A independência do Kosovo
Alexandre Reis Rodrigues
Finalmente, quase dois anos depois, chegou a resposta ao pedido da Sérvia à ONU para que o Tribunal Internacional de Justiça se pronunciasse sobre se «a declaração unilateral de independência pelas instituições provisórias de autogovernação do Kosovo está de acordo com o Direito Internacional».
Numa votação de 10 votos a favor e quatro contra, o Tribunal emitiu o parecer, não vinculativo para a ONU, de que a declaração era legal à luz do direito internacional. É uma resposta directa à questão posta pelo Estado sérvio; no entanto, não encerra o assunto. O acesso à independência pressupõe que no seguimento da declaração venha o reconhecimento formal da situação por outros países; terão que ser, pelo menos dois terços do número actual de membros da ONU. Presentemente, são apenas 69 os que se pronunciaram favoravelmente; enquanto este número não atingir o nível dos 128, o Kosovo não será reconhecido, pelas Nações Unidas, como país independente e soberano.
O assunto será sempre polémico porque, ao contrário dos seis países que se tornaram independentes na sequência do desmembramento da antiga República da Jugoslávia, o Kosovo era apenas uma província da Sérvia; não era um país membro da Federação. A Resolução 1244 do Conselho de Segurança, de 10 de Junho de 1999, que autorizou uma presença civil e de segurança sob a égide das Nações Unidas para pôr fim à tragédia humana por que estava passar o Kosovo, confinou as acções a tomar à observação dos princípios de soberania e integridade territorial.
Na falta de um entendimento entre as partes (Sérvia e representantes do Kosovo) e com as opiniões muito divididas é duvidoso que a deliberação do Tribunal venha a ajudar a evitar que o “problema” do Kosovo se eternize, como vários outros com que o mundo se debate hoje.
O Parlamento sérvio já adoptou uma resolução que recusa em definitivo a possibilidade de algum dia reconhecer a independência da antiga província. A Rússia insiste que a decisão não chega para dar base legal à independência. Os EUA, que sempre estiveram na linha da frente da defesa da independência, continuam a defender que o Kosovo representa uma situação única que não abre precedente para outros movimentos separatistas reclamarem também o direito a independência. No entanto, a argumentação usada em defesa desta posição, como aliás na das outras, não prima pela coerência. Basta lembrar, por exemplo, o encorajamento que a Rússia deu às duas províncias separatistas da Geórgia (Ossétia do Sul e Abkázia) e o aproveitamento que fez do precedente do Kosovo para apoiar a sua independência.
As opiniões vão certamente continuar divididas, mesmo no âmbito da União Europeia, entre os que encaram a declaração de independência como o desfecho esperado da tragédia humana por que os Kosovares passaram, admitindo uma espécie de “justa causa”, e os cinco Estados-membros que estão contra essa conclusão (Espanha, Grécia, Chipre, Eslovénia e Roménia). Compreende-se o receio de que o reconhecimento de uma entidade separatista contra a vontade do poder central constitua um precedente que fragiliza a situação dos que têm movimentos separatistas dentro das suas fronteiras.
Curiosamente, esta situação não impediu Catherine Ashton de dar por bem-vinda a deliberação do Tribunal e afirmar que tanto a Sérvia como o Kosovo «têm o seu futuro na UE». A Europa tem confiado que a atracção de uma próxima admissão vai moderar a postura das partes e, em especial, da Sérvia que quer evitar o regresso ao isolamento internacional por que passou durante a crise dos Balcãs. Estranha-se, no entanto, que a postura dos cinco membros atrás referidos não tenha sugerido à Alta Representante a necessidade de uma maior contenção na formulação das hipóteses de adesão da Sérvia e do Kosovo, apresentadas como algo de garantido.
Ora esse desfecho ainda está muito distante. Para a Sérvia fala-se em 2020; para o Kosovo não se fala em qualquer data porque os Kosovares ainda nem sequer conseguiram demonstrar que conseguem construir um país viável, capaz de vencer a luta contra a corrupção e criminalidade e de gerar alguma esperança, quer quanto às expectativas de emprego (90% dos jovens com menos de 25 anos não conseguem ocupação), quer quanto às condições de vida. Aparentemente, este aspecto não tem interessado grandemente aos EUA, os principais animadores da independência do país, mas terá que preocupar a Europa, a quem cabe, em primeira instância lidar com a situação.
É verdade que, contra as previsões de muitos, a declaração unilateral de independência não provocou a faísca que se receava, quer por parte de reacções excessivas da Sérvia ou da Rússia, quer pela “reabertura da caixa de Pandora” dos Balcãs, particularmente no frágil arranjo da situação na Bósnia-Herzegovina. No entanto, seja qual for a interpretação dada à deliberação do Tribunal, esta reduziu drasticamente as esperanças que Belgrado tinha em solucionar o assunto pela via diplomática. Estamos, portanto, perante um desenvolvimento político que vai envolver a Europa num problema de grande complexidade e riscos acumulados e que vai perdurar por muitos anos.
Jornal Defesa