Pessoalmente não tenho uma opinião fechada sobre o assunto, mas reconheço que já fui mais entusiasta por este Acordo.
Não desconheço as dificuldades engendradas por mudanças ortograficas, e basta comparar a literatura mas especialmente a imprensa (mais próxima da língua corrente) de antes e depois de 1911 ( que foi sem dúvida a alteração mais importante nos tempos modernos) e a confusão causada na população letrada (práticamente minoria) e que de resto eu ainda pude comprovar quando comecei a aprender, pois muitas pessoas ainda escreviam na maneira 'do antigamente' dezenas de anos passados sobre essa reforma.
Mas também é verdade que a época, era outra... (é inútil salientar as mudanças ocorridas entretanto) e este Acordo, que, tal como a
Pereira Marques me 'parece', de âmbito limitado implicaria menor resistência ou dificuldades na sua transposição.
Mas também nos podemos questionar... afinal será que compensa?... e se ele se tornar obsoleto rápidamente, sem honra nem glória ?
O problema pode pois ser visto, como por aqui já tem sido referido, por diferentes ângulos...e a seguir se transcrevem duas opiniões negativas (ou pessimistas)
Uma escolha política afinal...
O nosso império é a língua portuguesa
16.04.2008, Rui Ramos
Depois de perdida a soberania com que nos ampliámos em África, agarrámo-nos à língua
Já venho tarde, mas não queria deixar de saudar a boa nova. Não me refiro à baixa do IVA, anunciada pelo ministro das Finanças, mas à nossa "expansão", prevista pelo ministro da Cultura. É verdade: vamos expandir-nos. Está para chegar um Portugal maior. Talvez a sua população e riqueza até venham a diminuir, mas que importa? Temos uma arma secreta para conquistar o mundo: aquela que Fernando Pessoa insinuou maliciosamente ser a "pátria" dele - a língua portuguesa. É o que nos prometem os crentes do Acordo Ortográfico: um Reich na ponta da língua.
Não vou discutir ortografia, mas os termos curiosos em que a temos debatido nas últimas semanas. De um lado, falaram-nos do "c" de "facto" com a intransigência possessiva que os sérvios dedicam ao Kosovo, e avaliou-se o Acordo "estrategicamente", como se estivéssemos perante uma nova partilha de África, com o Brasil no papel oitocentista da Inglaterra. Do outro lado, recomendaram-nos a nova grafia como a oportunidade de não "ficar aqui como uma espécie de dialecto" (horror), e podermos desfilar ao lado do Brasil na "afirmação de um poder à escala mundial" (segundo o nosso entusiasmado embaixador em Brasília).
Acho comovedor este uso despudorado da linguagem típica do imperialismo ("expansão", "estratégia", "afirmação do poder à escala mundial", etc.) para nos referirmos à língua que partilhamos com mais umas dezenas de milhões de pessoas de outras origens e nacionalidades. Quando nos puxam pela língua, acontece-nos isto: de repente, este país pachorrento e decadente revela-se uma potência beligerante, ciosa das suas aquisições e decidida a novas conquistas. Sim, porque através da "pátria" de Pessoa, nós somos grandes. Tal como a casa da velha canção brasileira, o nosso "império" não tem soldados, nem dinheiro, mas é feito com muito esmero - da língua que outros usam na América, na África e (segundo gostamos de acreditar) na Ásia. E assim prosseguimos a nossa expansão ultramarina, por mais que ninguém dê por isso.
Definitivamente, continuamos a não ser um país pequeno. No tempo do Estado Novo, isso provava-se com os mapas das colónias; agora, pacífica e correctamente instalados em democracia, evocamos a "quarta língua a nível mundial", e os seus "200 milhões" de súbditos. É compreensível. No fundo, há algo de deprimente nas nações reduzidas. George Simenon dizia que ser belga é como não ter país. E talvez por isso, muita gente está preparada para lhe atribuir a ele ou a Hergé, tal como aos suíços Rousseau e Constant, uma pátria (a França) mais consentânea com a sua grandeza individual. As elites portuguesas, que durante a Monarquia sonharam fazer aqui um país tão próspero como a Bélgica e durante a I República tão democrático como a Suíça, nunca se conformaram com o estatuto de pequeno país que era o dessas nações, apesar de liberais e ricas. E depois de perdida a soberania com que nos ampliámos em África, agarrámo-nos à língua, a ver se por aí continuávamos a fazer uma sombra grande no mundo.
Não nos fica mal desejarmos ser muito mais do que aquilo que somos. O que talvez seja menos recomendável é o modo como usamos esta grandeza imaginária para nos pouparmos ao reflexo da nossa realidade. A Europa pesa cada vez menos no mundo, e Portugal pesa cada vez menos na Europa. A língua é a balança avariada com que nos atribuímos robustez. Infelizmente, tudo o que assim sobe acaba por descer: eis que a Venezuela proíbe às suas crianças os Simpson e quer (como compensação?) ensinar-lhes português - e logo o nosso Governo tem de confessar que nos falta dinheiro e pessoal para acompanhar o último capricho de Chávez.
