Antônio Raposo Tavares
SÃO PAULO ESTÁ EM GUERRA
Em agosto de 1628, quase todos os homens adultos da Vila de São Paulo estão armados para investir contra o sertão. Eram novecentos brancos e 3 mil índios, formando a maior bandeira que ate então se organizara.
O destino era Guaíra, para expulsar os jesuítas espanhóis e prender quantos índios pudessem, para despeja-los na Bahia, a vida de braços para o trabalho.
A bandeira caminha dividida em quatro seções, sob o comando de Antonio Raposo Tavares, Pedro Vaz de Barros, Brás Leme e André Fernandes.
São semanas e semanas de mata virgem, de travessia de grandes rios, do peso das muitas correntes. A vanguarda, uma pequena coluna chefiada por Antonio Pedroso de Barros, livre de quase todo equipamento, seguia mais depressa. Já a 8 de setembro cruza o rio Tibagi, bem em frente à missão de Encarnación. Ali, Pedroso de Barros manda erguer uma cerca de estacas e fica à espera.
Durante mais de três meses, a vanguarda permaneceu frente a frente com os inimigos, aguardando a vinda da bandeira. Somente em dezembro, toda a tropa reunia-se novamente. Agora, tudo está pronto para a guerra. Falta apenas um pretexto, um motivo de guerra, para justificar o ataque.
A fuga de uns poucos índios - aprisionados no local - que procuram abrigo na missão próxima de San Antônio dá aos paulistas o motivo de que precisam. Imediatamente, a bandeira deslocasse para essa missão e Raposo Tavares lança um últimato: ou os jesuítas espanhóis entregam os índios, ou... Os padres não cedem, os presos não são devolvidos a Raposo e sua gente.
A luta começa. O céu escurece com as nuvens de flechas. À medida que o cerco aperta, tiros, facas, paus e a forca bruta fazem mortos dos dois lados. Os jesuítas, roupas manchadas de lama e sangue, congregam os índios numa tentativa desesperada de salvar a missão. Os sinos da igreja repicam sem parar. Alguns padres batizam às pressas os últimos pagãos. Os paulistas, duros como a terra em que caem, quase tão selvagens como aqueles índios nus que os auxiliam, esses paulistas, gritando e atirando, vencem os muros de pedra de San Antonio.
A 30 de janeiro de 1629, o barulho cessa.
San Antonio deixara de existir. O Brasil crescera mais um pouco.E os 2 mil índios sobreviventes, que se renderam em massa, vão ocupar as argolas de ferro nas correntes trazidas para eles.
Nem a heróica dedicação da Companhia de Jesus conseguiu evitar o sacrifício de tantos homens. O trabalho de construção das fronteiras fazia-se na luta dos bandeirantes, mas custava a vida ou a liberdade para milhares de índios anônimos.
Existiam, entretanto, outras missões espanholas na região de Guairá. E atrás delas vai Raposo, implacável. Não descansará antes de arrasar o último aldeamento espanhol e prender a última "peça". E, enquanto lhe sobram forcas, um a um vão caindo os redutos dos jesuítas e seus índios: San Miguel, Jesus María, Encarnación, San Pablo, Arcangelos, San Tomé.
Em San Miguel, o Padre Cristóbal de Mendoza, perplexo, indaga das razoes da guerra. E Raposo Tavares respondeu: "Temos de expulsar-vos de uma terra que é nossa, e não de Castela". E assim as bandeiras iam incorporando ao Brasil as regiões do oeste do Paraná e Mato Grosso do Sul.
Menos perplexo, talvez, estivesse o governador do Paraguai, Don Luís de Céspedes y Xeria, que nada fez para impedir a destruição de Guairá, apesar de ter assistido em São Paulo aos preparativos da bandeira. Casado com uma luso-brasileira que conheceu no Rio de Janeiro, quando vinha da Espanha para ocupar seu posto no Paraguai, Don Luís deve ter encontrado Raposo Tavares em São Paulo. Com ele teria travado contato e conseguido chegar 'as proximidades de Asunción. Corriam rumores de que havia sido subornado para ficar calado, recebendo dos paulistas engenhos de açúcar e índios escravos. Outros diziam que Don Luis nada podia fazer, já que sua mulher estava no Brasil, como se fosse mais tarde o Governo da Espanha tomou-lhe todos os títulos e confiscou-lhe os bens.
