“Os Truques da Imprensa Portuguesa” dão a cara: “Não defendemos nem atacamos o Governo”Foi desvendado o mistério: os criadores da página "Os Truques da Imprensa Portugal" são Pedro Bragança (arquitecto) e João Marecos (advogado). Em entrevista conjunta (e por escrito) ao "Jornal Económico" recusam assumir a função de "provedores do leitor 'online'", dizendo que apenas formam uma "comunidade de leitores". E prometem manter a "vigilância" sobre a comunicação social.
O que é que vos motivou a criarem a página “Os Truques da Imprensa Portuguesa”?
Os “Truques” começaram por ser mais uma pequena página de Facebook. Propunha-se a reagir à forma como alguma imprensa intervinha intencionalmente na agenda mediática em Portugal. Não tínhamos um plano. Todas as páginas nascem com o tamanho dos seus autores. Assim foi com “Os Truques”: não éramos nada mais que nós, anónimos sob qualquer perspectiva, a escrever o que queríamos para um pequeno grupo de pessoas, como qualquer pessoa que nos lê o pode fazer. Com a evolução da página, esta tornou-se muito maior do que nós: passámos a ter seguidores, os nossos alertas sobre notícias passaram a ter impacto e um alcance tremendo. Com esse processo de evolução, fomos pensando e expondo na página os princípios a que aderíamos, o propósito que assumíamos, enfim: fomos criando as normas que guiam o nosso, agora sim, projeto. Um projeto público na sua propriedade e comunitário na sua orgânica. O que a página será, no futuro, é incerto. O que é hoje, é claro: o maior agregador de crítica de imprensa em Portugal. Como toda a crítica, há quem concorde ou quem discorde. Mas não vendemos factos, que são ou não são: construímos e oferecemos pontos de vista, que são os nossos, necessariamente enquadrados pela nossa realidade, necessariamente subjetivos, e que podem ser aceites ou rejeitadas por quem os lê.
Nesse momento inicial esperavam vir a ter mais de 150 mil seguidores e o reconhecimento público que ficou patente nestes últimos dias, para o bem (os vossos admiradores) e para o mal (os vossos detratores)?
Não esperávamos. O sucesso da página confirma a nossa intuição inicial de que havia um desconforto generalizado com abordagens de alguma imprensa em relação a alguns temas. Também não tínhamos noção de toda a extensão de truques, erros ou malabarismos que se fazem. Fomos ganhando essa consciência à medida que nos foram chegando mais e mais denúncias. No total serão muitos milhares de denúncias. O reconhecimento da página, para o bem e para o mal, tem a grande virtude de proporcionar um debate sobre várias coisas, desde a legitimidade do anonimato ao papel da imprensa e dos jornalistas no jogo da democracia.
A intenção era criar uma página humorística, ou já levavam a sério a iniciativa e queriam assumir o papel que agora parecem desempenhar de “provedores do leitor ‘online’”?
Como dissemos, não havia um projeto. Isto que vêem hoje é algo muito depurado, é um produto que resulta de diversas fases de reorganização e revisão, daquilo que nós achámos que devia ser o objeto da página, à medida que fomos ganhando muitos seguidores e com eles muita responsabilidade. A página dos “Truques” é um processo e não um facto consumado. Inicialmente fazíamos as brincadeiras que queríamos, publicávamos coisas para nós. Não se esqueçam que não começámos a fazer a página para 150 mil pessoas, mas literalmente para duas. Foi um caminho que se fez e será um caminho que se fará.
Até há alguns anos atrás, os jornais tinham “provedores do leitor” que faziam mais ou menos o vosso papel, mas de uma forma mais especializada, na medida em que costumava ser desempenhado por jornalistas veteranos, com grande experiência e conhecimento da profissão. Acham que os jornais deveriam voltar a ter “provedores do leitor”? A vossa página está de algum modo a preencher esse vazio de auto-crítica e auto-escrutínio do jornalismo?
