A ORGANIZAÇÃO MILITAR DE PORTUGAL DURANTE AS GUERRAS NAPOLEÓNICAS NA PENÍNSULA IBÉRICA
Documento do Instituto de Defesa Nacional
Introdução
Antes de se descrever a organização militar que Portugal adoptou neste período da nossa história, é importante perceber os riscos que a nação tinha que defrontar para salvaguardar a sua independência e bem estar, as alternativas estratégicas possíveis, e as decisões políticas adoptadas, afim de melhor se compreender a organização que foi implementada.
I – QUAL A POLÍTICA DE DEFESA NACIONAL A ADOPTAR POR PORTUGAL ?
Perante as intenções agressivas da França Revolucionária dos finais do Século XVIII e, sobretudo posteriormente, perante as manobras do Império Napoleónico, Portugal debateu-se entre duas políticas de defesa nacional:
Ou,
1º Aliar-se à França e à Espanha de então, acomodando-se à vontade imperialista do colosso revolucionário francês, e instrumentalizando assim as políticas anti- britânicas francoespanholas.
Era a corrente política pró-francesa defendida por António Araújo de Azevedo, conde da Barca, diplomata e depois Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros do Príncipe Regente D.João, de 1804 a 1808.
• No que punha em risco o nosso império colonial e o nosso comércio, principais fontes de subsistência económica do Portugal de então.
• Mas que evitava os horrores de uma guerra de ocupação e destruição económica, opondose a forças que o bom senso via como desproporcionadas aos nossos meios de defesa militar e recursos materiais. Para as nossas elites progressistas de então representava também a oportunidade de reforma política e social, abrindo as portas às novas ideias democráticas e á construção da sociedade burguesa liberal propagada pelo império napoleónico.
ou,
2º Tomar o partido do seu tradicional aliado, o Reino-Unido, a potência marítima preponderante na época e seu principal parceiro comercial.
Era a corrente política pró-inglesa defendida por D. João de Mello e Castro, conde das Galveias, e por D. Rodrigo de Sousa Coutinho, ambos também ministros de Príncipe Regente D. João.
• Preservaria o império colonial, o seu comércio marítimo e o grosso da sua actividade económica. Teria acesso a meios financeiros e militares adicionais, posto que estava consciente da importância estratégica que Portugal então representava para Inglaterra, dado o valor económico do seu império colonial, dos seus portos e da sua frota civil e militar. Para os mais tradicionalistas protegia também a sua sociedade das “nefastas ideias políticas” propagadas pela Nova França.
• Mas teria que fazer face à terrível ira militar que a França Revolucionária, e depois Napoleónica, prometia para o pequeno Portugal.
SALVAR A SOBERANIA
Tivemos na altura um inteligente e hábil chefe político, na pessoa do Príncipe Regente D. João, mais tarde Rei D. João VI, actor fundamental da nossa história e tão injustamente tratado por uma corrente de historiadores jacobinos portugueses e brasileiros. Estes porque não perdoavam “aos Bragança” a sua aliança com a Inglaterra, aqueles porque representava o poder colonial, e ambos porque mais que relatar história importava denegrir a gestão política da casa Bragança, afim de servir os interesses políticos da causa republicana.
Manobrando entre os dois partidos, ouvindo os seus diferentes conselheiros e ministros, D. João continuou pedindo as reformas militares e planos de emergência possíveis, e ao mesmo tempo ía explorando políticas diplomáticas opostas e aparentemente contraditórias junto de Paris, Londres, Madrid, Viena e outras chancelarias europeias.
Quando esgotada a “batalha diplomática”, não podendo contemporizar e confundir mais, e perante a notícia da entrada das tropas de Junot na Beira em 20 de Novembro de 1807, e de dois corpos de invasão espanhóis no Norte e no Alentejo, D. João a 27 de Novembro embarca e faz a retirada magistral da corte e principais instituições e serviços do Estado para o Brasil (16.000 pessoas!), pondo a capital do Império fora do alcance de todos os grandes actores do teatro militar europeu, França e Reino-Unido incluídos. Uma jogada desta magnitude não se improvisa em poucos dias.
Durante muitos meses D. João secretamente ordenara a preparação e embalagem de artigos pessoais, mobília, e dos Arquivos e instrumentos essenciais do Governo do Estado Português, e concentrara em Lisboa o essencial da Armada e dezenas de navios civis.
