https://observador.pt/opiniao/acordar-para-os-perigos-do-wokismo/ Acordar para os perigos do wokismo
O wokismo vigia a linguagem, controla os gestos e os comportamentos, aponta o dedo, tem uma natureza inquisitorial. O woke típico é um radical intransigente e implacável. O woke típico é um tirano.
01 set. 2024, 00:44
“Woke”, cultura “woke”, “smo”… o que é?
O termo “woke” surgiu na comunidade afro-americana, no seio do movimento por ela criado que se propunha lutar contra a segregação racial nos Estados Unidos. A origem da palavra “woke” (tempo passado do verbo wake, despertar) surge de uma expressão utilizada pelos negros norte americanos quando estes perceberam que a luta pelos direitos civis e pela igualdade racial não estava, sob o ponto de vista legislativo, a tornar-se tão efectiva quanto o desejável. Era preciso estar alerta, e despertar para esse facto. Começaram, então, os negros a dizer entre eles “stay woke, stay woke”, mantém-te desperto, mantém-te alerta. Esta temática, em toda a sua complexidade, gera actualmente uma verdadeira batalha cultural e política nos EUA.
Este movimento partiu de uma necessidade legítima e justificada que se podia descrever como o estar acordado, desperto perante as injustiças que então havia e que, lamentavelmente, ainda estão presentes na sociedade norte americana. Em 2017, o dicionário inglês Oxford acrescentou este novo significado, “woke”, definido como: “estar consciente sobre temas sociais e políticos, especialmente o racismo”.
Esta corrente de ideias, impulsionada pelo movimento Black Lives Matter, e também pelo impacto global da morte de George Floyd (vítima de brutalidade policial e, de acordo com muitos, vítima do racismo sistémico da polícia americana), disseminaram-se e tiveram uma grande repercussão, particularmente na última década. Contudo, o tempo foi mostrando que os valores fundadores que lhe deram origem foram-se perdendo, subvertendo, foram cavando trincheiras e, finalmente, transformaram-se numa espécie de caricatura dessas boas intenções iniciais. As sensibilidades dividem-se; temos o habitual grupo, por ventura maioritário, algo alheado, desinteressado, que pouco ou nada sabe do assunto; um segundo grupo, para os quais, ser woke é ter consciência social e racial, ser woke é pôr em causa padrões e normas injustas e discriminatórias, historicamente impostos pela sociedade. Finalmente, temos o grupo que considera que o termo woke descreve um grupo de indivíduos autoritários, intolerantes e hipócritas que se auto classificam como moralmente superiores mas que querem impingir, à força, as suas ideias progressistas sobre os demais.
“Wokismo”, numa prespectiva político-histórica
Alguns autores defendem que a ascenção do wokismo, para muitos, um típico produto americano fast food, surge da necessidade que o movimento comunista, e uma certa esquerda – entretanto aburguesada, chique, caviar… perante o colapso da União Soviética e da queda do Muro de Berlim – teve de se regenerar e reinventar. E para que tal fosse viável, seria necessário criar novos actores políticos, novas causas, novas bandeiras… tais como o racismo, os movimentos LGBT+, o feminismo radical, o clima, os direitos dos animais. Claro que todas estas causas são importantes e legítimas na sua justa medida; claro que muitas pessoas lutam e acreditam verdadeiramente que estão a defender princípios e valores, mas, lamentavelmente, muitos dos seus ativistas (aqueles que vandalizam obras de arte, cortam estradas ou agridem pessoas públicas, por exemplo) ao radicalizar e hiper ideologizar as suas posições, acabam por trair as causas iniciais, revelando, deste modo, que estão mais preocupados com agendas político-partidárias e interesses particulares do que propriamente com a genuinidade e autenticidade das causas e valores que os deviam, supostamente, mover.
Numa perspectiva social
Já numa perspectiva sociológica, os wokes seriam, de acordo com o filósofo Pondé, uma espécie de “fetiche do capitalismo”. Quando o wokismo percebe que nada de concreto pode fazer para enfrentar o incontornável capitalismo, ele cria, ainda segundo este autor, “um discurso engomadinho, arrumadinho de filho de papá, frequenta as melhores universidades (caras e famosas, se fôr nos EUA)” … e então, para poder continuar a agitar bandeiras de esquerda ele migra dos temas sócio-económicos para os temas culturais, comportamentais, raciais, de género, da família, de sexualidade. O woke é, então, segundo Pondé “o nicho de mercado comportamental e de produtos culturais dentro do capitalismo”.