Mas Guairá estava destruída. Em maio de 1629, depois de dez meses de sertão, vitoriosos mas exaustos, os paulistas voltam a Piratininga.
Com o grosso da bandeira vieram dois jesuítas, os padres Mancilla e Mazzeta, que preferiram acompanhar os índios escravizados que iam para o cativeiro. Foram esses padres os autores da "Relación de los Agravios", peça preciosa para a reconstituição da expedição.
Terminara a guerra-relâmpago e nela tudo quanto os bandeirantes planejavam havia sido conseguido. Raposo Tavares entrou em São Paulo, trazendo, segundo dizem, 20 mil "peças" de escravos que ele arrastara pelos sertões, espicaçando-os para que vencessem centenas de quilometros de matas, rios campos queimados pelo sol, pântanos, tudo sob o peso de grossas correntes de ferro. E, entre todos os brancos, ninguém como Raposo tanto se parecia com os prisioneiros. Como os índios, também ele parecia de bronze.
UMA NOVA TAREFA: DOMINAR A REGIÃO DO TAPE - AS NOVAS FRONTEIRAS
Quanto aos jesuítas, uma longa história ainda os esperava. Vencidos por Raposo Tavares e seus companheiros, não renunciam aos seus planos: sonham com uma civilização crista de tipo novo em terras da América, catequizando índios, fazendo-os viver em harmoniosas comunidades onde cultivavam mate e criavam gado, negociando as duas coisas, principalmente em Buenos Aires. Com o dinheiro que iam conseguindo, os padres construíam mais igrejas, melhoravam as aldeias, davam aos índios tempo para fazer arte, aprender música, trabalhar em cerâmica. Ainda que sempre assediadas pelos bandeirantes, as missões dos jesuítas sobreviveram por perto de 150 anos, embora - ao menos pela lei - proibidas de usar armas de fogo. A grande aventura só iria terminar em 1768, quando os jesuítas foram expulsos da América Espanhola.
Nesse tempo, com 78 padres, administravam 33 missões com mais de 100000 indígenas, em terras hoje pertencentes ao Uruguai, Paraguai, Argentina e Brasil. A saída dos jesuítas, a entrega das aldeias a outras ordens religiosas ou a leigos e a fuga dos índios iam acabar com o sonho iniciado no Guairá: uma "república" religiosa no coração do continente.
Foram homens como Raposo Tavares que afastaram a possibilidade do domínio castelhano - leigo ou religioso - nesses territórios. A campanha de Guairá garantiu a primeira base para o posterior recuo do Tratado de Tordesilhas, que limitava as terras de Espanha e de Portugal, e permitiu que o Governo lusitano reivindicasse a posse pelo uso daquela região. A confirmação foi dada em 1750, pelo Tratado de Madri, que revogou o de Tordesilhas.
PEQUENA PAUSA PARA ADMINISTRAR
Três anos depois dos combates de Guairá, Raposo Tavares, que já era juiz ordinário da Vila de São Paulo, ganha novo e mais importante posto na Justiça da Colônia, passando a Ouvidor de toda a capitania de São Vicente. Mas aquele homem não nascera para ser um bom administrador, fazendo com que as leis fossem cumpridas.
Pelo contrário, Raposo era um desafiador de leis. E bastou que surgisse uma disputa entre os jesuítas e as autoridades civis de São Paulo, pela posse dos índios de Barueri - lugar perto da vila - para que Raposo lançasse fulminante ataque aos jesuítas, expulsando todos e tomando-lhes os indígenas.
Os jesuítas portugueses, tal como os espanhóis, também sabiam lutar pelo que queriam: recorreram ao governador-geral e às autoridades eclesiásticas em Roma. Em conseqüência, Raposo Tavares foi demitido do cargo de Ouvidor e excomungado. Mas Raposo Tavares não sabia perder.
Por isso, segue para o Rio, defende-se junto à Ouvidoria-Geral, e lembra uma lei de 1611, determinando que apenas podiam prestar serviços aos índios os padres que se submetessem à jurisdição civil. Ora, a aldeia de Barueri, embora confiada aos jesuítas, devia obediência à administração civil. E, ao apoiar a Câmara contra os jesuítas, ele podia alegar que nada fizera senão cumprir a lei.
A argumentação de Raposo Tavares convenceu a Ouvidoria-Geral. O bandeirante recuperou seu posto de Ouvidor da capitania de São Vicente. Raposo Tavares vencera também dentro da lei.