A ideia da transferência da capital para o Brasil não era nova. Em 1580 o Prior do Crato aventou o primeiro esta alternativa. Já em 1640, quando das Guerras da Restauração contra as tropas de Filipe IV de Espanha, se tinha considerado também esta possibilidade. O marquês de Pombal e D. José também consideraram esta hipótese quando da Guerra dos Sete Anos na Europa em 1762-9.
A Espanha, que também considerou uma manobra semelhante a partir de Sevilha, bem se poderá arrepender de não ter feito o mesmo! Perderá a soberania da Nação e o seu Império, vendo-se envolvida em terríveis guerras ideológicas e civis, e em ferozes combates populares contra um poderoso invasor, que acarretou destruições e um role de perdas humanas bem mais terríveis que os que virá a sofrer Portugal.
Em Portugal D. João deixa um Conselho de Regência, com a incumbência de acalmar a ira dos ocupantes Napoleónicos, proibindo qualquer acção militar de defesa contra uma invasão Franco-Espanhola imparável nas circunstâncias então prevalecentes.
Portugal não tinha recursos militares suficientes para sozinho fazer face às tropas francesas e espanholas. Nem o território português tinha defesas naturais ou a imensidão da Espanha, que permitisse a um corpo de batalha guerrear e manobrar impunemente contra as forças militares de um Napoleão, decidido a acabar com a independência do país, a apossar-se da sua frota e portos, e a dar indirectamente um golpe fundo à Inglaterra. Não nos esqueçamos que simultaneamente a Espanha também nos atacava, como havia feito em 1801 e depois de a termos ajudado em 1793-5 no Roussilhão, e que essa postura só se modificará em 1808.
Convém também notar que por esses tempos a Inglaterra estava bem envolvida no Egipto, e ocupada a atacar todas as colónias francesas e espanholas por esse mundo fora, e recusava envolver-se com forças terrestres em Portugal porque considerava inviável a nossa defesa na conjuntura europeia do momento. Preferia “reforçar” as praças estratégicas portuguesas fora do continente europeu, como a Ilha da Madeira, Goa e Macau. Também fazia pressão junto do soberano português para que este se retirasse temporariamente para o Brasil, negociando a protecção da Royal Navy para esse efeito.
1808 E O NOVO CONDICIONALISMO PENINSULAR: RECRIAR AS BASES DE UMA POLÍTICA DE DEFESA.
Violentas revoltas populares rebentam em 1808 contra os ocupantes franceses e contra os seus colaboracionistas, primeiro em Maio em Espanha, depois em Junho em Portugal. O Parlamento e o Governo de Inglaterra, perante os urgentes pedidos de apoio das Juntas de patriotas espanhóis , vendo o desentendimento entre os comandantes das tropas francesas em Espanha, e Napoleão ocupado na Europa Central, decidem-se a enviar armas e tropas para acentuar o desequilíbrio de Napoleão na Península.
D. João, quando se assegura que os britânicos vão mesmo intervir militarmente em apoio dos revoltosos na península, negoceia com Londres, a troco da vantagens comerciais, a sua ajuda na reorganização de um novo Exército Português, e para melhor eficácia no combate comum, aceita que este seja integrado operacionalmente com o exército inglês e receba deste abundantes quadros.
Infelizmente estes acordos só serão celebrados depois da “Convenção de Sintra” acordada entre os generais ingleses e Junot, aonde não somos considerados, e se perde assim uma oportunidade de oiro de Portugal negociar o regresso dos seus soldados enviados por Junot para França, e que constituía o núcleo escolhido do antigo exército português.
Nem tudo corre pelo melhor para as tropas inglesas na Península! O corpo de exército do general Sir John Moore, que de Portugal se havia embrenhado por Espanha adentro, não tem hipóteses contra um Napoleão que, após destruir militarmente a Prússia e impor acordos de paz à Áustria e à Rússia, entra em Espanha a frente do melhor exército da Europa.
O exército de Moore é empurrado para fora de Espanha, morrendo o próprio Moore nos combates de defesa do embarque na Corunha, e os exércitos de linha espanhóis, apesar do feito de Baylen, são esmagados e dispersos em pequenos corpos. Perante a força e eficiência dos exércitos de Napoleão na península, os exércitos de 1ª linha espanhóis nunca mais ganharão uma batalha nem constituirão uma ameaça eficiente em termos militares convencionais até ao fim da guerra na península. Napoleão tem que se voltar para outros fogos no seu Império, deixando a Espanha entregue ao seu irmão José feito rei em Madrid, e aos seus generais comandando os 6 corpos de exército dispersos por Espanha.
