O Imbróglio coreano Alexandre Reis Rodrigues
As mudanças nas chefias militares das Forças Armadas da Coreia do Norte, em Fevereiro de 2009, já indiciavam o que se está a passar presentemente. Kim Jong Il, em vez de renovar, foi buscar os mais ortodoxos fiéis do regime, numa manobra que então se considerou de captação do apoio militar à passagem de testemunho para o seu terceiro filho Kim Jong-eun. O sinal ficou dado no preenchimento do lugar de ministro das Forças Armadas para que foi escolhido o vice-Marechal Ki Yong Chen, de 73 anos, figura-chave do programa nuclear e de mísseis balísticos e responsável pelos incidentes com a Coreia do Sul em 1999 e 2002, incluindo, nesse mesmo ano, os ensaios nucleares que tanto alarme levantaram em todo o mundo.
Agora discutem-se os riscos de guerra, perante a escalada de tensões criadas por Pyongyang com o afundamento da corveta Cheonam em Março e do bombardeamento da ilha Yeonpyang em Novembro, situações a que, quer a Coreia do Sul, quer os EUA, responderam com grande contenção. Poderão manter essa postura no futuro se os incidentes continuarem?
A Coreia do Sul, ao substituir o ministro da Defesa, depois do afundamento da corveta, procurou dar um sinal de que reagirá em próxima ocasião, sem qualquer intimidação. O actual ministro adoptou um discurso de intransigência na defesa da integridade territorial, numa postura diferente da do seu antecessor, muito criticado pela falta de reacção militar. Os EUA, também até então muito cautelosos, resolveram, finalmente, a voltar aos exercícios militares com a Coreia do Sul, que adiaram sucessivamente depois do incidente de Março, e com o Japão, numa preocupação de deixar inequívoca a sua disponibilidade de apoio militar, surgindo essa necessidade.
O centro da questão continua, como até aqui, no desentendimento entre os EUA e a China sobre a forma de lidar com a Coreia do Norte, não obstante as recentes revelações da Wikileaks darem a ideia de que Pequim poderia estar já a dar sinais de impaciência com o comportamento de Kim Jong Il. Segundo alguns telegramas vindos a público, a China poderia estar a distanciar-se de Pyongyang e encontrar-se mais perto de aceitar a reunificação das duas Coreias, sob o entendimento que o regime não sobreviverá à morte do actual líder. Esta teoria, no entanto, não tem consistência, como veremos; aliás, disse-se o mesmo quando morreu Kim Il-sung em 1994, mas nada aconteceu nesse sentido.
Um afastamento China/Coreia do Norte, de facto, permanece como pouco provável; os telegramas que a Wikileaks revelou referem-se sobretudo a conversas entre diplomatas, que, pelo lado chinês, podem mesmo ter sido “dirigidas” para dar a ideia de abertura a outras soluções e de uma imagem de um país que não pretende impor soluções. A China, em qualquer caso, vai continuar a mostrar-se relutante em perder a “buffer zone” com a Coreia do Sul/EUA, que passou a dispor, através da Coreia do Norte, na sequência da Guerra de 1950/1953.
Em qualquer caso, de momento, nenhum país da zona se mostra interessado numa reunificação; nem mesmo a Coreia do Sul que teria que pagar a maior parte da respectiva factura. O Japão prefere uma Coreia do Norte sob controlo, pois mal grado a ameaça da posse de armas nucleares, Pyongyang não dispõe de veículos capazes de transportar ogivas devidamente miniaturizadas para esse efeito; uma Coreia unificada alteraria a avaliação que Tóquio faz do equilíbrio regional.
A possibilidade de volta às negociações no âmbito do Grupo dos Seis, em que a China tem particularmente insistido ultimamente e que a Coreia do Norte também deseja, continua remota. EUA, Coreia do Sul e Japão estão unidos numa frente que só as aceita se a Coreia do Norte der um sinal prévio de que está pronta a assumir compromissos de abandono do programa nuclear. Neste momento, esta posição faz sentido; aceitar conversações, sem quaisquer concessões prévias de Pyongyang, depois dos dois últimos graves incidentes, seria um sinal de fraqueza, como que uma recompensa pelos erros cometidos.
Também já se tornou claro que Pequim parece contentar-se em usar as negociações para gerir a crise sem ter que procurar resolvê-la; tendo recusado condenar a Coreia do Norte pelo afundamento da corveta, tarda em pronunciar-se sobre o último incidente. A continuar nessa linha, porém, arrisca-se a perder o papel de moderador que tem procurado preservar. As iniciativas diplomáticas de Washington junto de Seul e Tóquio, na procura de uma resposta unificada dos três vão precisamente nesse sentido. A Rússia, a partir do afundamento da corveta, passou a mostrar-se alinhada com as preocupações de segurança de Seul mas não é garantido que tenha abandonado qualquer coordenação com a China.
O mais influente diplomata chinês para a questão das Coreias, Dai Bingguo, apontado como tendo um relacionamento muito próximo de Kim Jong Il e que visitou Pyongyang e Seul, dias depois do incidente de Novembro, procura desdramatizar a situação com a teoria de que Pequim não tem qualquer pretensão de assumir o papel de liderança dos EUA e não quer estabelecer para a região uma espécie de doutrina Monroe; uma forma de dizer que não procura afastar os EUA sob a ideia de que a Ásia é para os asiáticos.
O que, de facto, está em causa, como atrás assinalado, é o relacionamento sino-americano, agora à luz da próxima visita do Presidente chinês Hu Jintao a Washington em Janeiro. O senador democrata Kerry, ex-candidato à Presidência no segundo termo de Bush, defendeu recentemente algumas mudanças significativas, sugerindo a substituição da actual política de contenção por uma política de estreitamento das relações, à semelhança do que foi feito por Nixon e Kissinger em 1972.
Kerry manifestou-se contra as correntes de opinião que defendem uma postura de confronto directo com a China/Coreia do Norte, lembrando que a interdependência económica e financeira exige sobretudo integração; segundo o senador, as desigualdades internas e os graves problemas políticos, sociais e ambientais com que Pequim se debate dispensam a necessidade de exercer muita pressão sobre o regime para fazer mudanças.
A posição da China está, de certo, ligada à percepção da necessidade da “buffer zone” acima referida, mas torna-se difícil compreender como Pequim deixa a situação evoluir para um nível tão crítico de instabilidade regional, não obstante a influência que tem sobre Pyongyang. Mais intrigante ainda é a forma como Kim Jong Il terá encontrado apoio externo para a construção das novas e muito modernas instalações de enriquecimento de urânio e de um reactor experimental de água leve. Com o regime de sanções decretado pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas é difícil conceber como terão sido possíveis estes avanços sem a ajuda ou conivência de Pequim. Esta nova realidade acentua a preocupação dos que vêm no programa nuclear coreano não apenas o risco decorrente da posse de armas nucleares mas também o risco de proliferação de materiais e tecnologia, à custa da qual a Coreia do Norte também se financia. Poderão estes aspectos não serem tidos em conta na definição da forma de relacionamento com a China?
Jornal Defesa