FOI KOSOVO UMA BOA GUERRA?David N. Gibbs - http://www.tikkun.org/article.php/jul_09_gibbs O artigo foi extraído do novo livro de David N. Gibbs,
First Do No Harm: Humanitarian Intervention and the Destruction of Yugoslavia (Vanderbilt University Press, junho de 2009.), especialmente do capítulo 7.
Enquanto a guerra da OTAN de 1999 contra a Sérvia alcança seu décimo aniversário, ela está sendo relembrada com certa medida de nostalgia. A guerra do Kosovo é relembrada como a “boa guerra” – uma ação militar, genuinamente moral, que oferece um contraste reconfortante com o fiasco do Iraque. A guerra do Kosovo foi empreendida (eis o argumento) apenas como o último recurso, para conter um ditador desagradável (Slobodan Milosevic), que só obedeceria a força. E a guerra produziu resultados positivos, no sentido de que o Kosovo foi libertado da opressão sérvia e Milosevic foi, em breve, derrubado. Agora, uma década depois, a guerra do Kosovo é relembrada como um caso exemplar de intervenção humanitária e é, amplamente, considerada como um modelo para possíveis intervenções em Darfur e alhures. Na verdade, algumas das figuras-chave na administração Obama, notavelmente, Samantha Power, tem advogado que “intervenção humanitária” do modelo Kosovo deve ser um tema básico da política dos Estados Unidos.
Dada a importância do Kosovo como um modelo para futuras ações militares, é importante compreender mais, completamente, o que, realmente, aconteceu neste caso crítico. Nova informação se tornou disponível em anos recentes, a partir do julgamento por crimes de guerra de Milosevic e outras fontes básicas – informação que joga uma luz, totalmente, diferente (e não tão positiva) sobre a guerra. A seguir, analisarem algumas destas revelações, e como elas desacreditaram mitos, amplamente, aceitos sobre o caráter “benigno” da intervenção no Kosovo.
Primeiro, um pouco de fundamentos: o Kosovo tinha sido, por muito tempo, uma “província autônoma” da República da Sérvia, inicialmente, como parte da Iugoslávia comunista. Dentro do Kosovo, a população estava dividida entre uma maioria étnica albanesa e uma, relativamente pequena, minoria sérvia, que constituía entre 10 e 15 porcento da população total. O conflito étnico entre estes dois grupos, gradualmente, desestabilizou a província. Em 1989, a República da Sérvia acabou com o estatuto autônomo do Kosovo e o colocou sob efetiva lei marcial. Um sistema altamente repressivo de controle foi imposto, vitimizando os albaneses na província, enquanto favorecia os sérvios. Os esforços albaneses para escapar desta repressão formou a base do levante armado no final dos anos 1990, liderado pelo Exército de Libertação do Kosovo (ELK). Estes esforços, por fim, detonaram a campanha de bombardeio da OTAN de 1999 contra a Sérvia. Após a derrota dos sérvios, uma força internacional de pacificação ocupou o Kosovo. Com os pacificadores ainda presentes, o Kosovo separou-se, oficialmente, da Sérvia e obteve plena independência em 2008. Uma maioria da população sérvia foi, etnicamente, varrida do Kosovo, logo após os bombardeios da OTAN, embora, um número, relativamente, pequeno de sérvios ainda permaneçam em partes da província.
Mito 1: A OTAN começou sua campanha de bombardeio, somente após ter feito todos os esforços para evitar a guerra e obter seus objetivos no Kosovo através de meios diplomáticos. A guerra ocorreu porque Milosevic resistiu, firmemente, a um acordo diplomático.
Na realidade, Milosevi estava aberto a um acordo diplomático, e este ponto está, agora, bem estabelecido pelas melhores fontes. Especificamente, Milosevic assinou uma série de acordos internacionais, em outubro de 1998, que solicitava aos sérvios para retirarem a maioria de suas forças do Kosovo e para implementar um cessar-fogo. Ele, também, concordou com o desdobramento de uma Missão de Verificação do Kosovo, internacionalmente organizada, que supervisionaria a implementação da retirad das tropas sérvias. Estes acordos foram forjados pelo diplomata americano Richard Holbrooke.