-------------------------------------------------------
DE NOVO NO SUL, AINDA OS JESUÍTAS
Mais três anos se passam, até que - em 1636 - Antonio Raposo Tavares parte para outra bandeira, tendo, entre outros companheiros, Fernão Dias Pais, sobrinho de sua segunda mulher. O destino da expedição era o Tape, no centro do atual Estado do Rio Grande do Sul.
A missão de Raposo no Rio Grande era neutralizar a influência dos jesuítas espanhóis, que lutavam contra o tráfico de índios tapes. Os portugueses e os tupis haviam feito acordo, pelo qual os caciques dessa última tribo vendiam seus prisioneiros. E a isso se opunham os jesuítas.
NA DERROTA, O CAMINHO ABERTO A FERRO E FOGO
Em maio de 1636 marchou a nova bandeira de Raposo Tavares, formada de 120 paulistas e mamelucos e mil índios tupis. Seguiram para o Sul, quase em linha reta, aproveitando em parte os vales dos rios. Foram sete meses de viagem até o atual município de Estrela, na região do rio Taquari, lugar onde Raposo mandou erguer barreiras de pau-a-pique, para dentro delas reunir os índios aprisionados pelo caminho. Em torno da "vila" improvisada, os bandeirantes plantaram o que puderam, pois a comida acabava e ninguém sabia quanto duraria a guerra.
No dia 3 de dezembro, Raposo investe contra a aldeia missionaria de Jesús María, uma espécie de arsenal, campo de exercícios militares, fortaleza e sede do comando.
Bem armados, empunhando escopetas e arcabuzes, os índios - comandados pelos padres - enfrentaram a bala os paulistas. A luta durou horas e o sangue correu dos dois lados. Por fim, pela segunda vez - tal como em Guairá - Raposo Tavares destruía uma missão de jesuítas com o nome de Jesús María.
Duas semanas se passam. Raposo agora cerca as missões de San Cristóbal e Sant' Ana, quando contra ele são lançados 1500 índios convertidos pelos espanhóis. Mas não o conseguem cercar: Raposo recua, reagrupa seus homens e às vésperas do Natal ocupa também as duas aldeias. Estava aberto o caminho para as reduções jesuíticas da região dos índios tapes, ao lado dos rios Pardo e Jacuí. Terminara a tarefa de Raposo Tavares, ele podia voltar a São Paulo. Para desalojar do Rio Grande do Sul os espanhóis que restavam, ficaram André Fernandes e Fernão Dias Paes.
No início de 1638, Raposo voltou a São Paulo. Tinha só quarenta anos. Para seus compatriotas era um herói. Para os espanhóis, um diabólico chefe militar. Para os índios, a personificação da morte.
UMA LONGA RETIRADA
Enquanto no Sul os bandeirantes combatiam os espanhóis, o Nordeste continuava ameaçado de conquista pela Holanda. Expulsos da Bahia (1625), os holandeses voltaram a atacar, capturando Pernambuco (1630) e estendendo seu domínio por uma ampla região, que inclui os atuais Estados do rio Grande do Norte, Paraíba e Alagoas.
Agora, em 1639, o Nordeste pede homens, índios ou brancos, para ajudar a combater o invasor. E Raposo Tavares atende ao apelo. Mal chega do Sul, já começa a preparar as tropas paulistas de socorro. Por sua própria conta forma um pequeno exército de 150 homens, tendo então sido nomeado capitão-de-companhia e perdoado de todos os crimes que "porventura tivesse cometido".
A pequena tropa de Raposo junta-se com os quase 3 mil homens do exército do governador-geral, Dom Fernando de Mascarenhas, Conde da Torre, e - em vários navios - seguem todos para a Bahia e depois Pernambuco. Em novembro de 1639, ocorre o primeiro choque naval com os holandeses. Os paulistas de Raposo pareciam peixe fora da água: onde estavam a floresta, o zumbir dos insetos e das flechas, a luta em campo aberto: Para quem combate no mar, coragem apenas não basta. Quatro vezes se enfrentaram os holandeses, hábeis homens do mar, e a esquadra do Conde da Torre. No fim da última batalha, a frota estava reduzida a menos da metade dos 3 mil homens que haviam iniciado o combate. O contingente brasileiro em fuga, conseguiu desembarcar no porto de Touro (cabo de São Roque), Rio Grande do Norte, em plena área sob domínio da Holanda. E a fuga continua por terra.