O Brasil, muito citado acerca do Acordo Ortográfico, forma outro capítulo pungente do nosso irrealismo. Nunca percebemos que a ignorância mútua, ritualmente lamentada, não está à mercê de um "acordo". Fingimos desconhecer o fenómeno do "nativismo" no Brasil, que faz com que por cada Gilberto Freyre haja dez Sérgio Buarque de Holanda, ardendo em fervor antilusitano. Imaginamos que a incapacidade dos livros portugueses para hoje chegarem onde chegou Cabral em 1500 se deve simplesmente ao "c" de "facto". Nem sequer admitimos que o Brasil, no fundo, não nos importa demasiado. Vamos lá de férias: quantos aproveitam para ir ao teatro ou às livrarias? E quantos conhecem a política ou os escritores mais recentes do Brasil? A verdade é que o Brasil ainda não é suficientemente interessante para nós, e nós já não somos suficientemente interessantes para o Brasil. O resto é conversa de um império de conversa.
Historiador
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A língua, o acordo e uma falsa unidade ditada pela política
16.04.2008, Nuno Pacheco
A "unidade" que ora se apresenta em nome da CPLP, não da língua, tornará o português ainda mais distante das línguas com maior difusão no Globo, ao evitar assumir de forma clara a sua diversidade
Das declarações prestadas ultimamente a propósito do Acordo Ortográfico que por aí se discute, nenhuma terá sido tão clara como a que foi proferida (numa óptica favorável) pelo embaixador Seixas da Costa, em entrevista ao PÚBLICO e à Rádio Renascença. Disse ele: "Temos de olhar para a CPLP como uma comunidade relativamente atípica porque é a única comunidade linguística em que a potência mais importante não é a antiga potência colonial." Ou seja, o acordo é sobretudo um instrumento político e não resulta de nenhuma necessidade linguística. Isso mesmo se entendeu do debate no mais recente Prós & Contras da RTP1, onde se repetiram, de forma aliás fastidiosa, os argumentos do costume: que as crianças, coitadas, têm dificuldade em aprender o português tal como se apresenta na sua vertente europeia e por isso faz sentido o acordo; ou que os idosos vão ver-se aflitos para entender tal caos linguístico e por isso ele deve ser recusado. É inútil usar tais argumentos, porque é a CPLP que se discute. Quem nela pesa, caso do Brasil; e quem nela quer fingir que pesa, caso de Portugal. Os comunicados oficiais conjuntos, na tal língua "unificada", são uma quimera. Por mais que se tirem consoantes, falaremos de desporto ou de esporte? De equipa ou de equipe? De bilheteira ou de bilheteria? De metro ou de metrô? De autocarro ou de ônibus? De comboio, trem ou trem-bala?
Convém recordar que, já no início do actual milénio, foram editados dois dicionários monumentais: o da Academia das Ciências de Lisboa e o Houaiss, este com edições no Brasil (seu criador) e em Portugal. Ambos com cerca de 3800 páginas e com apoio da Fundação Calouste Gulbenkian (é neles, aliás, que se consagra já o aportuguesamento de alguns estrangeirismos, passando a escrever-se dossiê, robô, lóbi, etc.). Um novo acordo obrigaria a reeditá-los, naturalmente. Mas valeria a pena, em nome da tal língua "unida" de que se fala? Basta ler, na edição portuguesa do Dicionário Houaiss, o mais completo de entre eles, o texto introdutório assinado por Malaca Casteleiro, um dos paladinos do Acordo Ortográfico em curso, para concluir que não. O que continuará diferente será imenso; o que passará a ser igual, uma curta parcela; e o que era igual mas mudará nas novas regras ("recepção", por exemplo), irá criar novas diferenças.
As "duas ou três línguas com dimensão efectiva ou tendencialmente global" a que Carlos Reis se referiu, por exemplo, quando defendeu o acordo no Parlamento são, curiosamente, as que maior número de variantes apresentam naquele que é o mais usado dicionário do mundo, o que integra o processador de texto Word, instalado em biliões de computadores. Ali, pode ver-se que o espanhol, por exemplo, tem nada menos do que 20 variantes (da Argentina à Venezuela, passando por duas só para o espanhol europeu: a variante moderna e a variante tradicional); o inglês tem 18 (da Austrália ao Zimbabwe, passando obviamente pelo inglês usado no Reino Unido e nos EUA); o francês tem 15 (da Bélgica às Índias Ocidentais, passando pelo Mali e pelo Mónaco); o árabe tem 16 variantes registadas. E mesmo línguas com menor difusão em países que não o da sua origem mostram-se mais assumidamente plurais: o alemão e o chinês têm cinco variantes, o sérvio tem quatro. E o português, em lugar de seguir a tendência das línguas mais faladas no Globo, aceitando a sua multiplicidade, procura reduzir as duas únicas variantes que ali tem (Portugal e Brasil, claro) a uma utópica língua "única". Em vez de, como lhe competia, tratar de consagrar nesse mesmo dicionário variantes de Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste e também Macau e Índia, em proporções a definir pelos linguistas.
O Acordo Ortográfico, porém, marcha em sentido contrário. A "unidade" que ora se apresenta em nome da CPLP, não da língua, tornará o português ainda mais distante das línguas com maior difusão no Globo. Assumir as diferenças, valorizá-las, em lugar de esbatê-las sob pretextos ínvios, seria um muito melhor caminho. O futuro o dirá.