O acordo Holbrooke, gradualmente, rompeu-se, enquanto a luta continuava entre forças sérvias e albanesas, e, então, escalando durante o final de 1998. Na época, se acreditava, amplamente, que foram os sérvios que torpedearam o acordo. Entretanto, sabemos, agora, que não foi este o caso. De fato, os sérvios implementaram o acordo Holbrook, e foram os albaneses que provocaram o colapso do acordo.
A evidência de que as forças sérvias/iugoslavas cumpriram o acordo provém do general Klaus Naumann, um oficial alemão que desempenhou um papel-chave na diplomacia deste período (e que, mais tarde, participou na guerra da OTAN de 1999). Em 2002, Naumann compareceu no julgamento de Milosevic como testemunha-chave no processo e declarou o seguinte: “As autoridades iugoslavas honraram o acordo [Holbrooke]... eu penso que é preciso prestar tributo ao que as autoridade iugoslavas fizeram. Não foi ma coisa fácil trazer 6 mil oficiais de polícia de volta, dentro de vinte e quatro horas, mas elas conseguiram”. E o ponto de vista de Naumann é apoiado pela Comissão Internacional Independente Sobre o Kosovo, que observou em seu relatório de 2000: “A Sérvia, inicialmente, implementou o acordo [Holbrooke] e retirou suas forças, de acordo.”
O colapso do acordo Holbrooke foi, realmente, detonado pelas guerrilhas do ELK, que utilizou a contenção dos sérvios como oportunidade para deslanchar uma nova ofensiva. Esta estratégia é percebida no seguinte diálogo entre um entrevistador da BBC e o general Naumann. A entrevista cita informações da OTAN e do diretor da Missão de Verificação do Kosovo, que era responsável por supervisionar a implementação do acordo Holbrooke:
BBC: “Obtivemos minutas confidenciais da Conselho do Atlântico Norte, ou CAN, corpo dirigente da OTAN. Elas falam do ELK como ‘o principal iniciador da violência... ele desfechou o que parece ser uma deliberada campanha de provocação [contra os sérvios]’. É assim como o próprio William Walker [cabeça da Missão de Verificação do Kosovo] relatou a situação, na época, em particular” (ênfase adicionada).
General Naumann: “O embaixador Walker salientou no CAN que a maioria das violações [do acordo de Holbrooke] foi provocada pelo ELK.”
O registro é, portanto, claro: foram as guerrilhas albanesas, não os sérvios, que provocaram o ressurgimento da luta.
Durante fevereiro e março de 1999, os Estados Unidos e vários aliados europeus organizaram uma conferência de paz – oficialmente tencionando fornecer um acordo abrangente do conflito do Kosovo – que teve lugar, principalmente, em Rambouillet, França, fora de Paris. Os mediadores ocidentais que dirigiram a conferência buscavam acabar com a repressão sérvia no Kosovo, reestabelecer a autonomia regional do Kosovo (embora, ainda como província da Sérvia), e estabelecer uma força armada internacional de pacificação para supervisionar a implementação. Um Kosovo independente não foi contemplado neste ponto.
No final, a conferência de Rambouillet fracassou, e este fracasso levou, diretamente, à campanha de bombardeio da OTAN. Na época, foi amplamente presumido que os sérvios haviam recusado-se a negociar, seriamente e estavam determinados a usar a força militar contra os albaneses. Entretanto, uma leitura mais atenta do registro mostra que a sabedoria convencional estava, novamente, errada. De fato, os sérvios permaneceram abertos a um acordo negociado, e recorreram à força quando este acordo provou-se inatingível.
A maioria dos participante em Rambouillet reconheceu que a delegação sérvia tinha, realmente, aceitado todas (ou, virtualmente, todas) as exigências políticas que foram avançadas pelos mediadores americanos e europeus. Os sérvios “pareciam ter abraçado os elementos políticos do acordo, pelo menos, à princípio,” de acordo com Marc Weller, um acadêmico jurídico que serviu como conselheiro para a delegação albanesa. O porta-voz do Departamento de Estado, James Rubim, afirma que os sérvios tinham concordado com “quase todos os aspectos do acordo político”. O diplomata americano Christopher Hill salienta que “Milosevi estava aberto ao acordo político de Rambouillet.” Mesmo Madeleine Albright, embora hipercrítica da delegação sérvia, concedeu que os sérvios tinham aceitado a maioria das propostas para um acordo político. Com respeito aos aspectos mais contenciosos da implementação, o próprio Miloseviu deixou implícito que aceitaria uma força de pacificação no Kosovo para supervisionar o acordo, liderada, fosse pela ONU ou pela Organização para Segurança e Cooperação na Europa. Entretanto, ele continuava a resistir à idéia de uma força liderada pela OTAN, o que os Estados Unidos exigiam.
