Uma leitura política da crise dos refugiados
Alexandre Reis Rodrigues
Depois da desastrada intervenção americana no Iraque ninguém estranhou que os adeptos das políticas intervencionistas dos EUA, e do recurso fácil ao uso da força militar, tivessem tido que ceder o protagonismo de que beneficiaram na administração Bush aos que não concordaram com essa linha de ação, agora liderados pelo Presidente Obama. Contrariamente ao prescrito no conceito “responsability to protect”, adotado em 2005 unanimemente na Assembleia Geral das Nações Unidas, passou a evitar-se qualquer interferência na forma como os países soberanos governam o seu povo, independentemente das atrocidades que continuam a ser cometidas.
Não obstante as razões que levaram a esta reorientação - em que também pesou o cansaço americano depois de uma década de intervenções assumidas quase isoladamente -, a forma como tem evoluído o ambiente de segurança, com o mundo a viver sob o terror de algumas organizações terroristas que ameaçam a paz e a estabilidade em várias regiões, diz-nos que é chegada a altura de ponderar entre os custos de intervir e os custos de não intervir. Já se tornou evidente que a hegemonia americana, apenas pelo seu poder potencial, não chega – contrariamente ao que a atual administração esperava – para impor soluções nem para defender interesses. Como se viu no caso da Síria e, mais recentemente, no caso da Ucrânia, as dinâmicas regionais estão a pôr em causa de forma demasiado fácil, a ordem internacional de que os europeus esperavam que os EUA continuassem a ser os grandes guardiões.
Não faltou quem alertasse para os perigos deste distanciamento dos EUA e tivesse chamado a atenção para o risco de uma falta de estratégia consistente para a crise síria. Em abril de 2013, a administração americana reagia a essas críticas alegando estar a seguir uma estratégia de contenção do problema dentro das fronteiras sírias. Os que não concordaram com esta argumentação diziam que, a curto prazo, o conflito se tornaria um problema estratégico para a Jordânia.
Tornou-se bem pior do que se imaginava e para todos os vizinhos, em particular para a Turquia e para o Líbano. Neste segundo caso, em termos de proporção em relação à sua população, o número de refugiados que este acolheu (mais de um milhão e cem mil) equivaleria na Alemanha a 22,5 milhões de refugiados ou 88 milhões nos EUA (dois milhões em Portugal). Embora sob proporções muito mais reduzidas – quase insignificantes em relação às situações atrás referidas – o drama acabou por chegar á Europa, frustrando as expectativas, aliás irresponsáveis, de que conseguiria ficar á margem do problema. Não ficou e foi apanhada desprevenida sem qualquer solução imediata para pelo menos minimizar a “avalanche” e evitar o caos resultante da falta de qualquer controlo.
Este problema não decorre especificamente da situação que se desenvolveu na Síria. Vem na linha da postura adotada de, no geral, deixar a solução dos problemas de segurança e defesa europeus ao quase exclusivo cuidado dos EUA, mantendo-se a Europa tão à parte quanto possível. Como dizia Cutileiro, há alguns anos atrás, a Europa parece mais interessada em que a “deixem em paz do que em ajudar a fazer a paz”. Só que, entretanto, os EUA alteraram a sua estratégia de segurança. Decidiram-se por um critério rigoroso de intervenções, restrito a situações em que estiverem em causa interesses diretos. Fora dessa situação esperam que as potências locais assumam as suas responsabilidades, situação para que a Europa ainda não se preparou. Pior ainda, não deu sinais de se querer preparar.
Tendo-se colocado á margem de qualquer tentativa de solução do problema sírio a Europa não cuidou de ter em conta que o provável seria vir a ter que enfrentar o impacto de uma guerra civil prolongada que, como sempre, gera ondas de deslocados internamente e de refugiados no exterior. Não teve presente que iria ter pela frente um problema que lhe diria diretamente respeito e apenas muito marginalmente aos EUA, embora as suas origens decorram em grande parte de políticas falhadas deste últimos. Não estou a defender que deveria ter lutado por uma estratégia de intervenção militar. Deveria, no entanto, ter estado ativa na procura de uma solução em vez de deixar o problema apenas para os EUA, perdendo assim uma ocasião de acautelar os seus interesses. Houve imprudência.
Agora está perante um problema que veio para durar e agravar-se. A melhor esperança de algum abrandamento pode vir com o fim do tempo de verão que facilitou o incremento verificado nos últimos três meses. Será em qualquer caso um abrandamento temporário. Se as causas permanecerem o fluxo vai continuar mal as condições melhorem.
Teoricamente há três formas de atuar para o tentar resolver. Atuar na origem, atuar no destino ou no percurso para entrada na Europa. A primeira é a via que os EUA estão de novo a tentar, em conversações já acordadas com a Rússia para outubro e que incluirão algumas potências regionais (Turquia, Irão, Arábia Saudita e Egito). Estranhamente, a União Europeia não faz parte destas conversações, apesar de ser um dos principais interessados em pôr cobro à crise, quer por interesse próprio, quer por razões humanitárias a que os europeus são sensíveis.
David Cameron já reconheceu claramente essa prioridade quando disse: «the most important thing is to try to bring peace and stabiity to that part of the world» mas não é nisso que a liderança europeia está concentrada. Em alternativa, aposta em criar centros de triagem nos pontos de entrada, que talvez estejam operacionais em novembro, em intervir no mar apreendendo as embarcações usadas pelas máfias da emigração e em continuar a tentar encontrar uma forma consensual de distribuir os refugiados.
Tudo isto é necessário mas é também insuficiente se não se atuar na origem principal da crise. No mínimo, entrando de forma ativa nas conversações de outubro atrás referidas. Se não o fizer, a União não estará a dar a devida importância a uma questão muito grave de migração que está sob o risco de passar de um problema de segurança humana para um problema de segurança nacional dos países membros. Estará a dar razão aos que pretendem tomar o assunto em suas próprias mãos em vez de esperarem por uma solução coletiva.
Jornal Defesa