Os bufos de Erdogan vêm da própria sociedade civil
Pais que denunciam filhos. Maridos que acusam as mulheres. Colegas que traem colegas. A 16 de Abril, os turcos votam em referendo a revisão da Constituição, que pode trazer ainda mais poder ao Presidente, Recep Erdogan.
Num sábado, enquanto consultava o Facebook em casa, Bilgin Ciftci viu uma publicação que o fez rir. Era uma montagem de imagens do Presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, ao lado de Gollum, personagem da saga Senhor dos Anéis. Na primeira imagem, o Presidente e o habitante enrugado da Terra Média criado por J.R.R. Tolkien tinham o mesmo olhar de espanto. A segunda mostrava as duas figuras de olhos arregalados de admiração. Na terceira, Erdogan roía uma coxa de frango ao mesmo tempo que Gollum dava uma dentada num peixe.
Ciftci, um médico da cidade de Aydin, no Oeste da Turquia, carregou no botão de partilha e não pensou mais no assunto. Porém, algumas semanas depois, foi convocado para ir à polícia e acusado de insultar o Presidente – o que é crime na Turquia. Perdeu o emprego num hospital público e ficou preso a um processo legal que já se arrasta há mais de 18 meses. A certa altura, o juiz chegou mesmo a nomear um painel de peritos em Tolkien para o aconselhar sobre se Gollum devia ser considerado bom ou mau (estes decidiram que, no fundo, ele tem bom coração).
No meio deste absurdo, a história tem outra camada mais negra. Quando partilhou o meme, Ciftci, de 48 anos, pensava que só o estava a mostrar aos membros da sua rede privada no Facebook. No entanto, a polícia tinha uma captura de ecrã da sua página. Não lhe tinham pirateado a conta, nem espiado o computador. A verdade era muito mais perturbadora: ele tinha sido traído por alguém que conhecia. Ciftci deduziu que o culpado seria o marido de uma familiar. Quando lhe telefonou para o confrontar, o parente começou por negar e depois desligou o telefone.
O tormento de Ciftci reflecte uma situação mais importante que está a acontecer na Turquia, algo que poderia ter saído das páginas de um romance distópico. Praticamente todas as semanas surgem histórias sobre amigos, colegas e até cônjuges que se denunciam uns aos outros por uma série de infracções. “Isto tornou-se um fenómeno na nossa sociedade”, afirma Ciftci, sentado num café perto do tribunal de Aydin, uma instituição que se tornou mais familiar do que ele alguma vez podia ter imaginado. “Há pessoas que são mais papistas que o Papa. Tornam-se cidadãos informadores.”
Caros cidadãos informadores
Todos os serviços policiais e de espionagem utilizam com regularidade infiltrados e informadores na luta contra o crime organizado e o terrorismo. A Turquia – um país que, no ano passado, sofreu 267 ataques terroristas diferentes e também uma violenta tentativa de golpe de Estado que provocou mais de 200 mortos – enfrenta várias ameaças genuínas e profundamente graves. Mas há inúmeras histórias de cidadãos normais, não remunerados, que decidiram transformar-se num exército de informadores voluntários.
Há muitos precedentes históricos para este tipo de traição, desde estrelas de Hollywood a denunciar-se mutuamente no auge da caça às bruxas do mccarthismo à vasta rede de informadores que ajudava a Stasi na República Democrática Alemã. A Turquia também tem um histórico considerável. O paranóico sultão Abdul Hamid II tentou manter a união de um Império Otomano desgastado recorrendo a um exército de espiões oficiais e não oficiais.
Um relatório consular americano do início da década de 1940 relata que os turcos que rejeitavam o Governo costumavam descobrir que a polícia sabia das suas “infracções menores”, por vezes com a ajuda de informadores secretos “que parecem existir em abundância neste local”. Depois de um golpe de Estado em 1971, os generais no poder gostavam de usar o termo “caros cidadãos informadores” para se dirigirem à nação, o que mais tarde deu origem a uma peça de teatro com o mesmo nome.
Um informador – se fosse conhecido – não sobrevivia facilmente na nossa sociedade. Este Governo acabou com essa ideia.”
Melda Onur, deputada da oposição
Na Turquia de hoje, em que os partidos da oposição estão enfraquecidos e todos os principais meios de comunicação foram forçados à submissão, domínios como a casa de chá, a sala de aulas ou o feed de notícias do Facebook são mais difíceis de controlar. Há vários anos que o Governo costuma incentivar os responsáveis eleitos dos bairros a manter registos sobre as pessoas da sua zona. Estes apelos também se estendem cada vez mais aos cidadãos comuns.
A motivação vem do topo. “Se conhece alguém, em qualquer lugar, informe os nossos serviços de segurança imediatamente”, apelou o Presidente Erdogan em Dezembro, ao falar sobre uma vaga de atentados terroristas fatais. “Isto não é competência só dos nossos serviços de segurança.”
Impelidos por este tipo de incentivo e ajudados por um sistema judicial ineficiente, actualmente os apoiantes leais patrulham as esferas pública e privada. Alguns até se gabam dos seus feitos nas redes sociais.
“Na Turquia, costumava ser considerado uma vergonha fornecer informações à agência de espionagem ou à polícia”, conta Melda Onur, uma deputada da oposição que recentemente partilhou a história de um taxista que denunciou um passageiro por criticar o Governo. “Um informador – se fosse conhecido – não sobrevivia facilmente na nossa sociedade”, acrescenta. “Este Governo acabou com essa ideia.”
As histórias sobre quem denuncia e quem é alvo de denúncias revelam o lado negro de um país devastado pelo medo e pela intolerância – e servem de aviso às sociedades ocidentais que se debatem com as suas próprias clivagens políticas e sociais.
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Exclusivo PÚBLICO/ Financial Times