Nós não somos provedores do leitor: esse papel, nos casos em que não está ocupado, permanece por ocupar e mal, pois é da maior importância que cada jornal indique um interlocutor com o qual os leitores podem interagir. Nós somos leitores, tão somente. Somos uma comunidade de leitores. O anonimato do João e do Pedro acabou, mas a página continua a ser uma comunidade, com artigos a surgirem de denúncias que nos chegam à caixa de mensagens, com correções que nos sugerem nos comentários, enfim, com a colaboração de muita gente. A tentação de personalizar o conteúdo de página em nós os dois vai existir e estamos inteiramente tranquilos com isso, porque temos orgulho no trabalho que a página desenvolve. Quem quiser criticar, ofender, atacar, já tem os seus alvos. Mas se for para atribuir louros, méritos à página, então esses não nos pertencem nem os queremos. “Os Truques da Imprensa Portuguesa” não são o João e o Pedro, são as milhares de pessoas que contribuem diariamente para uma pressão vigilante de leitores à sua imprensa.
Porque é que ocultaram as vossas identidades até serem forçados a revelá-las? O que temiam mais: poderem vir a ser prejudicados nas respetivas vidas profissionais, ou que colocassem em causa a imagem de isenção e independência da página através da divulgação de ligações a partidos políticos?
A imagem de isenção e independência da página foi colocada em causa, desde logo, a partir do momento em que começámos a ter um número elevado de seguidores. E éramos anónimos. Não temíamos porque essas acusações sempre se fizeram. Felizmente, para nós, já nos ligaram a quase tudo, seja em política, desporto… É importante distinguir os dois conceitos. Nós nunca prometemos uma falsa ou pretensa isenção. Quem está numa posição de crítica tem de tomar parte e é isso que está escrito desde os primeiros dias na nossa declaração de princípios, várias vezes republicada: “Esta página não é nem pretende ser um instrumento de informação. Não somos um órgão de comunicação social, não possuímos estatuto editorial, nem respondemos perante a lei da imprensa. Exigimos isenção, imparcialidade e equilíbrio. Para isso, temos de tomar posições e tomar posição obriga-nos, necessariamente, a assumir uma parte. Não nos fazemos passar por aquilo que não somos nem nos substituímos a quem não nos podemos substituir. Se procura imprensa, compre. Aqui não a encontrará porque também não a vendemos.”
Não receiam, portanto, que surjam dúvidas em torno dessa imagem de isenção e independência.
Já a nossa independência nunca esteve sequer em causa. Somos independentes no plano crítico, financeiro, e levamos muito a sério essa ausência de dependências ou obrigações. Cremos que o fim do anonimato não alterou uma vírgula na relação de cada seguidor (ou não seguidor) com a página. Quem seguia e confiava, continua a seguir e confiar. Quem não seguia e não confiava, continua a não seguir e não confiar. A questão é mais profunda: porque é que alguém precisa de saber quem é a pessoa por trás da crítica para saber se deve ou não concordar com ela? Nós, se não sabemos quem é o autor, não assumimos que ele é isento e imparcial. Pelo contrário. Lemos tudo sob o pressuposto de que a pessoa que escreve é altamente parcial. E julgamos o que lemos através do nosso próprio julgamento. E concluímos: esta crítica é altamente parcial, não concordo; ou pelo contrário: não sei quem é o autor, mas a crítica faz todo o sentido, quer ele seja altamente parcial, quer ele seja completamente alheio a isto tudo.
A falácia genética, que consiste em aprovar ou desaprovar algo com base apenas na sua origem, chama-se falácia por alguma razão e não deixa de o ser por se gritar “Cobarde!” a altos berros. É nessa falácia que laboram todos, mesmo os que têm boas intenções, todos os que pretendem que sem a identidade dos autores, a origem da crítica, não se pode avaliar o valor dessa crítica. A falácia “ad hominem”, por seu lado, consiste em negar uma proposição com uma crítica ao seu autor e não ao seu conteúdo. E esta falácia não morre por sermos anónimos, claro: recebemos muitas destas quando, saltando por cima da crítica, nos vinham criticar o anonimato. Mas perde força quando não se baseia em coisas concretas, como agora passará a acontecer. Por exemplo: eu, João, sou do Benfica; faço uma publicação em que denuncio um truque contra o Benfica; estou sujeito a que me digam: “este post foi o lampião a fazer, que falta de isenção…” Mas, na verdade, o facto de o João ser benfiquista não retira em nada legitimidade à sua crítica a uma notícia sobre o Benfica. Se essa crítica for, de facto, falaciosa, tanto faz o João ser benfiquista ou portista, porque a crítica em si será sempre inválida. E essa crítica tem autonomia por si e um valor próprio. Sobre o direito ao anonimato escreveremos um dia por extenso. Será necessário lançar um debate amplo sobre a questão, em que cada um entre com a disponibilidade de ouvir os argumentos dos outros. Quem tem certezas absolutas, e nós nunca as tivemos, não é útil. Sobre o direito à privacidade, não precisamos de dizer muita coisa. Não somos figuras públicas nem quisemos tornar-nos com esta página. Também não somos uns eremitas que se recusam a aparecer. Simplesmente, queremos aparecer nos nossos termos. Esta página tornou-se, para nós, uma espécie de voluntariado, o nosso contributo fora daquelas que são as nossas carreiras próprias, através da qual podemos oferecer alguma coisa à melhoria da democracia – porque não há democracia sem imprensa. Não ganhamos um cêntimo com “Os Truques”. Gastamos horas e horas sem ficar com louros de nada, que dispensamos perfeitamente. O facto de não aparecermos para navegar o sucesso da página incomodou muita gente.