A informação disponível sugere que um acordo total para o conflito do Kosovo estava ao alcance e poderia ter sido obtido em Rambouillet. O que levou o acordo ao fracasso foi um novo desenvolvimento que ocorreu no final do processo de negociação. Especificamente, os mediadores ocidentais, agora, propunham que um “Anexo Militar” fosse adicionado ao acordo final. A adição proposta afirmou que as forças de pacificação da OTAN seriam desdobradas e que estas forças teriam “passagem livre e irrestrita e acesso sem empecilhos por toda a RFI [República Federal da Iugoslávia].” Esta seção era, altamente, significativa; implicava que não apenas o Kosovo seria ocupado por uma força de pacificação da OTAN, mas, potencialmente, toda a Sérvia e tudo o que restava da Iugoslávia, seria ocupado, também. Após aparecer o Anexo Militar, a delegaçãos sérvia pareceu ter perdido toda a confiança no processo de negociação, e as conversações de paz empacaram.
A fraseologia suspeita do Anexo Militar foi, originariamente, observada pelo jornalista britânico John Pilger, em 1999, durante o curso da campanha de bombardeio da OTAN. Em resposta, autoridades americanas tem insistido que o Anexo era um detalhe inofensivo, e negam que tenha havido qualquer esforço para sabotar as conversações de paz.
O relato da verdade foi deixado para os britânicos. Numa audiência parlamentar no pós-guerra, o ex-Ministro de Defesa do Estado John Gilbert afirmou que negociadores-chave estavam, de fato, buscando sabotar a conferência. Gilbert era a figura número 2 no Ministério de Defesa britânico, com uma responsabilidade específica pela coleta de informações, e ele apoiou a guerra. Ele é, certamente, uma fonte crível. Com respeito aos motivos dos negociadores, ele ofereceu a seguinte observação: “Acho que certas pessoas estavam ansiando por uma luta na OTAN neste momento... nós estávamos num ponto quando algumas pessoas sentiam que alguma coisa precisava ser feita [contra a Sérvia], portanto
você apenas provocava uma luta.” Com respeito aos próprios termos de paz, ele disse, “acho que os termos apresentados à Milosevic em Rambouillet era, absolutamente, intoleráveis: como ele poderia, possivelmente, aceitá-los?
Isso foi bem deliberado” (ênfase adicionada).
Lord Gilbert não menciona, especificamente, o Anexo Militar (e sua cláusula sobre o acesso da OTAN a toda a Iugoslávia), mas, é fácil ver que o Anexo se adequava bem com o quadro mais amplo de provocação que Gilbert descreveu. E parece provável que os Estados Unidos desempenharam um grande papel em moldar o Anexo Militar, e, desta forma, sabotar as conversações: em suas memórias, o general Wesley Clark revelou que ele, pessoalmente, ajudou com o rascunho. Em qualquer caso, o advento do Anexo Militar minou a perspectiva de um acordo pacífico.
Eu já discuti alhures, extensivamente, os motivos da administração Clinton para provocar uma guerra; neste artigo, fornecerei uma explicação mais curta. Basicamente, os Estados Unidos estavam buscando uma nova justificação para a Organização do Tratado do Atlântico Norte, que parecia carecer de qualquer função plausível desde a queda do Muro de Berlim. A “bem-sucedida” intervenção no Kosovo desempenhou um papel-chave em afirmar a importância da OTAN para o período pós-guerra fria e fornecer-lhe uma nova função.
Quaisquer que fossem os motivos, o registro sugere que a administração Clintou estava buscando um pretexto para a guerra com a Sérvia. O colapso das conversações de paz em Rambouillet ofereceu um pretexto.
