Viscondessa da Laguna, sem descendentes diretos e, segundo Duarte, o militar expira em uma má situação financeira.

Fonte

O Marechal Carlos Frederico Lecor :


A bandeira da Cisplatina :
Blog Olivença é Portugal
"Se és Alentejano, Deus te abençoe...se não
és, Deus te perdoe" (Frase escrita num azulejo
patente ao público no museu do castelo de
Olivença).

:XpõFERENS./
 

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pedro

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(sem assunto)
« Responder #1 em: Julho 07, 2006, 11:31:02 am »
Uma historia muito interresante.
Cumprimentos
 

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quintanova

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    • Em Busca de Lecor
(sem assunto)
« Responder #2 em: Março 09, 2008, 09:14:32 am »
Um Soldado do seu Rei

Numa época em que de soldados patriotas se passou rapidamente a soldados políticos – não deixando nunca de ser soldados ideológicos, Carlos Frederico Lecor (1764-1836) destaca-se não por ser diferente strictu sensu, mas por manifestar um sentido de dever que o levou diligentemente ao topo da carreira. Militar de corpo inteiro, fazia cumprir a disciplina e não permitia que faltasse nada aos seus subordinados. Isso é evidente em muita da minha pesquisa.

Lecor representa o novo oficial português, burguês, da classe média emergente, que entra no Exército nos finais do século XVIII, e que se confronta perante a velha fidalguia. Mas até aí, Lecor difere através da sua auto-disciplina, servindo o General Marquês de Alorna, cerca de 10 anos mais velho, e seu comandante desde 1797 até 1808. Para lá de uma relação de subordinação, há muito claramente uma relação de amizade íntima entre os dois, ambos educados segundo os cânones franceses, ambos filhos das luzes, pese embora a herança cultural distinta dos dois homens.

Lecor é também um homem da artilharia, que com a engenharia, constituía uma forte antítese técnico-ideológica dentro do exército, face às mais tradicionais cavalaria e infantaria. Nas aulas de artilharia dos 4 regimentos portugueses, nomeadamente a impulsionada pelo Coronel (depois brigadeiro) Rebocho, no Algarve, Lecor vê-se perante um rigor técnico que não existia em mais lado nenhum do exército.

A Legião de Alorna

Provavelmente foi esse rigor técnico e inovador que, mais tarde, em 1797 o fez entrar na Legião das tropas Ligeiras, que Alorna criou baseado na filosofia militar francesa. Uma unidade rápida e móvel, constituída por infantaria, cavalaria e artilharia – autónoma e elástica. Alorna decerto pretendia que a experiência alastrasse ao Exército Português, mas este era um animal lento e conservador. Podemos verificar muitas destas histórias em todos os exércitos do mundo.

A Legião do Alorna manteve-se no entanto, e veria a sua herança tomar a razão histórica aquando do formato napoleónico de guerra, nomeadamente a utilização dos chamados Caçadores, ou infantaria ligeira.

Lecor fez parte desse movimento, como ajudante d’ordens de Alorna, e como seu amigo. Terá decerto consolado o seu general em 1805-1806, quando os seus dois filhos morreram, num espaço de 11 meses, um com 19, outro com 18 anos.

Tentou convencer o marquês a fugir, em 1808, para a esquadra inglesa e para o Brasil, quando Junot instigou a necessidade de Portugal ter um rei – ele próprio.

Já Alorna tinha outras ideias, com certeza agastado com o velho exército, imóvel, conservador.

À parte: a do 3.º Marquês de Alorna, Pedro José de Almeida Portugal, seria outra biografia importante de ser escrita. Não conheço nenhuma, e a vida deste homem dava decerto um filme. As implicações de uma tal biografia seriam imensas e seria muito provavelmente algo que venderia bem [ já está escrita, descobri ontem, por José Norton – de comprar!].

Ruptura com Alorna e Novo Capítulo

Lecor cruza muito do mais substancial nesta época de transição mundial, ao qual Portugal responde como pode. Mas ele é um patriota, e não admitindo outro rei que D. Maria e o seu filho, o Príncipe-regente, D. João, sente que tem de fugir e juntar-se à resistência. Na Inglaterra de 1808, sabe das revoltas em Portugal e, em vez de ir para o Brasil, ajuda a construir uma nova Legião, e embarca para o Porto.