Um Pernambuco, Barbalho Bezerra, comandava a retirada. Os paulistas, experientes nas longas caminhadas pelo sertão, formavam a vanguarda. Além deles, havia uma tropa da Bahia e mais um grupo de negros e outro de índios, chefiados por homens que se tornariam famosos: Henrique Dias e Filipe Camarão.
Foi uma dura caminhada. A princípio, a coluna seguiu pelas terras do litoral, atacando e muitas vezes vencendo as guarnições holandesas das vilas por onde passavam. No entanto, um exercito poderoso vinha do Recife em perseguição aos retirantes.
Muitos feridos, outros doentes, os brasileiros não podiam apressar a marcha e, para evitar o cerco, só tinham um recurso: abandonar o litoral e meter-se pelos matos do interior.
Perseguidos, sem ter o suficiente para comer, seguem lentos, carregando seus feridos. Já quase não há munições, a região não oferece abrigo. Para continuar viva, uma tropa em farrapos começa a comer os cavalos. Quando os cavalos acabam, chega a vez de mascar o couro dos animais e de se alimentar de raízes.
A MARCHA HERÓICA RASGA O CONTINENTE
Durante quatro meses, esta é a vida dia após dia. Os mortos ficam pelo caminho, os vivos se arrastam como podem. Mesmo os melhores já começam a fraquejar, quando atingem as margens de um grande rio. Era o São Francisco. Do outro lado estava a Bahia, terra amiga, em poder dos brasileiros. E, entre risos e alegria, a longa marcha estava terminada. Haviam percorrido 2700 quilometros. Como se a fadiga não o atingisse, Raposo Tavares voltou imediatamente da Bahia para São Paulo, onde se dedicou a recrutar voluntários que enviou ao Nordeste para combater os inimigos.
Nesse mesmo ano, 1640, Portugal livrava-se do domínio espanhol. E, quando a notícia chega a Piratininga, Raposo é o terceiro a assinar a aclamação do novo rei português, Dom João IV. Mais dois anos e a Coroa reconhece o quanto o bandeirante já fizera por seus interesses, dando-lhe o título de mestre-de-campo.
De 1642 a 1648, como por encanto, a figura de Raposo Tavares se perde na história, os documentos não mais falam de suas façanhas. É possível, entretanto, que nesse período o bandeirante tenha viajado para Portugal, como faz supor uma procuração passada por vereadores e moradores da vila de Parnaíba - perto de São Paulo - , autorizando Raposo Tavares, em abril de 1642, a representa-los em todo o Brasil e no Reino de Portugal, "diante de El-Rei Nosso Senhor Dom João IV e onde fosse necessário no dito Reino".
-----------------------------------------------------------
EM BUSCA DAS MINAS DE PRATA
Em fins de 1648, Raposo Tavares, já com cinqüenta anos, aparece no comando de mais uma bandeira de duzentos paulistas e mil índios.
Expulsos do Sul, os jesuítas e seus indígenas catequizados estão vivendo na região do Itatim, a sudoeste do atual Mato Grosso do Sul, entre o rio Paraguai e a serra de Amambaí, zona ainda sujeita ao Governo de Asunción.
E, mais uma vez, bandeirantes e padres espanhóis se cruzariam no interior do continente: para ir aprisionar os índios serranos, que vivem perto dos Andes, e procurar as ricas minas de prata do Potosí, exploradas pelos espanhóis, os paulistas precisavam atravessar a área de Itatim.
Primeiro passo: atacar Santa Bárbara e Mboimboi, as duas principais reduções jesuíticas no Itatim. Por motivos táticos, a bandeira segue dividida em dois blocos, um comandado por Raposo, outro pelo Capitão Antonio Pereira de Azevedo, que seguiu à frente. Fazem parte da tropa outros bandeirantes experimentados, como André Fernandes, Gaspar Vaz Madeira e o Alferes Souza da Silva.
Os dois grupos seguiram caminhos diferentes, a fim de se juntarem nas proximidades de Santa Bárbara. Raposo cruzou o pantanal mato-grossense e em seguida fez erguer um arraial para proteger sua gente das chuvas que não cessavam de cair. Enquanto isso, Antonio Azevedo atacava e destruía a redução de Mboimboi. Algum tempo depois, Raposo Tavares via chegar um punhado de homens alquebrados, em farrapos.
