Cortes e ataques às universidades públicas catalisam mobilização contra BolsonaroMobilização contra reforma da Previdência feita por professores, marcada para a quarta, é engrossada por mal-estar de estudantes nas instituições de ensino e pesquisa
O Governo Bolsonaro conseguiu algo pouco habitual, que os cientistas saiam de seus laboratórios para protestar nas ruas. Concretamente, aconteceu no centro nervoso de São Paulo, na avenida Paulista. A oceanógrafa Maila Guilhom, de 28 anos, estava entre os manifestantes que clamaram contra o anúncio do
congelamento de 30% das despesas não obrigatórias das universidades federais, colocando em risco inúmeras pesquisas, sem falar no cancelamento de centenas de bolsas para mestrado e doutorado. “Tentamos pressionar (contra os cortes), explicar a importância da ciência para o avanço, o desenvolvimento e o bem-estar do país”, afirma antes de admitir que “no Brasil, a ciência nunca foi prioridade”.
Marina Correa, de 27 anos, com quem Guilhom pesquisa sobre a sustentabilidade dos oceanos, está especialmente preocupada com o desdém presidencial. “As declarações dele (Jair Bolsonaro) prejudicam a nossa credibilidade, ele diz que a ciência não é produtiva, tentando nos afastar ainda mais da sociedade”, explica cercada por faixas com slogans como “O Governo quer derrubar a educação porque ela derruba Governos” ou “os cientistas não existem só nos filmes”.
Jair Messias Bolsonaro, que estudou em uma academia militar nos anos setenta, durante a ditadura, antes de empreender uma longa carreira parlamentar, nunca escondeu que considera as universidades públicas um ninho de vermelhos perigosos e a qualidade da educação, desastrosa. Erradicar o que denomina de “marxismo cultural” e “ideologia de género” das salas de aula é uma de suas obsessões.
Foi neste panorama já polarizado que o ministro da Educação, Abraham Weintraubm resolveu usar uma retórica ainda mais belicosa contra as instituições para anunciar os cortes. Foi o que ajudou a tirar as cientistas do laboratório. Foi o ingrediente que faltava para unir o mal-estar no sector, onde os professores de todos os níveis já se mobilizavam contra as mudanças prometidas na reforma da Previdência. Agora, a convocatória nacional da categoria contra alterações nas aposentadorias, prevista para a quarta-feira dia 15, ganhou o reforço da UNE (União Nacional dos Estudantes).
Para além dos chamados das organizações, o chamariz dos protestos se mostra nas redes sociais. Já houve atos maiores e menores em capitais e cidades médias. Universidades e institutos federais afectados pelos cortes também fazem assembleias específicas para aderir ao movimento. A articulação projecta a quarta-feira como um teste importante tanto para o fôlego da mobilização como para a capacidade de reacção de Bolsonaro.
Mobilização no exterior
“Balbúrdia” tornou-se o grito de guerra dos afetados porque é o termo que Weintraub usou ao anunciar os cortes: “As universidades que, ao invés de tentar melhorar o desempenho académico, estiverem gerando caos terão seus recursos reduzidos”, alertou em uma entrevista. Diante do calibre da polémica, Weintraub se explicou em uma cena inesquecível: juntou-se a uma transmissão ao vivo via Facebook de Bolsonaro para explicar didacticamente o impacto dos cortes com uma centena de bombons sobre a mesa. “Não estamos cortando, estamos deixando (uma parte) para comer depois de Setembro”, disse.
João Marcelo Borges, director de estratégia política do Todos pela Educação, um movimento da sociedade civil, explica que todos os Governos costumam bloquear temporariamente os recursos para que as contas fechem. Mas critica que este seja “um corte linear, sem critério” e sem diálogo com os reitores. Acrescenta que “desde as eleições, vários ministros manifestaram certa oposição à universidade pública com base em percepções ideológicas, precisamos saber se os cortes irão além da crise fiscal”.
Ou Ministro dá Educação @abrahamWeinT estuda descentralizar investimento em faculdades de filosofia e sociologia (humanas). Alunos já matriculados não serão afectados. Ou objectivo é focar em áreas que gerem volta imediato ao contribuinte, como: veterinária, engenharia e medicina.
— Jair M. Bolsonaro (@jairbolsonaro) 26 de abril de 2019
Os quatro longos meses de Bolsonaro na presidência foram particularmente tormentosos no ministério da Educação, palco de uma guerra fratricida entre sectores do Governo que levou à queda do ministro original, 15 demissões e semanas de paralisia. O actual ministro, um bolsonarista ideologizado que é economista e professor universitário, anunciou sem grandes detalhes que pretende manter o plano nacional de alfabetização anunciado por seu antecessor e expandir o ensino técnico e profissional. Borges ressalta que o ministro abriu um diálogo com o mundo educacional. “Ainda não temos prioridades claras, mas sim uma mudança de procedimento”, afirma.
Embora o Brasil gaste 6% do PIB em educação, a despesa média por aluno equivale a um terço da média da OCDE (clube de países ricos ao qual o país aspira pertencer) e seus resultados ainda são pobres, apesar das melhorias na última década. Excepto em rincões muito remotos, o problema não é ir à escola, mas aprender. O Banco Mundial calculou que os estudantes brasileiros levarão 260 anos para alcançar a média da OCDE em capacidade de leitura e 75 anos em matemática. Acontece no resto da América Latina e é ainda mais grave na África.
Bolsonaro tem martelado que a obrigação da escola é ensinar a ler, escrever e a ter um ofício que produza benefícios tangíveis. Por isso, recentemente sugeriu em um tuíte que o orçamento dos cursos de Sociologia e Filosofia fosse redireccionado para “áreas que gerem um retorno imediato ao contribuinte: veterinária, engenharia e medicina”.
A sugestão do presidente de deixar de investir no ensino de sociologia e filosofia foi rapidamente respondida também do exterior. Cerca de 800 instituições de todo o mundo assinaram uma carta aberta, uma iniciativa de dois estudantes de Harvard, em favor da manutenção do financiamento para ambas as disciplinas. Um dos signatários, a professora Jocelyn Viternam, explicou ao diário estudantil Harvard Crimson que “quando os partidos tentam limitar a criação e o desenvolvimento de conhecimentos sobre o poder, a desigualdade e a sociedade, é para se preocupar”.
Quando durante a campanha Bolsonaro propôs, como grande solução, o ensino à distância, elogiou que os jovens chineses, japonesas e israelenses soubessem equações químicas, fazer uma integral, uma derivada... e zombou do que interpreta como pensamento crítico, “Enquanto isso, nosso menino tem pensamento critico. Está decidindo se é homem ou mulher, que é a grande questão de sua vida, além da militância política”.
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