A questão das legiões é interessante e pode motivar um jogo interessante. Legião de Tropas Ligeiras, ou do Alorna; depois, a Legião Portuguesa, Legião Lusitana ou Legion Portugaise (ao serviço de Napoleão); finalmente a Leal Legião Lusitana, de certo modo resposta directa à Legion Portugaise, ajustando ideologicamente com a colocação de ‘Leal’ – não a desleal. O diálogo entre Lecor e Alorna brota, em certo sentido, da herança comum da Legião de 1797. No entanto, enquanto que Alorna sai de cena pela Espanha, largando desertores aos milhares, a legião de Lecor entra em cena gloriosamente no Porto que lidera a restauração de 1808.

Esta época determina uma período da vida de Lecor que acaba. Uma espécie de maioridade política e militar para o Tenente-coronel ajudante d’ordens de Alorna, que se vê Coronel (do R.I. 23, de Almeida) no final do ano quente de 1808, comandante de tropas em Castelo Branco, pronto a deter os franceses que vierem, com a plena confiança dos Ingleses.

Como com todas guerras, notamos claramente uma crescente ideologização da vida militar portuguesa que só vai cessar, se tanto, com a Guerra da Patuleia, quarenta anos depois. Chamemos-lhe a era dos generais políticos. Se bem que óbvia, esta definição de época é fundamental para perceber a vida de Lecor, que se enquadra sem alarido no formato inglês de Beresford, conforme lhe é ditado pelo Rio de Janeiro, ao contrário de Silveira e outros dos ascendentes generais políticos da restauração de 1808. Lecor é um oficial disciplinado, obediente e diligente e tem em mente a anulação da ameaça francesa.

A Guerra Peninsular

A sua carreira cresce exponencialmente de 1808 a 1814, desde Coronel em 20/11/1808 a Marechal de Campo em 4/6/1813. Comanda duas divisões do exército peninsular, uma delas, a 7.ª, na batalha de Nivelle, a outra Portuguesa.

É sempre um bom pupilo dos ingleses, sendo por eles constantemente louvado no treino como na guerra. Não fosse pelo facto de apenas se fazer compreender em francês, poderia talvez passar por inglês. Mas não, era português e continuava a ser o mesmo de sempre, mas favorecido pela época que o convocava a liderar tropas em guerra. A sua faceta de amigo revela-se em 1810 quando da 3.ª invasão francesa, quando faz apelos a Wellington para que possa tentar convencer, de novo, Alorna a retornar à sua Pátria. Mas a guerra não perdoa e assim se vêem portugueses contra portugueses, amigos contra amigos.

Em 1814, Lecor volta a Portugal desde a França rendida, liderando as forças portuguesas do agora extinto Exército Peninsular. Finalmente acabava a ameaça francesa que desde 1807 pairava sobre o Portugal dividido entre o nada poder fazer e o ter que efectivamente fazer.

Nos inícios de 1815, Lecor, ilustre Marechal de Campo, herói português, é nomeado Governador de Armas da Província do Alentejo. De certa forma, é o completar de um círculo, pois era esse o cargo do seu general, aquando da 1.ª invasão francesa em 1807. Um início para um novo período da sua vida, um em que, mudando tudo, não muda nunca a sua vocação de disciplina e de obediência, apesar de, para todos os efeitos práticos, mudar de nacionalidade, conceito que, apesar de tudo, fica bem difuso na sua definição de 1822.

O Portugal de 1815 é um país diferente, o único com a sua capital a sul do Equador, e com o foco estratégico na América do Sul. Assim se forma uma Divisão, a dos Voluntários Reais do Príncipe, destinada a invadir a Banda Oriental do rio da Prata. Lecor é chamado a comandá-la. Beresford escolhe o mais acertado general português, que desde sempre deu provas de ser apolítico, cumpridor e diligente.

