Os caminhos erráticos da Coreia do Norte
Alexandre Reis Rodrigues
Mais uma vez a Coreia do Norte consegue sair impune de uma situação que devia ter merecido condenação internacional das Nações Unidas e sanções. Falo do afundamento da corveta “Cheonam” da Coreia do Sul, a 26 de Março, em que morreram 46 militares da Marinha sul-coreana, um incidente que em condições normais seria considerado um acto de guerra. O Conselho de Segurança acabou por condenar o ataque mas não nomeou o seu autor!
Ban Ki-moon tinha considerado que as evidências da autoria do incidente eram incontornáveis («compelling») e que «teriam que ser tomadas algumas medidas». A investigação feita no local tinha levado à recolha de componentes do sistema de propulsão de um torpedo (CAT-O2D) que a Coreia do Norte vende ao estrangeiro. Os serviços de informações estavam a par de que na ocasião havia submarinos da Coreia do Norte fora do porto. A China, no entanto, não reconheceu o ataque; Kim Jong Il, como esperado, rejeita liminarmente qualquer envolvimento de submarinos norte-coreanos.
A Coreia do Sul reagiu com a maior contenção, quer a nível político, quer na opinião pública. Esta pareceu sobretudo interessada em “deitar o assunto para trás das costas”, considerar o incidente como uma lamentável aberração a que não deveria ser atribuída grande importância. B. R. Myers, director de estudos internacionais na Universidade de Dongseo, comentou que a indignação tinha sido bem maior quando, em 2002, uma viatura militar norte-americana, em Seoul, involuntariamente atropelou duas jovens.
Que influência poderá ter nesta postura a percepção pública sobre a realidade militar nas duas Coreias perante a possibilidade de um confronto? Conhece-se o risco de escalada que existe, a partir de pequenos incidentes, principalmente na frente marítima, nas proximidades da área de demarcação entre as duas Coreias. Há um historial de vários casos de acusações mútuas de violações de águas territoriais, incluindo troca de tiros entre navios; o último foi em Novembro de 2009. Há também o incidente do encalhe de um submarino norte-coreano nas costas da Coreia do Sul, em 1996. Alguns observadores associam o afundamento do “Cheonan” com o incidente de 2009, em que o navio norte-coreano terá sofrido cerca de 50 impactos, presumivelmente com baixas; Kin Jong Il terá então dado ordens para preparar a retaliação agora concretizada.
A Coreia do Norte, geralmente considerada como o país mais militarizado do mundo, tem em relação à Coreia do Sul uma significativa vantagem numérica em termos de efectivos (o Exército do Norte tem entre 1.100.000 e 700 mil efectivos). Não é, no entanto, neste campo que se situa a vulnerabilidade principal do Sul; é no risco de Seul ser dizimada pelas 11.000 peças de artilharia e pelos mísseis que o Norte tem colocado ao longo da linha de demarcação. A superioridade do equipamento militar da Coreia do Sul e o continuado apoio técnico-militar e da presença militar americana (25.000 efectivos na Coreia do Sul e 32.500 estacionados no Japão, mas facilmente deslocáveis para a área) permitirão decidir favoravelmente um confronto com as forças armadas do Norte mas não evitarão o risco em que se encontra a capital.
É precisamente este compromisso de apoio que os exercícios aero-navais que se iniciaram hoje, entre a Marinha norte-americana e as Forças Armadas da Coreia do Sul, pretendem realçar como aviso de que a Coreia do Norte deve pôr termo à postura agressiva e “guerra de palavras” que insiste em manter. Estes exercícios estavam agendados para data anterior, aliás muito próxima da do incidente do “Cheonan”, mas foram então cancelados para evitar a interpretação da sua realização como uma reacção ao sucedido. Depois, durante algum tempo, os EUA, preocupados com a China e com a necessidade de não criar novos compromissos militares, enquanto não tiverem resolvidos os que estão em curso, resistiram a considerá-los oportunos.
