Sobre um caso de doutorite aguda
Será que a doença portuguesa de doutorite constitui herança de uma sociedade em que a pobreza e a iliteracia eram generalizadas? Uma sociedade predominantemente rural onde o estatuto ainda não tinha sido substituído pelo contracto? Há quem pensa que sim. Mas se formos ver os romances do século XIX encontramos uma situação surpreendente.
Tomemos por exemplo Os Maias de Eça. A personagem principal, Carlos de Maia, é apresentada logo no princípio do livro como recém-formado em medicina. Ao longo do livro é sempre tratado como Senhor Carlos da Maia (ou Vossa Excelência pelos inferiores). De facto, ninguém no livro é tratado por doutor, engenheiro ou qualquer outro título académico. A generalização dessa prática foi obra da Primeira República e somos levados a concluir que os doutores, engenheiros etc., vieram a substituir os titulares da antiga nobreza. Apesar do proclamado apego ao ideal da igualdade, parece evidente que os ‘desagradáveis doutores da República’ (como lhes chamou Vasco Pulido Valente) não conseguiram resistir ao apelo da hierarquização da vida social. Nem os juristas e tecnocratas do Estado Novo. E, ainda menos, os seus sucessores no ‘Portugal de Abril’.
No mínimo, temos a sorte de não termos copiado os alemães onde as mulheres adquirem, por casamento, o título do marido. Mas tinha sido mais simples se tivéssemos imitado os franceses onde toda a gente salvo os médicos é Monsieur ou Madame.
Nas actuais circunstâncias portuguesas o caso da Grã-Bretanha tem alguma pertinência. Entre os ingleses ninguém fora da universidade liga aos títulos académicos. Como em França, só o médico é doutor enquanto um médico-cirurgião inglês tem muita honra em ser tratado por Mr. Em Portugal até os comunistas apreciam ter um doutor como presidênte de uma câmara alentejana; os britânicos querem lá saber.
Winston Churchill foi um péssimo aluno, só passando em Inglês e História nos exames do fim do secundário. Para entrar na Academia Militar de Sandhurst teve que tentar três vezes até conseguir. Churchill tinha a vantagem de ser neto do Duque de Marlborough, mas a sua falta de habilitações literárias não foi excepcional entre os políticos ingleses.
A primeiro figura do Labour a chegar a Primeiro-Ministro, Ramsay MacDonald, de origem humilde e filho natural, foi PM três vezes e não tinha estudos superiores. Jim Callaghan, igualmente Labour, que ocupou todos os altos cargos do Estado antes de ser primeiro-ministro, também não frequentou a universidade. O último primeiro-ministro conservador, John Major, de origem humilde, saiu da escola aos dezasseis anos e depois de vários empregos modestos tornou-se bancário e enquanto empregado fez os exames do Instituto dos Bancários.
Em nenhum destes casos a falta de estudos superiores sequer era mencionado nas respectivas campanhas eleitorais ou na propaganda dos adversários.
Por que será que os portugueses são tão ostensivamente obcecados com as habilitações literárias dos seus representantes políticos? O que significa esta patologia social que levou um jovem e ambicioso político, dirigente de um partido que não para de pregar o igualitarismo, a enlear-se num imbróglio tão grotesco como humilhante?
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