O Governo do Príncipe Regente D. João, perante a nova conjuntura, negoceia com o governo de Jorge III de Inglaterra a viabilidade do esforço de guerra português, a troco de compensações comerciais como a abertura á Grande-Bretanha do comércio com o Brasil. Este e outros sacrifícios serão necessários, pois segundo o conde de Redondo, Secretário de Estado das Finanças em 1812, a nação em armas custava á Regência 45 milhões de cruzados por ano. As receitas anuais cobradas eram de 12 milhões. Tomando 9 milhões dessa contribuição mais o subsídio anual inglês de 16 milhões, faltava quase metade dessa soma que era coberta por promissórias.
A Regência pagava os equipamentos, e os salários de 25.000 homens de 1ª linha, além da Marinha, Milícias, Ordenanças e tropas ultramarinas. Os ingleses pagavam os custos de 30.000 homens de 1ª linha, mais equipamentos e armas em profusa quantidade.
OS RESTOS DO EXÉRCITO DE PORTUGAL EM 1808
Ao falarmos de reorganização do exército a partir de 1808 convém lembrar que a máquina militar portuguesa estava decapitada dos seus chefes, e claro também dos seus melhores soldados, com a ocupação do pais pelas tropas de Junot.
Muitos oficiais foram com a Corte para o Brasil. Mas aí, agora também serão necessários pois havia que reorganizar, armar e restabelecer a força do Estado num continente em que os vizinhos, libertos de uma Espanha Imperial impotente e longe, ocupada em guerras ideológicas e campanhas militares internas, se haviam fragmentado em inúmeras repúblicas independentes, seguindo o exemplo emancipalista e democrático dos norte-americanos.
Na realidade sem a presença e as reorganizaçôes locais operadas por D. João VI, e a chegada das elites, quadros e oficiais que acompanharam a corte para a nova capital, o Brasil muito provavelmente também se teria dividido em pequenas repúblicas e não seria hoje o grande Estado que congrega metade da América do Sul!
Enfim, outros oficiais emigraram para os Açores e Reino-Unido. Será em Londres que um grupo de voluntários constituído por militares portugueses aí exilados irá constituir o núcleo do que será a Leal Legião Lusitana, financiada e equipada pelo Governo inglês e depois enviada para o Porto, aonde será acolhida com grande regozijo pelo seu activo Bispo que sonha fazer dela a guarda da sua cidade! Sob o comando do impetuoso coronel inglês Sir Robert Wilson, organizada com 3 batalhões de infantaria ligeira, a 10 companhias cada, dois esquadrões de cavalaria e uma bateria de artilharia a cavalo, com uniformes verde escuro á semelhança dos batalhões “rifle” de elite ingleses, constitui na realidade uma “versão inglesa” do nosso modêlo da Legião de Tropas Ligeiras de 1797.
Funcionará primeiro como uma unidade autónoma enquadrando tropas auxiliares, por vezes penetrando profundamente e sozinha em território inimigo, depois enquadada nas divisões anglo-lusas do exército de manobra. Em 1811 será integrada no exército regular, constituindo os núcleos dos 7º, 8º e 9º Batalhões de Caçadores.
Outros oficiais e soldados ainda, os melhores, treinados nas campanhas do Roussilhão e frustados por não os terem deixado combater os invasores, foram empurrados para uma Legião Portuguesa ao serviço de Napoleão que Junot em 1808 rapidamente organiza de entre as fileiras do exército português e manda para longe combater nas gloriosas campanhas do Império meritocrático europeu de Napoleão.
Com 9.000 homens a Legião tem praticamente um terço dos oficiais e dos efectivos do Exército Português de antes da invasão. Os melhores e os mais corajosos. Alguns seduzidos pela nova sociedade meritocrática prometida por Napoleão e não aceitando ou compreendendo o sacrifício pedido por D. João, outros obrigados e que progressivamente vão desertando à medida que a Legião avança por Espanha a caminho de França.
Desertam praticamente metade. Os que continuaram vieram a participar com valor e distinção nas batalhas de Wagram, Smolensk, Gora, Moskowa, Krasnoé, Bérésina, Wilna, Leipzig, Hanau etc. tendo o corpo português praticamente sido dizimado na retirada da Rússia. Entre os poucos que depois da guerra regressam a Portugal, conta-se Gomes Freyre, Pamplona, D. Manuel de Souza Holstein, marqueses de Loulé, Ponte de Lima, Valença, Alvito, condes de Sabugal, de Castro Marin, S. Miguel, Atalaia, visconde de Asseca, para referir alguns representantes da alta aristocracia portuguesa e compreendermos a importância à época do contingente levado para França. Muitos outros, como o marquês de Alorna e os bravos coronéis Pêgo, Xavier e Garcês, por lá morrerão.