Mito 2: o conflito do Kosovo foi um caso, moralmente simples, de sérvios opressores e vítimas albanesas.A guerra de 1999 era amplamente retratada na época como uma repetição em pequena escala da Segunda Guerra Mundial, com os sérvios no papel de agressores nazistas e os albaneses como os judeus, e esta imagem foi um tema central do livro, amplamente influente, de Samantha Power, “
A Problem from Hell: America and the Age of Genocide. É, certamente, verdadeiro que os sérvios tiveram um registro feio de opressão e violência contra o grupo étnico albanês, e que o próprio Milosevic ostenta considerável responsabilidade por orquestrar esta opressão. Esta parte da história é, em grande medida, precisa, e pouco tem surgido para refutar tal imagem.
O problema é que os grupos políticos albaneses, apoiados pelos Estados Unidos na guerra não eram coisa muito melhor. Enquanto haviam alguns grupos políticos albaneses, relativamente decentes e não-violentos, que foram importantes na fase inicial do conflito, o principal grupo a receber apoio americano direto – o mesmo grupo que, mais tarde, formou o governo do Kosovo independente – era o Exército de Libertação do Kosovo. O ELK tinha um registro de ferocidade e racismo que diferia pouco daquele das forças de Milosevic. Atacar civis sérvios através de atos terroristas era sempre uma característica central da estratégia militar do ELK.
A natureza terrorista do ELK era, amplamente, conhecido entre autoridades ocidentais; mesmo uma testemunha da promotoria no julgamento de Milosevic reconheceu este fato. O parlamentar britânico Paddy Ashdown, que esteve, extensivamente, envolvido na diplomacia do Kosovo, testemunhou sobre a estratégia terrorista. A transcrição da análise de Ashdown inclui o seguinte diálogo:
Milosevic: “É um fato bem-conhecido que estes [ELK] eram terroristas, que esta era uma organização terrorista.”
Ashdown: “Sr. Milosevic, eu nunca neguei que eles eram uma organização terrorista.”
De acordo com o jornalista Stacy Sullivan, que entrevistou muitas figuras do ELK, as guerrilhas “atingiam áreas habitacionais sérvias, e clamavam ter responsabilidade no abate de uma aeronave civil e plantando um carro-bomba que feriu o reitor da universidade. Por definição, estes foram atos terroristas.”
O propósito de tais táticas terroristas era provocar a retaliação sérvia, que ajudou a alimentar o ciclo de violência. Estas táticas foram, amplamente, reconhecidas. Mesmo Madeleine Albright, cujas memórias focam, quase exclusivamente, na selvageria sérvia, brevemente, reconhece que o ELK “parecia ter a intenção de
provocar uma massiva resposta sérvia, para que a intervenção internacional fosse inevitável” (ênfase acrescentada). Desnecessário dizer, esta estratégia – de atrair os sérvios para atacarem civis albaneses, e, deste modo, aumentar a pressão por intervenção externa – funcionou muito bem. Este foi, precisamente, o cenário que se desenrolou durante o período 1998-1999, levando à intervenção da OTAN e a vitória do ELK.
De há muito tem sido presumido que, por todo o conflito, foram
os sérvios que haviam perpetrado a maior parte da violência. De fato, ocorreram extensos períodos quando os albaneses foram os principais perpetradores. Este ponto foi observado pelo Ministro da Defesa britânico George Robertson, durante audiências parlamentares, após o fim da guerra. Lord Robertson declarou que, até janeiro de 1999, “o ELK foi responsável por mais mortes no Kosovo do que as autoridades iugoslavas tinham sido.”
Em fases posteriores da guerra, claramente, foram os sérvios a serem os principais perpetradores da violência. Começando em janeiro de 1999, houve um substancial crescimento dos ataques sérvios, com um horroroso massacre na aldeia albanesa de Racak e outros ultrajes durante as últimas semanas desta primeira fase da guerra. E houve uma enorme escalada das atrocidades sérvias tendo lugar durante o bombardeio da OTAN – uma escalada que produziu horríveis resultados. Mesmo assim, Lord Robertson sugere que, inicialmente, foram os
albaneses, não os sérvios, que cometerem as piores violências. Os diários do porta-voz de imprensa de Tony Blair, Alistair Campbell, também enfatizam o caráter amoral do ELK, e como este fato era bem conhecido entre as autoridades britânicas. De acordo com Campbell, Blair e seu ministro do exterior Robin Cook, ambos, acreditavam que o “ELK... não era muito melhor do que os sérvios.”
