Tanto a nível da cooperação técnico-militar como da participação nas forças de paz em Angola e Moçambique, a presença militar portuguesa nos PALOP ao longo da última década saldou-se por uma prestação que deve ser tida como exemplar, apesar das contingências.
Durante a guerra fria, com Angola e Moçambique a viveram guerras civis que contaram com interferências de países vizinhos e apoios dos países líderes de cada um dos blocos em confronto. Na sequência do final desse período foram implementados pela ONU processos de paz em Angola e Moçambique, tendo Portugal e o Brasil participado pela primeira vez em missões desta natureza, disponibilizando unidades militares para integrar as forças de paz da UNAVEM (1991) e ONUMOZ (1993).
O processo de paz em Angola foi o primeiro a ser implementado em 1989, tendo sido fiscalizada com sucesso pela UNAVEM I a retirada das forças militares cubanas de Angola. A implementação dos acordos de paz de Bicesse (31 Maio de 1991) pela UNAVEM II acabou num completo falhanço em 31 de Outubro de 1992 quando, na sequência da não aceitação dos resultados eleitorais por parte da UNITA, se reiniciaram os conflitos com um intenso e mortífero combate na Cidade de Luanda. Novos esforços foram levados a cabo pela UNAVEM III a partir de 8 de Fevereiro de 1995, agora com um elevado número de unidades militares e efectivos (cerca de 5.000 homens). No final de 1998 as forças de paz mostraram a sua incapacidade de controlar o conflito quando não conseguiram evitar o derrube de aviões comerciais e da ONU. O processo foi então “abandonado” às agências de auxílio humanitária das Nações Unidas que, no entanto, não tinham condições de segurança para desenvolver o seu trabalho. As unidades militares portuguesas só participam no processo de paz em Angola tardiamente, na UNAVEM III, após já ter sido provado o seu valor no bem sucedido processo de paz de Moçambique, novamente com a participação de uma unidade de comunicações, acrescida agora de uma companhia logística, e, na fase final, um Destacamento Sanitário.
O processo de paz em Moçambique, implementado a partir de Dezembro de 1992, é considerado por vários observadores atentos um raro exemplo de sucesso. O contingente da ONUMOZ, que começou a chegar em Março de 1993, atingiu um efectivo de cerca de 6.000 homens que se manteve no terreno até Outubro de 1994 (com reforço, no período final, da componente policial e eleitoral) e regulou o processo sem incidentes de maior até à conclusão do processo eleitoral nessa data. As unidades militares portuguesas que participaram no processo de paz em Moçambique foram um batalhão de transmissões e a Missão Militar Portuguesa em Moçambique (MMPM). A MMPM que resultou do compromisso de Portugal em apoiar a formação das novas Forças Armadas de Defesa de Moçambique conjuntas (FRELIMO e RENAMO ). A MMPM foi responsável pela reabilitação e apetrechamento dos centros de instrução, tendo conduzido posteriormente a formação das unidades de forças especiais e de logística que permitiram substituir as forças da UNOMOZ, na garantia da segurança e liberdade de movimentos de pessoas e bens dos principais corredores de transporte de Moçambique, (Maputo, Beira e Nacala).
Apesar dos resultados diferenciados dos dois processos de paz existe o factor comum do emprego das forças de paz, e um conjunto de problemas internos ao sistema da ONU naturalmente, mais acentuados no caso de Angola, sendo que o malogro do processo de paz se deve, no fundamental, à causa política acima referenciada que afectaram de forma significativa o alcance das respectivas missões e podem servir de lição para o futuro.
Em primeiro lugar, o facto dos objectivos traçados não serem exequíveis nos prazos fixados criou um ambiente despreocupado da parte do “staff” internacional em relação às metas a atingir e gerou descrédito por parte dos parceiros em relação ao processo de paz. Por outro lado, era claramente visível que as missões não tinham sido correctamente planeadas e preparadas, pelo menos na integração das suas componentes principais (política, civil, militar, humanitária e eleitoral) e da implicação no terreno dos seus mais altos dirigentes (Comando, Estado Maior, unidades operacionais e de apoio).
Em segundo lugar, a falta de articulação entre apoio logístico e a unidade de comando. Existia uma clara divisão entre decisão operacional, do Force Commander (FC), decisão logística, e estrutura civil dos funcionários do quadro das Nações Unidas. Assim, o FC não tinha um completo controlo, o que militarmente é inaceitável e surge sempre nos manuais de emprego de forças em operações de manutenção da paz. Na sua despedida, o general brasileiro, Lélio Rodrigues da Silva, após um ano de comando, expressou claramente o seu desagrado quanto a este facto. Mas um outro aspecto que enfraquecia a unidade de comando, resultava de as várias nacionalidades em presença na força, receberem orientações nacionais, dando origem ao surgimento de iniciativas várias e descoordenadas, à margem da estrutura hierárquica de comando. Este facto era mais visível ao nível dos escalões superiores do oficialato, e no Estado Maior (EM).