Era o que restava do grupo de Antonio de Azevedo, perseguido pelos índios, dizimado pela peste e até pela sede.
Mesmo assim, Raposo prepara o assalto a Santa Bárbara. Mas nem foi preciso iniciar o combate: a simples presença de Raposo Tavares foi suficiente para por em fuga os jesuítas com seus índios. Por quatro meses, entretanto, os paulistas permanecem no arraial, explorando a região em busca de minas. Abril de 1649: a bandeira de Raposo Tavares começa novamente a sua marcha, mas não esta voltando para São Paulo: caminha para o interior da América do Sul, em busca da sonhada prata. Seguindo na direção das serras de São José (hoje território da Bolívia), e rumando para o norte, não chegou a se aproximar de Potosí. Em vez de riquezas, surgem tempestades, ataques de índios, doenças. E estão apenas na metade daquilo que o Padre Vieira considerou "uma das viagens mais notáveis que até hoje se tem feito no mundo".
Sempre na busca das minas de prata, Raposo atinge o rio Guaporé e depois se embrenha na floresta amazônica. Está em plena selva equatorial, o ar é úmido, o calor abrasa. Marcha por caminhos pantanosos infestados de cobras, insetos. A selva é densa e fechada, grossos cipós, árvores imensas, vegetação intrincada, um emaranhado infernal que precisa ser destruído, centímetro a centímetro, para que possam passar. O progresso é lento, penoso. Mas Raposo não pára, só os mortos ficam para trás. Depois de passar as cachoeiras do Madeira, chega finalmente ao Amazonas.
1651: Raposo entra em Santo Antonio do Gurupá, nas proximidades da atual Belém, no Para, 'a frente de apenas 58 homens.
Os outros 1142, que constituíam sua tropa inicial, haviam desertado ou caído pelos caminhos abertos de um continente. Sem a prata sonhada, muitos companheiros mortos no sertão, o bandeirante chega a São Paulo, magro e desfigurado. Ninguém pôde sequer reconhecer o grande sertanista, depois dessa última viagem, nem mesmo seus familiares. Muitos até já o davam como morto. Do Atlântico à Bolívia, da Bolívia ao Amazonas, passando do trópico de Capricórnio a Equador, Raposo Tavares realizara a primeira viagem de reconhecimento geográfico do espaço continental da América do Sul e uma das maiores expedições exploradoras deque já se teve notícia.
Dez mil quilometros percorridos, três anos de viagem. E, enquanto a bandeira permanecia isolada no sertão, muitas coisas aconteceram. Em 1648, Salvador Correia de Sá e Benevides conseguira recuperar Angola, expulsando os holandeses que ali se haviam estabelecido. Voltava ao domínio de Portugal a principal zona exportadora de escravos da África ocidental.
A consequência imediata foi o rápido aumento do fluxo de negros para o Nordeste brasileiro. Alguns anos depois (1654), os holandeses eram derrotados e retiravam-se em definitivo do Brasil. Facilitava-se mais ainda o tráfico de negros. Os fazendeiros de Pernambuco e da Bahia desinteressaram-se da compra dos índios vindos do Sul. As "peças" perdiam muito do seu valor. A partir de então, destruídas as missões, os bandeirantes necessitavam ir cada vez mais longe, caçar os índios cada vez mais escassos e recebiam cada vez menos pelo trabalho.
De outro lado, surgiam nas Antilhas outras regiões produtoras de açúcar e os canaviais do Nordeste entravam em decadência. Com isso, o bandeirismo indianista caminhava para a extinção, substituído pelas bandeiras de mineração.
Raposo Tavares derrotara o Amazonas, mas também fora batido.
O homem forte que saíra do planalto se gastara na floresta imensa. Em seu lugar regressava um farrapo, passos indecisos, cabelos cor-do-tempo, magro pouco mais que um esqueleto.
São Paulo não reconheceu o fantasma. Três anos de pântanos, montanhas e selva, e Raposo Tavares perdera a destreza, o ímpeto, a força. O bandeirante terminara e um velho doente regressava ao lar. Para sempre.
Passariam ainda seis ou sete anos, mas sem lutas, sem índios escravizados nem terras selvagens. Não mais fronteiras a expandir, invasores a atacar, aventuras para viver.
Apenas um velho, que se aproveita do derradeiro raio de sol. E a tarde se esgotando. A história, desinteressada do herói que agonizava, não registrou seus últimos dias.