Talvez o mais condenatório indiciamento do ELK foi a forma como se comportou, após as forças sérvias terem sido derrotadas em junho. Seguindo-se a derrota destas últimas, os pacificadores da OTAN e da ONU, efetivamente, colocaram o ELK no poder, na maior parte do Kosovo, e as guerrilhas albanesas, prontamente, utilizaram seu novo poder para varrer, etnicamente, os sérvios, através de uma campanha de violência e intimidação.
Esta campanha de terror foi rastreada pela Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), e foi descrita nas memórias dos antigos funcionários da ONU, Iain King e Whit Mason:
O verão de 1999 foi uma temporada de vingança e pura violência predatória. A OSCE coletou dezenas de histórias de horror. Um cigano surdo-mudo foi seqüestrado de sua casa, porque sua família, alegadamente, teria cooperado com as antigas autoridades [sérvias]. Um sérvio de 44 anos foi “espancado até a morte com bastões de metal por uma turba de albaneses do Kosovo”... Sérvios eram baleados e mortos enquanto trabalhavam nos campos. Estes ataques e dezenas de outros como estes foram relatados por equipes de campo trabalhando com a OSCE. Todos estes ataques ocorreram enquanto [os pacificadores] liderados pela OTAN estavam responsáveis pela segurança em Kosovo.
Entre 400 e 700 sérvios foram assassinados nos primeiros oito meses após a vitória da OTAN, de acordo com estimativas publicadas no
Sunday Times de Londres. Os mortos incluíam tanto sérvios quanto ciganos. Partialmente, devido a estes ataques – que as forças da OTAN pouco fizeram para impedir – quase um quarto de milhão de sérvios, ciganos e outros desprezados grupos étnicos fugiram do Kosovo. O objetivo de longo prazo dos albaneses, de um Kosovo etnicamente “limpo”, livre de sérvios, foi conseguido em grandes áreas.
Portanto, é um mito a visão de que esta guerra foi, simplesmente, um caso de agressores sérvios e vítimas albanesas. Na realidade, ambos os lados foram muito ferozes. Obviamente, é verdade que, no todo, os sérvios cometeram mais atrocidades e limpararam etnicamente, ainda maiores populações do que o fizeram os albaneses. E, desnecessário dizer, exércitos de sérvios étnicos cometeram muitos crimes horríves em outras partes dos Bálcãs, incluindo o massacre de Srebrenica, em 1995. Mas nada disto pode desculpar os crimes do ELK, ou o fato de que a política dos Estados Unidos foi cúmplice em alguns destes crimes, através do seu apoio ao ELK. Agora, dez anos depois do fato, não devemos esconder os crimes de nenhum dos lados.
Quando a luta acabou em 1999, investigadores do Tribunal de Crimes Internacionais para a antiga Iugoslávia, procuraram investigar os crimes cometidos por ambos os lados durante a guerra. A antiga promotora-chefe no tribunal, a advogada Carla Del Ponte, descreveu os desafios que ela enfrentou, em suas memórias, recentemente publicadas. De acordo com Del Ponte, houveram repetidos ataques e ameaças de violência que foram direcionados contra qualquer um que cooperasse com as investigações internacionais das atrocidades do ELK. Fica evidente que a própria Del Ponte foi intimidada: “Alguns compatriotas suíços, até mesmo, acautelaram-me contra discutir certas questões relacionadas com os albaneses nestas memórias, e eu as discuto aqui, apenas, com extremo cuidado.”
O ELK tinha muitas outras característics desagradáveis, incluindo, associações com a al-Qaida (que possuía elementos presentes no Kosovo) e redes internacionais de narcóticos. No todo, parece justo dizer que o ELK tinha um registro apavorante.
Mito 3: Os ataques aéreos da OTAN impediram ainda mais atrocidades sérvias, e, desta forma, tiveram um efeito positivo na situação de direitos humanos no Kosovo.De fato, a campanha de bombardeio aumentou a escala das atrocidades sérvias. Até o bombardeio, o total de pessoas mortas na guerra – incluindo, ambos, sérvios e albaneses, civis e soldados – totalizava 2 mil. O número de civis albaneses assassinados por forças sérvias nunca foi, apropriadamente, estimado, mas o total estava, provavelmente, nas centenas. Durante a campanha de bombardeio, entretanto, ocorreu uma enorme escalada na violência dirigida pelos sérvios. Estes podiam fazer pouco para protegerem-se dos ataques da OTAN, portanto, ventilaram suas frustrações sobre os relativamente indefesos albaneses.