Em terceiro lugar, a desadequação e deficiente qualidade dos recursos humanos. O EM não tinha sido seleccionado de acordo com perfis profissionais e de desempenho, resultando em lugares chaves ocupados por pessoal não habilitado. Neste âmbito, é de referenciar o completo desajustamento da maioria do “staff” internacional em relação ao quadro mental e cultural de referência da população, dos seus dirigentes e da situação geral. Lugares que exigiam contacto directo e permanente com as partes em conflito, com a população e dirigentes locais eram ocupados por pessoal que não dominava nenhuma língua útil, nem fazia esforços para iniciar um processo de aprendizagem das palavras essenciais à comunicação básica. De notar que os tradutores locais não garantem que a mensagem seja correctamente transmitida.
Na prática, sempre que havia situações delicadas e de perigo (especialmente em Angola), os mais válidos intervenientes chamados a actuar, e que o faziam com extrema habilidade e eficácia, eram, os brasileiros e os portugueses. Outros elementos dos países de Leste, países nórdicos e hispânicos eram “aceites” como alternativa e recurso. Elementos dos EUA, França e Reino Unido eram, em geral, “tolerados” e contraproducentes na sua acção, por adoptarem uma atitude de grande distanciamento e superioridade, a que os africanos (especialmente os angolanos) são muito sensíveis. Elementos de países como o Paquistão, estavam no teatro muito à vontade com o ambiente natural mas completamente desajustados das populações, isolando-se. A descrição destes comportamento não deve naturalmente ser tomada como regra sem excepção.
Em conclusão, a pouca qualidade dos recursos humanos recrutados, a falta de oportunidade e adequação do apoio logístico e a debilitada da unidade de comando, combinados com a falta de planeamento prévio e o estabelecimento de objectivos não exequíveis no prazo fixado, prejudicaram profundamente o desenvolvimento dos processos de paz e resultaram em elevadíssimos custos.
Em contraste com a caracterização anterior e reforçando a distinção da participação portuguesa no processo, apresenta-se de seguida a perspectiva que, em termos da eficácia, visibilidade e prestígio, os militares adicionaram à cooperação portuguesa durante o processo de paz em Moçambique. Os relatórios de “fim de missão” enfatizam precisamente que “o regulamento disciplinar da ONU é muito rígido […]. Foram criadas restrições […] ao contacto com a população local que eram completamente incompreensíveis para o nosso pessoal […]. A verdade é que houve várias declarações proferidas por responsáveis de vários quadrantes, pela imprensa e pelo próprio representante do Secretário Geral, Dr. Aldo Ajello, que afirmaram que os militares portugueses tinham sido os que melhor se adaptaram e inseriram no tecido social e local […] .” Efectivamente, Aldo Ajello, Chefe da Missão da ONUMOZ, não poupou elogios à "capacidade inventiva" e ao "alto nível de profissionalismo" do contingente português.
A Cooperação Técnico-Militar de Portugal com os PALOP
A boa prestação dos militares portugueses nos processos de paz de Angola e Moçambique vieram dar um grande impulso à Cooperação Técnico Militar (CTM) de Portugal com os PALOP. Já no período de desanuviamento de final dos anos 80, Portugal tinha assinado os primeiros acordos nesta área, primeiro com Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe e Moçambique (1988), depois com a Guiné Bissau (1989) e, mais tarde, em 1996 com Angola. O desenvolvimento destes acordos determinou a criação, por Decreto Regulamentar nº32/89 de 27 de Outubro, do Departamento de Cooperação Técnico Militar (CTM), integrado na Direcção Geral de Política de Defesa Nacional (DGPDN) do Ministério da Defesa. Entre outros objectivos gerais que lhe foram atribuídos nesse texto surge o de “contribuir para a segurança e estabilidade interna dos PALOP através da formação de forças armadas apartidárias, subordinadas ao poder político e totalmente inseridas no quadro próprio de regimes democráticos.” . Estão actualmente em vigor com cada um dos PALOP Programas Quadro de CTM bianuais , que se desdobram em diversos sub-programas abrangendo o apoio à organização e funcionamento dos Ministérios da Defesa, dos Estado Maior das Forças Armadas e Comandos dos Ramos (Marinha, Exército e Força Aérea). Estes sub-programas incluem: por um lado, o sistema de instrução e formação militar, com incidência para as forças especiais; e, por outro, o sistema logístico, com incidência para as suas componentes de engenharia e saúde. Os programas quadros contemplam formação na área de prevenção de conflitos e manutenção da paz, desenvolvendo a adopção de procedimentos normalizados e o treino especializado, inter-ramos e conjunto de forças. A CTM coordena actualmente com o ICP e o MNE as acções que desenvolve no âmbito dos Programas Quadro específicos.