O Lecor Brasileiro

Aqui, eu chego a uma época da vida de Lecor, bem documentada, nomeadamente através do livro do general brasileiro Paulo de Queirós Duarte, escrito em 1984, Lecor e a Cisplatina (1816-1828). Apesar de ser um honesto esboço biográfico do militar, não esconde a intenção principal, que é a de relatar a campanha e governo da Cisplatina, centrando-a no General e Governador (Capitão-General). A obra peca por dar pouca importância ao período anterior da vida de Lecor, o que ajudaria a aclarar muito das propriedades do homem. Dá no entanto o básico para nos ajudar a compreender Lecor.

in: http://www.lecor.blogspot.com/

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zocuni

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« Responder #3 em: Março 16, 2008, 09:29:20 pm »
Tudo bem,

Personagem interessante esse Carlos Lecor.Não conhecia suas façanhas.

Abraços,
zocuni
 

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quintanova

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    • Em Busca de Lecor
(sem assunto)
« Responder #4 em: Março 18, 2008, 12:19:06 pm »
Eu acho que é porque em geral, a memória é curta para com os guerreiros.
Embora no caso de Lecor haja também o facto dele ter assumido o serviço brasileiro em deterimento do português, em 1822/1823.

Seja como for, o Lecor foi, ainda ao serviço português, o único general a comandar uma divisão anglo-portuguesa do Exército Peninsular (a 7.ª).
Sendo Tenente-Coronel em 1808, era Marechal-de-Campo (Major-General hoje) em 1813 e o mais graduado oficial do EP em operações.
Foi ele que topou a vanguarda de Junot em 1807 e foi avisar o Príncipe-Regente a Mafra.
Comandou as forças portuguesas que conquistaram Montevidéu para a Coroa Portuguesa.

Como muitos militares, morreu Marechal do Exército na penúria económica, no Rio de Janeiro, estando hoje repousando na Igreja de S. Francisco de Paula.

Anos depois da sua morte, ainda familiares lutavam pela sua parte dos prémios (prezas) da Guerra peninsular, fora inúmeros bónus e soldos atrasados.

Moral da História - Os políticos só se lembram dos soldados quando há guerra. É sina e fado! Sempre assim foi, e sempre assim será...

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quintanova

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    • Em Busca de Lecor
Em hum dos dias do mes de Outubro
« Responder #5 em: Maio 09, 2008, 12:39:06 pm »
“Em hum dos dias de Outubro”, como se lhe referem as testemunhas, não se lembrando do dia exacto, o coronel Lecor (ou ‘Licores’, como lhe chama o corregedor Manuel Gomes Ferreira Valente), ao ver recusadas cavalgaduras por parte do mestre-de-portas de Azambuja [na foto, o centro de Azambuja] - puxa “da sua espada, insultando-o ao mesmo tempo de palavras”. De acordo com as informações que o corregedor recolhe das várias testemunhas, “chegou o referido Coronel (Licores) ao excesso de lhe dar huma bofetada”.

Tendo a queixa sido inicialmente feita pelo próprio coronel ‘Licores’, o corregedor Manuel Valente havia-se deslocado à vila de Azambuja, demitira o Mestre-de-Portas, Isidoro José Correia, e ouvira 31 testemunhas. Como resultado da sua inquirição, chegou à conclusão que, de facto, o coronel ‘Licores’ espetou uma 'galheta' ao Sr. Isidoro Correia, não sem antes o ameaçar bradando a espada no ar.
Vale como atenuante ao nosso amigo ‘Licores’ que as testemunhas referiram insistentemente que o Mestre-de-Portas tinha o irritante hábito de não mostrar qualquer respeito pelos vários oficiais do Exército que por ali passavam. Isto é, as poucas que viram algo ou se lembravam efectivamente de ter visto algo acontecer.