Fonte:
http://www.pick-upau.org.brANTÔNIO RAPOSO TAVARES
Antônio Raposo Tavares o Velho (São Miguel de Beja, 1598 — São Paulo, 1658) foi um bandeirante paulista que expandiu as fronteiras brasileiras às custas dos domínios espanhóis. Muito serviu a D. Francisco de Sousa, e por isso foi por ele armado cavaleiro da Casa Real, no alvará de 20 de maio de 1601 por seus serviços. Teve diversos cargos na vila de São Paulo e foi ativo sertanista.
Reinol, pois nascido em São Miguel de Beja, Portugal, chegou ao Brasil em 1618 com o pai, Fernão Vieira Tavares, designado capitão-mor governador da capitania de São Vicente em 1622. Era assim preposto do conde de Monsanto, donatário da capitania de São Vicente. A mãe era Francisca Pinheiro da Costa Bravo. Antônio Raposo, aliás, nunca perderia contacto com os interesses da Coroa.
Fixou-se em São Paulo pelo casamento com Beatriz Furtado de Mendonça, filha de Manuel Pires, sertanista, e fundou a grande fazenda de Quitauna, onde reunia os índios que começou a apresar no sertão.
Dedicou-se ao apresamento de índios para o trabalho escravo nos engenhos. Foi capitão na bandeira do mameluco Belchior Dias Carneiro, morto em junho de 1608 no sertão. Em dezembro de 1608 entrou em São Paulo com parte da tropa, pois o resto só chegaria nos primeiros meses do ano seguinte. O cunhado de Belchior, Mateus Luís Grou, trazia algum ouro, colhido ao acaso.
Morto o pai (1622), transferiu-se para o planalto de Piratininga, fixando-se na vila de São Paulo, onde logo se entusiasmou em participar nas expedições destinadas a aprisionar índios.
A grande bandeira de 1628
De São Paulo partiu sua primeira bandeira, da qual era chefe nominal Manuel Preto, com um efetivo de cem paulistas e 2 mil índios auxiliares, seis anos mais tarde (1628). Esta expedição, dividida em quatro companhias, rumou para o Guaíra (no atual Rio Grande do Sul) e diz-se que ela iniciou o processo de expulsão dos jesuítas espanhóis, ampliando as fronteiras do Brasil e assegurando a posse dos territórios dos atuais estados do Paraná, de Santa Catarina e de Mato Grosso do Sul. À frente de novecentos brancos e mamelucos e dois mil indios, uma verdadeira cidade em marcha.
A vanguarda de sua bandeira, pequena coluna comandada por Antônio Pedroso de Barros, livre de quase todo equipamento, seguia mais depressa. A retaguarda era chefiada por Salvador Pires de Mendonça. Pedro Vaz de Barros, Brás Leme e André Fernandes comandavam companhias. Formando sistema com a bandeira, outra tropa comandada por Mateus Luís Grou varou os sertões de Ibiaguira nas cabeceiras do rio Ribeira. Comandados, seguiam na bandeira Frederico de Melo, João Pedroso de Barros, Antônio Bicudo, Simão Álvares (com eles ia o cacique Tataurana, capturado no local) e outros.
Andavam semanas percorrendo mata virgem, atravessando grandes rios. A 8 de setembro, cruzaram o rio Tibagi, bem em frente à missão de Encarnación onde levantaram paliçada. Pedroso de Barros manda erguer uma cerca de estacas e ficou à espera. Durante mais de três meses a vanguarda permaneceu frente a frente com os inimigos, aguardando a vinda do resto da bandeira. Em dezembro a tropa inteira se reuniu novamente. Tudo estava pronto para a guerra, só faltava o pretexto para justificar o ataque. A fuga de uns poucos índios (do cacique Tataurana) - aprisionados no local - que procuravam abrigo na missão próxima de San Antonio deu o motivo. Imediatamente, a bandeira deslocou-se para a missão e Raposo Tavares lançou um ultimato aos jesuítas espanhóis para entregar os índios. Os padres não cederam, os presos não foram devolvidos e a luta começou. Há relatos românticos que descrevem as nuvens de flechas, os tiros, facas e paus que fazem mortos dos dois lados. Os jesuítas, manchados de lama e sangue, congregam os índios na tentativa desesperada de salvar a missão, mandam repicar os sinos, enquanto os paulistas vencem os muros de pedra. A 30 de janeiro de 1629, o barulho cessa. A redução de San Antonio deixara de existir, dizimada. O Brasil crescera mais um pouco. Dois mil índios sobreviventes, que se renderam, foram carregados com as argolas de ferro das correntes trazidas para eles.