O wokismo é um fenómeno maioritariamente estudantil, universitário (também pode haver pais e mães wokes). São gente de classe média, média-alta, e “rasgam as vestes” contra o racismo, o machismo, a lgbtfobia. Já no manifesto comunista de 1843, contudo, Marx e Engels tinham percebido que havia um risco do discurso socialista se transformar num fetiche de rico. E foi isso, de acordo com alguns autores, que aconteceu.
Uma das características mais típicas deste movimento é a sua visão antipluralista e antidemocrática, muito contraditória à diversidade de ideias e opiniões, que tanto apregoam. O wokismo, de facto, vigia a linguagem, controla os gestos e os comportamentos, aponta o dedo. E decorrente disto, torna-se quase uma obrigação e uma necessidade permanente estar a provar continuamente que se não é racista, machista, homofóbico, ou qualquer outra fobia equivalente. Ou seja, o ambiente woke tem então esta natureza algo inquisitorial. O woke típico é, então, um radical intransigente e implacável (claro que ele acha que não) mas, paradoxalmente, moderno, cool, tecnológico, com roupa solta, relativista, eficaz e desenrascado. O woke típico também anda de bike, separa o lixo e, para ajudar a salvar o planeta, não desperdiça a primeira água fria do duche, recolhendo-a orgulhosamente para um balde. O woke típico é um autoritário… mas de marca!
O Movimento woke surgiu com o foco na luta pela igualdade e pela justiça social mas, ao tentar definir-se e formular-se filosoficamente, foi-se desviando das suas motivações iniciais. Foi capturado pela filosofia pós moderna, da qual, Michel Foucault é um dos seus expoentes. Michel Foucault foi um filósofo francês, que defendia não ser possível a existência de uma verdade, já que “a verdade é aquilo que o Poder diz que é verdade”. A partir do momento em que o poder se sobrepõe à verdade, o movimento woke começa a separar-se, a construir trincheiras, a acentuar tensões e divisões. Matin Luther King defendia que brancos e negros deviam ter os mesmos direitos, e o errado estava precisamente na segregação existente. Já o movimento woke, contrariamente, passou a considerar a segregação como algo a preservar e defender, pois quando o Homem branco fala em igualdade o que verdadeiramente o motiva é que os negros se resignem e percam a sua identidade. Falar em igualdade seria, então, de acordo com este movimento, um ataque à cultura e identidade negra.
Em 1935, antes da Segunda Guerra Mundial, vários ideólogos marxistas (da famosa Escola de Frankfurt…) emigraram para os EUA e instalaram-se em várias universidades americanas, difundindo as suas correntes de pensamento e gerando vários discípulos e seguidores. Estes ideólogos, contudo, deram-se conta de que o conceito da “luta de classes”, tema central do pensamento marxista, não tinha qualquer viabilidade nos EUA, pelo que optaram por mudar de estratégia. Primeiro, começaram pelas questões da discriminação racial, depois de género, evoluindo, na actualidade, para o denominado movimento woke, ou ideologia woke.
Já num outro campo, constatou-se uma mudança de paradigma na relação do indivíduo com os dramas da existência. Desde sempre, de acordo com o escritor Manuel de Prada, na tradição cristã, a pessoa aceitava e resignava-se com as normais dificuldades pessoais, com as desgraças e sofrimentos inerentes aos desafios que a vida sempre traz; em contrapartida, era sensível aos infortúnios do seu semelhante, do seu irmão, do seu próximo, do seu vizinho. Determinadas ideologias, como a ideologia woke, conseguiram alterar e desviar o “foco”. Ou seja, a pessoa passou a revoltar-se contra os seus desastres e frustrações pessoais, isto é: “Não aguento os meus pais, coloco-os num lar; não aguento a minha mulher, divorcio-me; não aguento estar grávida, faço um aborto; não aguento ter seios, corto-os e converto-me num homem; não aguento ter pénis, corto-o e converto-me em mulher; não aguento mais a minha vida, faço então a eutanásia, o suicídio”. Ou seja, as ideologias colocaram o Homem contra si mesmo e, em contrapartida, tornaram-no insensível perante as desgraças dos seus semelhantes. A necessidade de o ser humano se transcender, de ir ao encontro de algo que está para além dele, a tendência natural para a entreajuda e solidariedade é algo natural e estrutural da natureza humana. A ideologia woke (e outras…) criou e potenciou um conjunto de causas absurdas (pelo menos na sua formulação hiper politizada e ideologizada), impossíveis de “dar resposta”, algumas delas contra a própria natureza humana. Frequentemente, têm mais a ver, não propriamente com o amor ao próximo (repito, nas suas formulações mais radicais), mas com o amor, mais ou menos abstrato, à Humanidade. Um personagem dos “Irmãos Karamazov” de Dostoievski, citado pelo mesmo autor, bem nos relembra: “Dei-me conta de que quanto mais amo a humanidade menos tenho amor aos homens em concreto”.