Em Portugal, em 1808, dos militares ficaram só velhos e incapazes. Permito-me aqui lamentar a forma como os autores e historiadores britânicos persistem à 200 anos em escrever profusamente sobre este período sem nunca consultar arquivos e fontes portuguesas, nem tentar perceber ou conhecer os condicionalismos do seu aliado. Assim referem-se sempre e sistematicamente ao “improfissional e incapaz” oficial português que os seus compatriotas vêm encontrar em 1808, razão que utilizam para explicar a vinda de oficiais ingleses para enquadrar as tropas portuguesas...
Nunca se vê referirem que o exército que vieram encontrar era os restos duma instituição dramaticamente esvaziada de talento e coragem pelas razões acima referidas. Devo assinalar a excepção dos recentes livros de René Chartrand sobre o Exército Português nas Guerras Peninsulares publicados na Osprey.
A ALIANÇA MILITAR E O EXÉRCITO DE MANOBRA INTEGRADO
Acordado um chefe para o novo Exército Aliado, na pessoa do protestante anglo-irlandês, Sir Arthur Wellesley, mais tarde Lorde e Duque de Wellington, este recomenda para Chefe do Exército Português o tenente-general Sir William Beresford, que, além de comandar em campo como vice-chefe Aliado, vai dirigir a reorganização do aparelho militar português, com o posto de marechal-general. Chegam também oficiais ingleses que ocupam alternadamente com oficias portugueses os escalões militares superiores (de general a major), e, em número proporcionalmente muito menos importante, para os quadros subalternos.
De início, esta chegada de oficiais estrangeiros não provoca problemas de rejeição por parte do corpo militar português. Primeiro porque não havia recursos nacionais alternativos suficientes, depois porque se estava habituado à presença de oficiais e comandantes estrangeiros para o nosso exército no século anterior e, enfim, porque no entusiasmo da reorganização do novo exército, todos estavam mobilizados na expectativa de uma desforra sobre os invasores.
Os aliados ingleses comprometiam-se a armar e fardar 30.000 soldados portugueses à sua custa e a pagar os seus soldos e alimento, e a ajudar-nos com armamento e equipamento! Como poderíamos nós refazer o nosso exército de forma tão pragmática e tão rápida, senão desta forma? Junot havia destruído ou requisitado as armas guardadas nos nossos Arsenais, e enviado para França armas, canhões e cavalos.
Sobe o comando de Sir William Beresford e com a boa colaboração do pragmático, e incansável reorganizado D. Miguel Pereira Forjaz, Secretário de Estado da Guerra e dos Negócios Estrangeiros, e Membro do Conselho de Regência em Lisboa, a eficiência do exército de manobra Anglo-Português consegue ser uma realidade em pouco tempo, uma verdadeira força de manobra perfeitamente integrada, que em 1812 mobiliza 90.000 soldados de 1ª linha, entre ingleses (35.000) e portugueses (55.000).
Mas não devemos esquecer que fora dos corpos de manobra sob o comando directo de Wellington, mas em seu apoio directo e indirecto, Portugal alinhava outras forças regulares em guarnição de fortalezas ou em enquadramento de Brigadas Territoriais, e Regimentos de Milícia, por vezes constituindo Brigadas Auxiliares, assim como forças de Ordenança.
II – QUAL ERA A ESTRATÉGIA MILITAR ALIADA?
Wellington, comentando ainda em Londres a tarefa que o aguarda e que aceitou, convicto da sua exequibilidade, refere que irá jogar pelo seguro, “play a safe game”, “risking nothing”. Mas achava que um pequeno exército de manobra de 50 a 70.000 homens podia fazer face aos 230 a 300.000 soldados que Napoleão mantinha na Península. Via a Península Ibérica como um grande espaço de planícies secas e de montanhas desflorestadas e rochosas, portanto, com uma agricultura pobre e insuficiente para alimentar grandes exércitos em corpos concentrados por longos meses de manobra. Dizia-se “para além dos Pirinéus, pequenos exércitos são dizimados e os grandes morrem de fome!”.
Assim, a sua estratégia para a defesa de Portugal assentava nos seguintes pontos:
1º Uma organização logística importante, com múltiplas bases e meios de transporte que permitissem ao exército não concorrer com a população na sua alimentação (senão, perdiam-se os aliados no terreno…).