Para o coronel ‘Licores’, nosso herói e sujeito do blogue perante vós, o resultado poderia ter sido pior, mas foi mau. Levou, através de D. Miguel Pereira Forjaz, uma piçada real, do Príncipe Regente Dom João, datada de 1 de Fevereiro de 1810:

Constando ao P.R. N. Sr. por Devassa, a que mandara proceder sobre a representação de V. Me. contra o Mestre de Portas da Villa d’Azambuja, que tendo este justamente recusado dar as Cavalgaduras que V. Me. lhe pedira quando por ali transitou em Outubro do ano próximo precedente, visto que se lhe não mostrava titulo que autorizasse huma semelhante requisição, passara V.Me. ao excesso de puxar pela espada em acção de maltratar, insultando-o justamente de palavras injuriosas: He S.A.R. servido mandar estranhar a V.Me. hum tão desagradável e irregular procedimento, esperando que pª o futuro haja de conter-se nos limites da moderação e prudência que sempre devem regular as acções de hum official militar.

Nessa altura, a pressão francesa sobre as fronteiras portuguesas faz-se sentir cada vez mais. O espectro de uma terceira invasão, mais forte que qualquer uma das anteriores está na mente de todos. A batalha de Talavera e consequente retirada para Portugal estava ainda fresca de meses.
O trabalho do Marechal Beresford de reformar o Exército Português e enquadrá-lo nas tácticas e práticas britânicas tinha começado apenas há alguns meses e esse mesmo Exército carecia ainda de confiança e experiência de combate face aos temíveis Franceses que controlavam a Espanha de Sul a Norte.

Apesar do povo português pouco demonstrar no exterior, próprio da raça, o medo estava no ar, ainda que por vezes mascarado de indiferença. “Os Franceses vêm aí!” Os militares sabem-no melhor que ninguém, principalmente os colocados na fronteira, em contacto com cidades e vilas extremenhas.
Passará ainda pouco menos de um ano até uma batalha começar a alterar tudo isso – Buçaco, onde por cada britânico morre um português, nem mais nem menos. Fica assinada em sangue, suor e coragem a mais velha aliança da Europa.

Carlos Frederico Lecor seguiu o seu percurso de sucesso...
Isidoro José Correia foi readmitido ao serviço e pouco admirará que outro oficial tenha também perdido a paciência...
Não sabemos se o Corregedor da Comarca de Santarém, Manuel Gomes Ferreira Valente, alguma vez veio a saber escrever o nome ‘Lecor’, ou se se acomodou ao mais familiar ‘Licores’...

in: http://www.lecor.blogspot.com

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quintanova

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(sem assunto)
« Responder #6 em: Junho 26, 2008, 06:31:02 pm »
Corriam os últimos dias de Novembro de 1807, mais especificamente o 23, quando Carlos Frederico Lecor, nosso heroi, topou a vanguarda do Exército Francês na zona do Sardoal, a caminho de Abrantes. Como lhe fora ordenado pelo General Marquês de Alorna, a sua missão era clara, correr a avisar o governo e o Príncipe Regente. Fê-lo, de Abrantes a Lisboa (ao palácio real da Ajuda, diz-nos Luz Soriano), em 30 horas.

Aparece-nos, já havia dito noutro post, o tenente-coronel Lecor pela primeira vez na história, e de forma bombástica. Não só disse "Vêm aí os Franceses!", como todos diziam, mas disse especificamente aonde eles estavam e em quanto tempo chegariam a Lisboa.

Esta cavalgada foi uma de esforço, feita por um homem que sabia bem o valor da informação que tinha. O 5.º Marquês de Fronteira lembra-se, nas suas memórias, da noite em que Lecor parou no palácio em Benfica, sujo, cansado e trazendo cartas do tio Alorna. Impressões fortes num moço de 6 anos, então já Marquês.

Mas eis que numa história de competência e devoção ao serviço aparece o mito, do nada, escorreito e nas brumas da tradição oral. Ou isso ou erro crasso, prefiro o mito do heróico filho da Pátria:

«Cette nouvelle fut apportée à Lisbonne par le lieutenant-colonel Lecor (Charles-Frédéric), qui avait fait détruire le pont sur le Zezere, ce qui retarda de deux jours la marche de Junot». Benjamin Mossé, Dom Pedro II – Empereur du Brésil, 1889 - p. 4

Lecor, vendo a gravidade da situação e para preservar a Rainha e a Santa Religião, destruiu a ponte de barcas sobre o Zezere, junto a Punhete (hoje Constância). É imaginá-lo, na margem oposta, luminoso, passando a sua espada nas últimas cordas e empurrando as barcas para que se juntassem ao Tejo, um pouco mais a jusante.