Numa perspectica teológico-cristã
A cultura woke tem também, de acordo com o historiador JP Coutinho, uma dimensão religiosa: “É uma espécie de religião para pessoas que deixaram de ter religião”. Vários aspectos da cultura woke, ainda de acordo com o mesmo autor, têm como referência, curiosamente, as estruturas tradicionais da religião, particularmente do Cristianismo.
E tal como no cristianismo, na cultura woke existem os sacerdores e santos que apontam o caminho a seguir. Temos figuras como Kimberlé Crenshaw (o autor do conceito de “interseccionalidade”); Nikole Hannah-Jones (escravatura africana nos EUA); Robin DiAngelo (conceito de “fragilidade branca”), Kendi (conceito de “anti-racismo”), e ainda nomes mais mediáticos como os de Ópera Winfrey ou Greta Thunberg. O movimento woke faz uma crítica revisionista do passado, reinterpretando e, frequentemente, distorcendo na medida dos seus interesses, determinados factos e acontecimentos da História. Esta prática estende-se também à Igreja, à sua doutrina, à sua teologia, através de uma nova interpretação, isto é, de uma nova hermenêutica dos textos religiosos ou filosóficos. Esta “nova Teologia Woke” é uma espécie de “parasita espiritual”, pois precisa de uma teologia oficial para a poder penetrar, reinterpretar e, finalmente, subverter o seu conteúdo milenar. Não será, em muitos casos, uma mera questão semântica pois ela pretende, efectivamente, alterar aspectos centrais da doutrina, mudando comportamentos
e práticas. Vejamos, de acordo algumas reflexões sobre esta temática, alguns exemplos desta nova hermenêutica. O Pecado original, já não é o pecado de Adão e Eva; de acordo com a nova abordagem, o pecado original é agora o “privilégio branco”, é o próprio racismo e o patriarcado; o pecado original será o não fazer parte de qualquer minoria. Ou seja, se o indivíduo nasceu branco ele já é culpado pela escravidão. O Arrependimento, deixa de ser o sentimento de culpa por algum pecado cometido, por alguma injustiça ou mentira perpetrada; o arrependimento é agora o sentimento de culpa pelos privilégios de homem branco e hetero. Resta ao pobre indivíduo passar o resto da vida a pedir desculpas, e a alinhar-se com mensagens e rótulos anti-racistas e anti-machistas. A Fé é agora acreditar cegamente no progressismo, numa certa visão sentimentalista e emocional da História, e do próprio Homem. O Amor, sim, mas direccionado para as pessoas que são oprimidas. A Ressurreição tem agora a ver com fazer renascer os que são vítimas das injustiças, da desigualdade, da opressão. A Santificação: o santo é agora aquele que luta pelas causas, é o activista identitário. A heresia é agora negar que existe opressão, que existe discriminação sistémica; heresia é proferir qualquer crítica a grupos LGBTQ+, ou a condutas de qualquer minoria. A Disciplina da igreja: a disciplina implacável desta nova teologia é agora o Cancelamento!