A CTM, para além dos fundos da DGPDN (50%), conta com outros financiamentos por parte dos ramos das forças armadas (despesas com salários dos militares portugueses em cooperação nos PALOP, 40%) e do ICP (despesas com militares dos PALOP nas Academias Militares, 10%). Tem havido um investimento crescente que se traduziu num aumento de 300% entre 1991 e 1999 do orçamento da CTM.
A formação tem sido uma das componentes essenciais da CTM. A formação em Portugal, vocacionada para o nível superior e técnico de alta especialização, inclui os estabelecimentos de ensino militares: o Colégio Militar, o Instituto de Odivelas, a Academia Militar e as Diversas Escolas Práticas, vários estabelecimentos técnico profissionais e unidades militares dos três ramos das forças armadas. É de destacar o elevado número de formandos (cerca de 4000 para os anos de 1990 a 1999) e a especial incidência de Angola (cerca de metade do total). E há que acrescentar ainda a formação ministrada por assessores portugueses nos PALOP, em assessoria institucional e em formação básica nos centros de instrução, (cerca de 11000 para o mesmo período). Para cumprir estas “missões” nos PALOP a CTM conta com um número considerável de assessores militares.
A CTM foi, desde o início, estruturada de modo a que os seus assessores trabalhassem em condições mínimas de segurança e apoio. Para tal foram cedidas instalações pelos respectivos governos dos PALOP (períodos de 20 anos) , reabilitados e equipados alguns edifícios de modo a funcionarem como residências da CTM. Para além dos aspectos de segurança, as residências da CTM provaram a rentabilização dos investimentos.
A CTM pode ser considerada um exemplo e um caso de sucesso, de estruturação, boa gestão e condução de uma cooperação institucional e de capacitação, cumprindo cabalmente os objectivos gerais da cooperação e o objectivo próprio de formação nos PALOP de forças armadas apartidárias e subordinadas ao poder político.
Este sucesso deve-se a várias ordens de razões.
Em primeiro lugar, a CTM teve a preocupação de criar as condições mínimas de segurança e de vivência, seguida pelas condições de execução das acções de cooperação. Desde logo a reabilitação de infra-estruturas de alojamento, a criação de um sistema logístico local (incluindo a evacuação sanitária) e o estabelecimento de condições de segurança mínimas e condições de trabalho com dignidade adequada, sempre no estilo sóbrio e austero. De referir que, para além das residências da CTM, existem ainda os núcleos de apoio técnico que, em permanência, garantem o apoio administrativo logístico, incluindo as componentes financeira, património, transportes e assistência sanitária.
Em segundo lugar, a organização. A organização militar é conhecida pelo sua capacidade de coordenação e pragmatismo, desenvolvendo as acções de cooperação com espírito de missão e unidade de comando, significando isto que as operações e a logística são da responsabilidade de uma só entidade coordenadora no terreno. Resolvem-se assim pela raiz a maioria dos problemas burocráticos, demoras, desajustamentos, incapacidades e insustentabilidade que normalmente afectam os projectos de cooperação.
Estes factores tornam-se, aos olhos dos destinatários, imediatamente perceptíveis e a visibilidade das acções é ampliada.
Em terceiro lugar, o relacionamento e a integração social. As instalações da CTM foram abertas aos convites e ao convívio e a disponibilidade e interesse de recursos humanos altamente motivados, permitiram uma movimentação institucional que muito ultrapassou o âmbito militar. No seu ambiente de trabalho, mas principalmente nas relações sociais que se foram estabelecendo, os militares conseguiram fazer aproximações entre responsáveis governamentais dos PALOP, cooperantes, emigrantes e residentes portugueses. As residências da CTM passam a ser pólos de vários interesses onde se desenvolvem encontros informais com algumas importantes personalidades dos PALOP. Estes processo tem o mérito de aproximar as duas partes, desbloquear receios e obstáculos.
Em quarto lugar, as estruturas e resultados que, obtidos com eficácia, rapidez e baixo custo, permanecem. Refira-se a este propósito que os centros de instrução assessorados e/ou reabilitados, se mantêm operacionais e que os militares aí formados constituem actualmente forças armadas disciplinadas e com efectiva capacidade de intervenção. De igual modo, a instituição militar e as suas estruturas centrais, de Comando e Estado Maior, tornaram-se menos dependentes do poder e a cultura de apartidarismo é actualmente maior nos militares dos PALOP.
Rogério Neves e Castro
Mundo em Português
Fevereiro de 2002