Acabaram por os programar, com a inclusão de um porta-aviões, o melhor símbolo da disponibilidade dos EUA em garantir a sua segurança, para retirar a tensão que se acumulava no relacionamento com a Coreia do Sul. Organizaram também, pela primeira vez em Seul, uma cimeira “2+2” (secretários de Estado e Defesa dos EUA e correspondentes ministros da Coreia do Sul), o que simboliza uma espécie de renovação do estatuto do seu relacionamento. Há em tudo isto também uma mensagem dirigida à China, que obviamente não pode apreciar situações que dêem argumentos à continuação da presença da marinha mais poderosa do mundo a operar na proximidade do seu território.
Como poderá a situação evoluir em termos políticos no futuro próximo? A grande prioridade para Kim Jong Il é a substituição do Armistício de 1953 por um Tratado de Paz que encerre, formal e definitivamente, a Guerra da Coreia, ao que se seguiria a normalização das relações com os EUA. Parece um objectivo razoável que merece ser apoiado. Não é esse o caso, no entanto; a metodologia que Kim Jong Il pretende seguir não consegue afastar a suspeita de que, à semelhança do que sempre fez no passado, apenas quer eternizar a situação de facto do seu programa nuclear, uma situação que, entre avanços e recuos, dura há 15 anos e tem resistido a diferentes aproximações diplomáticas.
Pyongyang começou por recusar uma oferta de Obama, pouco depois de tomar posse, para uma visita do seu especial representante, Stephen Bosworth, e contactos directos com a secretária de Estado. Aceitou, no final de 2009, a primeira para concordar com a necessidade de retomar as “conversações a seis”, embora apenas depois de “encurtar” o que divide os dois países. Curiosamente, enquanto esta visita decorria, era interceptado em Banguecoque um avião com componentes para o fabrico de mísseis exportados pela Coreia do Norte, não obstante as sanções em vigor o proibirem.
A ideia de conversações bilaterais em que o Norte continua a insistir é antiga. Tem sido sistematicamente recusada pelos EUA por fazer correr o risco de quebrar a unidade que existe entre os restantes quatro. Essa hipótese seria especialmente inaceitável pela Coreia do Sul; ficaria excluída de conversações absolutamente centrais para a sua segurança. Colocaria o Norte como o representante de toda a península coreana. Tóquio também recusa essa possibilidade, não querendo delegar em terceiros, os casos pendentes que tem com a Coreia da Norte quanto a cidadãos japoneses que foram raptados e forçados a trabalhos forçados. Não seria aceite também pela China, preocupada com o risco de desestabilização da Coreia do Norte e, em geral, com a segurança na área.
O interesse de Kim Jong Il por um acordo de paz para a Península Coreana deve ser interpretado no âmbito do processo de indigitação do seu filho Kim Jong Un para o substituir em 2012. O ditador terá concluído que a posse de armas nucleares por si só, não garante a segurança do país no longo prazo. Quer garantias suplementares, antes de entrar na fase final do processo de transição do poder que iniciou este ano com algumas medidas de preparação do ambiente político. Algumas “peças-chave” do seu círculo próximo foram mudadas sob essa perspectiva; escolheu um homem da velha-guarda para 1º ministro (Choe Yongsin, 81 anos) e o cunhado Jang Son-Thaek para vice-presidente da Comissão Nacional de Defesa, o centro do poder no país.
Kim Jong Il foi buscar a inspiração para estas medidas na experiência pessoal da transição do poder de seu pai para si próprio mas continua a esquecer a mais importante lição da evolução do mundo após o fim da Guerra Fria, para a situação especial do seu país. A de que a preservação do isolamento internacional em que o mantém o país, e que é a chave da sobrevivência política do regime, não será possível para sempre, provavelmente nem por muito mais tempo.
A primeira brecha foi aberta com a instalação do parque industrial de Kaesong, perto da fronteira Sul e onde 44.000 norte-coreanos trabalham para 121 empresas estrangeiras, na maioria sul-coreanas. São cerca de 50 milhões de dólares que entram na economia do Norte por mês, uma receita importante para um país sempre à beira da bancarrota e com largos estratos da população a morrer à fome. Tão importante que, mal grado o “perigo” que representa como porta de abertura ao exterior, já constitui o único elo que nem Kim Jong Il se atreve a quebrar. Daqui para a frente é sobretudo uma questão de “alimentar” esta situação e saber esperar.
Jornal Defesa