Vamos rever a cronologia: em meados de março de 1999, estava claro que o processo de negociações estava, irremediavelmente, fracassado, e que a OTAN estava preparando-se para bombardear. Em 19 de março, a Força de Verificação do Kosovo começou a deixar a província – um sinal de que o bombardeio era iminente. No dia seguinte, 20 de março, as forças sérvias começaram uma ofensiva em grande escala no Kosovo, gerando horríveis atrocidades. E, em 24 de março, a OTAN começou, efetivamente, sua campanha de bombardeio de dez semanas, que levou a ainda maiores atrocidades sérvias. Esta cronologia sugere, fortemente, que, em si mesma, a ação da OTAN foi uma causa-chave para este incremento na violência. Deve ser notado, também, que os Chefes Combinados de Estado-Maior tinham prevenido o presidente Clinton de que qualquer campanha de bombardeio poderia provocar ataques de retaliação sérvios e aumentar as atrocidades. Esta tinha sido antevistas.
E, quando o bombardeio, realmente, ocorreu, as forças sérvias cometeram, de fato, substanciais atrocidades: aproximadamente 10 mil pessoas foram mortas por forças de segurança sérvias durante a campanha da OTAN. Pelo fim da guerra, cerca de 90 porcento da população albanesa tinha sido deslocada. A responsabilidade moral primária deve repousar com as forças sérvias que cometeram as atrocidades, e com o próprio Milosevic, que as dirigia. Entretanto, a OTAN deve arcar com alguma responsabilidade por, insensivelmente, criar uma situação que, virtualmente, garantiu as atrocidades.
E a campanha da OTAN produziu outras calamidades: o próprio bombardeio matou entre 500 e 2 mil civis, de acordo com Tim Judah da BBC. Mesmo se ficarmos com o número inferior, então, os bombardeios da OTAN mataram, aproximadamente, tantos civis quanto todas as ações diretas sérvias, que precederam os bombardeios. A estratégia da OTAN implicava “atingir a infraestrutura civil [sérvia],” de acordo com as memórisa do general Rupert Smith, que serviu como subcomandante da OTAN durante a guerra. E, quando a guerra acabou, os albaneses desfecharam uma onda de represálias e limpeza étnica, resultando em, ainda maiores, atrocidades, como já foi notado acima.
Se a operação da OTAN buscava estabelecer o princípio de que a limpeza étnica é inadmissível como forma de resolução de conflitos, então, a operação foi uma conspícua falha.
Conclusão.
O mais perturbador aspecto do caso do Kosovo é que uma intervenção, pretensamente, humanitária, serviu, principalmente, para aumentar a escala das atrocidades. A este respeito, a guerra do Kosovo tem muito em comum com a invasão do Iraque de 2003, que também foi vendida ao público (em parte) como um esforço humanitário para “salvar” o povo iraquiano de um violento ditador. Em retrospecto, no entanto, parece provável que a invasão causou tantas ou, possivelmente, mais mortes do que o número total de mortos por Saddam Hussein. A principal lição das experiências do Kosovo e do Iraque é que ações militares – quer as chamemos de “humanitárias” ou não – retém o potencial para aumentar a miséria humana. Os advogados das intervenções humanitárias dão pouca consideração a este perigo.
Poderia valer a pena relembrar a frase médica, “primeiro, não faça nenhum mal”. Entre os médicos, de há muito foi reconhecido que a ação médica tem o potencial de deixar os pacientes piores do que antes. O fato de que um paciente está sofrendo, por si mesmo, é insuficiente como razão para operar, já que a operação acarreta o risco de aumentar o sofrimento dele. Talvez, a mesma cautela deva ser aplicada no concernente a intervenções militartes. Certamente, devemos evitar ações arriscadas que são passíveis de aumentar a taxa de mortos (como, realmente, ocorreu no Kosovo). Primeiro, devemos não fazer nenhum mal.[/size]
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David N. Gibbs leciona história e ciência política na Universidade do Arizona. Suas publicações anteriores incluem:
The Political Economy of Third World Intervention (Editora da Universidade de Chicago, 1991).