Dos cem mil índios que havia na redução teriam sobrado doze mil. Os jesuítas fugiram do Guairá (como se chamava a zona entre o rio Paraná e o rio Paraguai) para o Sul, região do Uruguai e Taipe, atual Rio Grande do Sul, e para oeste, na zona de Itatim.
Em 23 de março foi arrasada por Antônio Bicudo de Mendonça a redução de São Miguel, onde se refugiara o superior da Redução de Santo Antônio, destruída em janeiro. Ao mesmo tempo, Manuel Morato Coelho destruía a redução de Jesus Maria. As companhias de Brás Leme e de Antônio Pedroso de Barros pelejavam com os índios não reduzidos do Caairu, sofrendo reveses. A leva de Mateus Luis Grou ficou agindo no sertão de Ibiaguira. Os Paulistas destruiram ainda as doutrinas de Encarnação, São Pedro, Arcanjos e São Tomé.
Os sucessos permitiram-lhe fundar uma grande fazenda nas margens do rio Tietê, que contava com mais de uma centena de indígenas escravizados.
Encargos outros
Em janeiro de 1633 foi eleito juiz ordinário, e logo a seguir, desistiu do cargo pois foi provido pelo conde de Monsanto no ofício de Ouvidor da Capitania de São Vicente.
Em julho de 1633, foi assaltado o colégio e a igreja dos jesuítas em Barueri, povoação perto de São Paulo, expulsos os padres e pregadas as portas. Os assaltantes (Antônio Raposo Tavares, Pedro Leme, Paulo do Amaral, Manuel Pires, Lucas Fernandes Pinto, Sebastião de Ramos) eram todos homens poderosos contra os quais os padres lançaram processo de excomunhão julgado, por ausência do Reitor Padre João de Mendonça em Cananéia, pelo Padre espanhol Juan del Campo y Medina. Mas os autores do atentado zombaram da sentença trazida pelo Padre escrivão do processo Antônio de Medina, rompendo-a de suas mãos. A violência contra os Padres, os paulistas justificavam porque a lei de setembro de 1611 determinava que nas aldeias de índios assistissem apenas clérigos, debaixo da imediata jurisdição real ou civil. Achando-se a 25 de julho a aldeia de Barueri em poder dos jesuitas, exclusivamente, o Procurador do Conselho requereu que a Câmara fosse dela tomar conta, em nome do Rei, defendendo assim o que considerava uma usurpação do clero. A Câmara deferiu o requerimento e pouco depois convocou reunião dos maiorais da vila, realizada a 21 de agosto. Nesta reunião houve solidariedade de todos: a posse da aldeia tinha mesmo que ser à força.
Os jesuítas se queixaram ao governador geral Diogo Luís de Oliveira. O caso se arrastaria pelo menos até 1635, pois em dezembro de 1633 houve provisão ao Governador geral alegando que a posse fora embuste para encobrir o verdadeiro motivo dos Paulistas, que era a escravização dos índios, ordenando a devolução da aldeia e da igreja aos padres, cassando o mandato de Ouvidor a Raposo Tavares. Como devia servir ainda mais dois anos, Raposo Tavares opôs um embargo. Que o Ouvidor do Rio de Janeiro, Francisco da Costa Barros, recebeu em julho de 1635, para o efeito de o manter no cargo de ouvidor...
A bandeira de 1638 ao Tape
Em 1638 partiu em nova expedição, para expulsar os jesuítas espanhóis estabelecidos nas reduções da região do Tapes, hoje Rio Grande do Sul. Deixou São Paulo em janeiro, com 120 paulsitas e mil índios, e voltou em novembro. José Ortiz de Camargo seguia no troço do capitão Diogo Coutinho de Melo, fazendo a chamada «campanha dos araxás».