Cultura Woke e a “Jornada do Herói”
Séries, actores, filmes e heróis, estão a ser desconstruídos, manipulados ou mesmo cancelados (veja-se o actor Jim Cazievel, que protagonizou A Paixão de Cristo, de Mel Gibson). Por esta via, estão a ser transmitidos às crianças, valores, juízos, padrões, concepções e visões de mundo… como se a algo ou a alguém tivesse sido atribuído qualquer tipo de incumbência para tal. Valores civilizacionais como o passado, a herança dos sábios, o sentido do legado, o papel da religião, o bem e o mal, o certo e o errado, o que é o homem, o que é a mulher, etc, etc… estão a ser transmitidos às novas gerações de forma parcial e incompleta, enviezada, hiper ideologizada e perversa, nalguns casos. São múltiplos os exemplos de cancelamento: Bob o Construtor, Ghostbuster, Toy Story, Scooby-doo, He-men, Matrix-ressurecion, 007 (quem precisa de um 007?). Star Wars é um dos grandes exemplos de desconstrução, assim como o Indiana Jones. Há um ódio incompreensível contra tudo o que é masculino, contra a figura dos homens, e também contra tudo o que é feminino. De acordo com esta nova “religião”, é necessário limpar dos filmes tudo o que é masculino e feminino. A cultura woke é absolutamente contra o conceito do Herói, da denominada “Jornada do Herói”; ela quer fazer desaparecer a dinâmica desta jornada: todo o conceito de transformação e crescimento pessoal, de provação e mudança, desafios e aventura, e da incontornável figura do Mentor. Lamentavelmente, já não existe o velho professor Miagi, professor da “velha guarda”; também Rocky Balboa e Indiana Jones são velhos falhados (veja-se os últimos episódios das sagas); não pode haver o Tio Ben, do Homem Aranha, e porquê? Porque ele era um velho mentor, reaccionário a dizer coisas reacionárias, tais como “mais poder obriga a maiores responsabilidades” (que coisa terrível). Ou seja, os protagonistas, são agora todas mulheres, autodidatas (não precisam de mentor), e todas mais fortes e mais inteligentes que os homens. É muito triste que os nossos jovens já não procurem o testemunho de pessoas sábias do passado; curiosamente, a inexistência do mentor gera a falta de respeito pela figura do mestre, dos pais, do idoso, do padre, do professor, do irmão mais velho.
Outro aspecto importante deste arquétipo feminino da cultura woke é que a mulher não pode ser mãe! E também não pode ser esposa, não se pode apaixonar; não pode ser frágil; também não é filha, pois teria de existir um pai, uma mãe, uma família… e tal não é desejável, tal é opressor, anacrónico, medieval. Também não pode ser aluna, pois isso implicaria, como referido anteriormente, ter um mentor; e um mentor é alguém mais velho, mais experiente, com uma história e um legado a transmitir (olha que coisa tão retrógrada, tão reacionária). Finalmente, que pessoa sã, que pessoa comum, razoável, sensata… se consegue relacionar e identificar com “esta mulher”?
Considerações finais
A ideia de inclusividade total é uma aspecto estruturante e central na cultura woke. Mas ela é de tal maneira forçada, ilógica e tão falha de racionalidade, que se torna extremamente irreal e artificial. Um movimento em que as diferenças raciais, sociais, de capacidades, de estatura, de peso corporal, de estatura, de cabelo, de etnia, etc… são elevadas ao patamar do “elemento mais importante” (e por isso mesmo, todas elas têm obrigatoriamente de estar incluídas, integradas, representadas, sob pena dos seus titulares se sentirem excluídos, discriminados, oprimidos), é uma ideia totalmente absurda, ela própria, sim, de teor racista e discriminatório. E esta é uma posição de fundo que caracteriza lamentavelmente uma boa parte do wokismo. Os activistas wokistas pretendem alertar e despertar grupos, supostamente discriminados e oprimidos, para que os mesmos se possam unir e lutar contra os seus opressores. Promovem a utilização da chamada linguagem inclusiva e neutra; apoiam o aborto, a eutanásia e a ideologia de género, com todo o inabarcável universo de desconstruções e respectivas consequências.
A inclusão, igualdade e justiça social são, então, conceitos centrais no wokismo mas, numa atitude totalmente contrária a estes valores, cancelam pessoas que discordam das suas ideias e posições. Com o sentimentalismo e a hipersensibilidade social que caracterizam a sociedade contemporânea, os wokistas sentem-se discriminados e ofendidos com “qualquer coisa”, com a mínima pergunta, gesto, comentário ou publicação. De imediato, para além de construirem uma narrativa onde expressam a repulsa pela ofensas recebidas (sejam estas reais ou percebidas) procuram, ainda, apontar, identificar e mesmo castigar aqueles que consideram responsáveis pelas mesmas. Recorrem, quando se sentem ofendidos, a um mecanismo que se denomina de Cancelamento, e às pessoas canceladas, são fechadas as portas nos media, na universidade, nas artes, nas redes sociais, na vida profissional e pasme-se, nalguns grupos dentro da própria igreja. O facto de a cultura woke estar a ficar cada vez mais explícita pode ser uma vantagem; é preciso então despertar, estar alerta, estar acordado; “stay woke, stay woke”!