Além do Pedro Bragança e do João Marecos, quem são os outros administradores ou editores da página?
Não há outros administradores. Fundámos os dois a página em 2015 e somos atualmente os únicos administradores. Com o tempo, fomos desafiando malta mais nova e lançámos até uma espécie de concurso público para novos colaboradores. Um “Call for Editors”. A nossa defesa do anonimato mantém-se e estende-se a todos os que colaboram ou colaboraram com a página. Quem quiser assumir a sua participação, é inteiramente livre de o fazer. Quem não quiser, não precisa de o fazer.
Que jornais é que lêem regularmente? E refiro-me a conteúdos pagos, na edição em papel ou “online” mas pagos. Esta pergunta resulta do facto de a maior parte das vossas publicações estarem relacionadas com conteúdos gratuitos, disponibilizados nos “sites” de órgãos de comunicação social, ou conteúdos de estações de televisão, e não propriamente com publicações da imprensa escrita. Nunca vi um recorte de jornal na vossa página, por exemplo, ou um conteúdo pago, restrito a assinantes.
Subscrevemos o “Público” e o “Expresso”. Compramos esporadicamente outros jornais, portugueses e estrangeiros. Subscrevemos a “The Atlantic” e, por períodos e para temas específicos, o “The New York Times” e o “Libération”. Não temos por hábito comprar imprensa desportiva, à exceção da “Panenka”, uma revista espanhola muito recomendável. Não é verdade que só publiquemos conteúdos gratuitos. São inúmeros os exemplos de conteúdos pagos partilhados pela página. Apenas em casos muito excepcionais e justificados colocamos recortes de jornais. Primeiro, porque consideramos um desrespeito fornecer publicamente, no próprio dia, um conteúdo integral que custou dinheiro a produzir. Depois, porque as nossas subscrições são “online” e só quando nos enviam para a caixa de mensagens denúncias com recortes digitalizados é que os vemos. Diríamos que os nossos recortes são, fundamentalmente, “screenshots”, os recortes dos tempos modernos.
Uma das grandes fontes de “truques” que denunciam na página é o denominado “clickbait”. Mas julgo que há dois tipos de “clickbait”: o que sugere falsidades ou induz em erro, prática inaceitável; e o benigno que recorre a títulos mais enigmáticos, parcelares, com o intuito de cativar o leitor do Facebook no sentido de visitar o “site” do órgão de comunicação social que produziu (com custos) aquele conteúdo. Porque é que não distinguem entre os dois tipos de “clickbait” e tratam tudo por igual?
Não há “clickbait” benigno. Aquilo a que chama “clickbait” benigno não deve ser, para nós, considerado “clickbait”. No atual modelo de negócio, os jornais não podem sobreviver sem visualizações nos seus espaços próprios, porque, como sabemos, o “buzz” nas redes sociais não dá qualquer retorno financeiro. Do nosso ponto de vista – que, insistimos, não é o ponto de vista de especialistas, mas sim de leitores –, este facto obriga a toda uma reorganização das bases do jornalismo e do seu sistema produtivo. Isso inclui, naturalmente, a forma de fazer títulos. Para nós, um título que suscite curiosidade, que contenha um enigma, que, sendo esclarecedor, convide o autor a ler o resto do texto é um bom título. Não é “clickbait”. O “clickbait” é um título que engana intencionalmente o leitor e o leva a concluir, antes do “click”, algo que depois não se confirma. Por exemplo, a 29 de janeiro, o suplemento económico do “Jornal de Notícias” e “Diário de Notícias” escreveu: “Trump em Portugal” e, depois, a notícia era sobre a forma como alguns portugueses viam Donald Trump. Não é sério, é “clickbait” e é um título terrível. Aliás, basta-nos ir à etimologia da palavra: “click”+”bait” = isco de cliques. Tal como os iscos de pesca são um logro para os peixes e representam o seu fim, o “clickbait” é um logro para os leitores e, neste caso, representa o fim para o jornalismo. Está mais do que provado que não é esse o caminho, porque, mesmo que resolva temporariamente alguns problemas e ajude a enfrentar um cenário financeiro aflitivo, cria um processo de erosão irreversível e que vai acabar por destruir o mais importante e mais original no jornalismo: a confiança dos leitores. Essa confiança é minada por notícias erradas, notícias manipuladoras, notícias fraudulentas ou “clickbaits”. Notícias lêem-se em qualquer lado. É pela confiança que se paga.