Em novembro a bandeira chegou ao sertão dos tapes - província que compreendia a Oeste o alto rio Ibicuí, ao Norte a serra Geral, a leste o vale do rio Cai e ao Sul a vizinhança da serra dos tapes - o centro do atual Rio Grande do Sul. A 2 de dezembro atingiu e atacou a redução de Jesus Maria, na margem esquerda do rio Jacuí, e depois de seis horas de luta arrasou a redução, fazendo prisioneiros. Depois, atacou a redução de San Cristóbal, no rio Pardo, e no rio Jacuí; logo depois tomou a redução de Santana. De acordo com a tática usada, a bandeira ia dividida em companhias, dispersas em vários pontos, guardando porém unidade de ação. Uma dessas companhias, a de Diogo de Melo Coutinho, ficou agindo no chamado «sertão dos carijós».
Est bandeira voltou a São Paulo a 20 de janeiro de 1637, mas permaneceu no Tape Antônio Raposo Tavares.
A luta contra os holandeses
De 1639 a 1642 integrou as forças paulistas, organizadas por D. Francisco Rendon de Quebedo a pedido de Salvador Correia de Sá e Benevides, que lutaram contra as invasões holandesas, combatendo na capitania da Bahia e na de Pernambuco.
A 7 de agosto de 1639 D. Fernando de Mascarenhas, 1º conde da Torre, lhe deu patente de capitão, pois juntara em São Paulo à sua custa 150 soldados que conduziu à Bahia. Foi-lhe mandado agregar-se ao terço do mestre de campo Fernando da Silveira.
A última expedição
Antônio Raposo Tavares estivera em Portugal no ano de 1647, sendo «encarregado de uma missão em grande parte secreta». A sua última expedição foi chamada aBandeira de Limites ou a grande bandeira aos «serranos», limites do Peru. Considerada a primeira viagem em torno do território brasileiro, partiu de São Paulo em maio de 1648, do porto de Pirapitingui, descendo o rio Tietê rumo aos sertões do baixo Mato Grosso. Contava com brancos, mamelucos e mais de mil índios. Um de seus principais auxiliares foi Antônio Pereira de Azevedo, baiano.
Oficialmente se destinava à busca de minas, sobretudo de prata. Diz Jaime Cortesão em seu livro «Raposo Tavares e a formação territorial do Brasil» que a parte oficial era descobrir metais preciosos mas a outra parte secreta seria conhecer conhecer melhor o Brasil para identificar os interesses de Portugal na região.
Em novembro de 1648 Antônio Raposo ordenou decisivo ataque a destru~ição das reduções do Itatim, combatendo 200 paulistas e mil índios mansos, e seu auxiliar ainda foi o velho, sexagenário, Capitão André Fernandes (que morreria no início da ação, em 1649, em local tão oposto ao sertão do Sabaraboçu onde sempre desejara e prometera ir). Ficaram destruídas as reduções jesuítas da serra de Maracaju e Terecañi, e depois Bolaños, Xerez e outras. O ataque produziu êxodo, mas partiu de Assunção um exército tão grande que os paulistas resolveram abandonar a província. A bandeira se dividiu em duas companhias. Na companhia comandada por Raposo, era alferes Manuel de Souza da Silva. A outra era chefiada pelo baiano Antônio Pereira de Azevedo.
Iniciaram assim em 1648 a famosa volta que duraria até 1651, subindo o rio Paraguai, descendo o rio Mamoré e o rio Amazonas, regressando a São Vicente com apenas 59 brancos e alguns indios. Teria subido pelo rio Itatim e pelo rio Paraguai até a nascente, internando-se de tal modo que se encontrou com os castelhanos no Peru, depois desceu em jangadas o rio Guaporé, o rio Mamoré e o rio Madeira, entrando no Amazonas. deteve-se na fortaleza de Gurupá, no Pará. André Fernandes pereceu no sertão com toda sua tropa, da qual apenas dois índios retornariam a São Paulo.
A expedição percorreu mais de 10.000 quilômetros em três anos, tendo usado o curso do rio Paraguai, do rio Grande, do rio Mamoré, do rio Madeira e do rio Amazonas. Ao chegar à foz do Amazonas, em Gurupá, no Pará, a tropa estava reduzida a 59 brancos e alguns índios. Da cidade de Belém do Pará, os sobreviventes à épica travessia da floresta Amazônica, retornaram a São Paulo, onde o bandeirante viria a falecer.
Casamentos e posteridade
Sua descendência é descrita por Silva Leme no volume III da «Genealogia Paulistana». Viúvo da castelhana Antolina Requeixo de Peralta, casou em São Paulo com Isabel de Góis.
Fonte: pt.wikipedia.org