A verdade é que se Lecor fizesse isso, seria um mau oficial, não só actuando sem ordens, como eliminando uma passagem estratégica tão importante para franceses como para uma eventual defesa portuguesa; ainda que ele próprio já soubesse não haver planos nem força para uma defesa. A missão dele era clara e cumpriu-a.

No entanto, o desejo e necessidade de herois no Portugal daquele momento era grande. Era importante ter homens que sozinhos conseguissem parar os franceses, pela sua inteligência e coragem.

Fica pois esta imagem de Lecor destruidor de pontes, atrasador de invasores, Heroi com H grande. O único que resistiu aos franceses, que ignorou ordens e simplesmente resistiu.

Mas não é assim Lecor; Lecor obedeceu às ordens e, meus amigos, era disto que Portugal, apesar de tudo, precisava e que finalmente em 1809 e até 1814 veio a dar muito jeito.
« Última modificação: Junho 26, 2008, 06:32:45 pm por quintanova »
 

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quintanova

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« Responder #7 em: Junho 26, 2008, 06:31:46 pm »
O caro leitor, permitindo-me que retome a questão da ponte de barcas sobre o rio Zezere, sabe decerto que toda a lenda tem o seu fundo de verdade, ou como se costuma dizer, onde há fumo, há fogo. Já verificámos que Lecor estava presente na área, mas com ordens que não passavam pela destruição de coisa alguma, mas o reconhecimento em busca da vanguarda de Junot. Ao descobrir essa vanguarda, pôs-se em marcha para Lisboa.

Mas de facto, onde há lenda, é porque há elementos, pelo menos dois, que coincidem no espaço e no tempo, convergindo e fundindo-se numa história.

Ora o exército de Junot, que virá a tomar o título de Exército de Portugal daí por um mês, já em Lisboa, teve realmente uma oposição feroz aquando da invasão - o Tempo. Passando por dificuldades até Abrantes e Punhete, principalmente a artilharia, mas em geral todas as armas, vem a vanguarda francesa descobrir que a célebre ponte de barcas sobre o Zêzere estava destruída, não pelo tenente-coronel Lecor, mas pelo próprio rio.

A ponte de barcas havia sido levantada aquando da Guerra das Laranjas, em 1801, e frequentemente acabava destruída pelo rio no pleno das chuvas de inverno. Várias vezes, de 1801 a 1807, a engenharia militar portuguesa apresenta os seus orçamentos para uma nova reconstrução. Lá se reconstruia e logo as chuvas retomavam a ofensiva anual.

Os Franceses, ao detectarem a ponte destruída, encarregaram o capitão Mezeur, um grupo de sapadores e mineiros catalães e também um destacamento francês, para que a reparassem. Tanto Maximilien Foy como Acúrsio das Neves indicam que as operações de reparação duraram a maior parte desse dia, atrasando de facto as forças franco-castelhanas. A força do rio Zêzere, assim como a subidas das suas águas, tornou a misssão extremamente difícil, causando algumas baixas entre os trabalhadores. A reparação da ponte só se dá por finda, após já metade das forças invasoras terem passado o rio de barco.

Acúrcio das Neves, dando-nos o benefício de o ler desde 1811, tão próximo dos acontecimentos, desmente uma versão circulada em que muitos franceses haviam morrido afogados durante as operações de reparação. Serve isto para nos mostrar o poder da lenda, ou do boato, consoante estamos longe ou perto no tempo. De facto, poucos invasores terão morrido afogados, mas do pouco a imaginação faz muitos.

Pela mesma altura em que a ponte era reparada, Lecor, o nosso heroi, estava em novo reconhecimento, já após ter avisado o governo. Tinha por missão continuar a avaliação do exército inimigo. Do Cartaxo, após ter ido à Golegã, relatou que o inimigo se encontrava ainda em Punhete e não é provável que chegue a Santarém antes do próximo dia. Acrescenta que os campos da Golegã estavam impraticáveis.

Esta mensagem será já recebida pelo Governo, embarcado no Tejo, esperando ventos para o Brasil.