Assistimos a uma contínua perda de leitores de jornais, desde há mais de uma década. O jornalismo português atravessa uma crise profunda: desemprego generalizado, redações com cada vez menos trabalhadores, condições laborais a degradarem-se. Em grande parte por causa da quebra das receitas de publicidade. A aposta no “online” visa captar uma parte dessas receitas e mesmo assim não tem sido suficiente, ou ainda não é suficiente para consubstanciar um modelo de negócio minimamente rentável. Ou pelo menos sustentável. Têm em consideração esta realidade quando fazem apelos diretos a que não se comprem jornais? Ou quando reparam que a maior parte dos vossos seguidores se vangloria de não ler jornais? Refiro-me mais uma vez a conteúdos pagos, na edição em papel ou “online”.
Nunca, em momento algum, apelámos a que não se comprassem jornais. Nunca. Pelo contrário, sempre que nos perguntam “que jornal recomendam” a nossa resposta é invariavelmente “vários, porque diversificar as fontes é a melhor maneira de encontrar a verdade”. É, portanto, absolutamente falso que façamos ou tenhamos alguma vez feito esse apelo ou que façamos uma apologia da desinformação. Só por má fé ou não acompanhamento da página se pode dizer uma coisa dessas. Qualquer seguidor da nossa página sabe isto perfeitamente. É essencial que se perceba que nós não somos contra o jornalismo nem odiamos o jornalismo. Antes pelo contrário. É por considerarmos o jornalismo vital que promovemos a exigência em relação a ele.
Apesar da crise do modelo de negócio da imprensa escrita, no Reino Unido ou nos EUA há vários jornais que mantêm vendas superiores a um, dois, três milhões de exemplares. Em Portugal, os mais vendidos estão na ordem dos 100 mil exemplares. E os números das assinaturas “online” ainda são muito reduzidos e não compensam a perda de leitores dos últimos anos. Se as pessoas em Portugal não estão dispostas a pagar pela informação que consomem, mesmo quando se trata de valores quase irrisórios como as assinaturas “online”, na vossa perspetiva, de que forma é que se poderá dar a volta a esta situação?
Temos opiniões pessoais sobre isso, mas não falamos por ninguém. Pagamos para ler bons conteúdos, boas reportagens, boas entrevistas, boas crónicas. Achamos que é preferível que sejam os leitores a financiar um jornal, ao optarem por pagar bons conteúdos, do que um grupo económico ou um mecenas. Achamos que é preferível que sejam os leitores do que o Estado, como acontece em diversos países, como em França. Mas também sabemos que, em Portugal, há uma esmagadora maioria da população que não vê vantagem em pagar por informação. E que parte dessa esmagadora maioria nem tem, sequer, condições económicas para equacionar a opção. A informação é um privilégio que precisa de ser democratizado. Não há fórmulas mágicas, mas a preservação do contrato de confiança entre os jornais e os leitores é um bom princípio. Talvez a entrada dos jornais no “online” tenha sido mal programada, embora esse seja um tema que preferimos deixar para aprofundamento dos especialistas. Mas, enquanto meros leitores, temos algumas questões. Como é possível quererem que as pessoas paguem por um jornal se no separador ao lado têm outro que é inteiramente grátis? Sim, até pode ser pior. Sim, é financiado por um grupo económico ou por um grupo de empresários cujo interesse em manter uma estrutura altamente deficitária não é, à partida, compreensível. Mas, obviamente, este factor é um factor de desvalorização global de todo o “online”.
..... (ver artigo original)
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