2º Os meios logísticos tinham que vir de fora da península. Com a sua riqueza e o seu domínio dos mares, a Inglaterra podia alimentar as suas forças se tivesse controle de portos de mar, como Lisboa.
3º Uma zona defensiva segura, para onde o seu corpo de manobra se pudesse retirar, como as Linhas de Torres Vedras. A defesa não se faria nas fronteiras, como queriam os civis da Regência.
4º A continuação da revolta patriótica dos espanhóis, da guerrilha e de pequenos exércitos provinciais, mobilizando forças francesas de ocupação importantes, dificultando as comunicações e multiplicando as diversões, permitiam assim ao seu exército de manobra Anglo-Português nunca ter que fazer face a forças demasiadamente importantes, como acontecera ao general Moore, atacado por Napoleão em Espanha no início das invasões francesas.
5º Construir pontos de resistência em Portugal que permitissem atrasar avanços das forças invasoras e desgastar o inimigo antes de combates importantes. Nesse sentido, decide reforçar e reactivar várias fortalezas portuguesas e criar obras de engenharia militares e em zonas de combate eventual.
6º Desenvolver uma política de “terra queimada” em Portugal, de forma a dificultar a
subsistência das forças invasoras no seu território. Esta política, utilizada também mais tarde pela Rússia, trouxe terríveis sofrimentos às nossas populações, sobretudo na Beira, Estremadurae Ribatejo, mas dizia que era melhor que “alguns sofressem muito, para que a Nação no seu conjunto sofresse menos”.
7º Enfim, reorganizar, equipar e treinar o Exército Português e as Forças Auxiliares. As primeiras de modo a que pudessem ser integradas com o exército inglês em Portugal - que, dizia-se, era o maior conjunto de forças que a Inglaterra na altura possuía- de forma a se conseguir um corpo de manobra respeitável, 50 a 70.000 homens. As segundas, criando forças de Milícia que agissem como Corpos de Observação cobrindo as fronteiras, guarnecendo fortalezas e não permitindo a actuação de forças inimigas menores em operações de diversão nas províncias. Apoia a reactivação das Companhias de Ordenança como centros de recrutamento, e a sua utilização em pequenas forças territoriais que não dessem quartel às patrulhas inimigas na procura de alimentos e em missões de comunicação, desgastando o inimigo, dificultando a sua logística e o seu moral. No entanto não constituem Bandos de guerrilha porque são enquadrados por oficiais e só actuam pontualmente quando chamados para acções locais.
Devemos aqui reflectir sobre o facto de o nosso território, mais pequeno e populado, não permitir as acções de guerrilha e mesmo de pequenos corpos de manobra possíveis em Espanha.
Mas se a Espanha “guerrilha impunemente” o ocupante francês, este está solidamente instalado na capital e principais cidades, com o apoio da burguesia afrancesada. Depois de Baylen e da heróica resistência de Saragoça, a partir de 1809 a Espanha não terá uma só vitória militar no campo de batalha! Estas serão ganhas pelo exército anglo-português de Wellington. Se é verdade que a guerrilha dificultava as comunicações e logística, e mobilizava fortes contingentes franceses de ocupação, e que sem isso Wellington não poderia ter encetadas suas campanhas ofensivas, também é certo que só com a guerrilha os Espanhóis não teriam conseguido expulsar os invasores franceses e os seus aliados espanhóis ideológicos.
III – QUE EXÉRCITO PORTUGUÊS SE FEZ ENTÃO?
Quando Beresford chegou a Portugal, não teve que improvisar todo um aparelho militar. Na altura com quase sete séculos de existência, muitas guerras na defesa do seu território, e forte da sua experiência de quatro séculos de aventura na criação de um império global a partir de uma tão pequena população, a Portugal não lhe faltavam modelos de organização militar.
REFERENCIAS DO PASSADO
A mobilização da população em forças militarizadas de três níveis de profissionalismo e sacrifício já havia sido desenvolvida nas Guerras da Restauração (1640-68). Portugal, então com cerca de 2.000.000 habitantes, recrutava todos os homens válidos sem excepção, dos 15 aos 60 anos.
A 1ª linha era composta de tropas pagas, exército e marinha, que constituíam as forças de manobra ou de campanha. Depois a 2ª linha eram os Terços Auxiliares, que acudiam às fronteiras. Por fim, as Companhias de Ordenança que faziam a guarnição das praças e fortalezas.
Em 1641 mobilizava-se 25.000 soldados pagos, 25.000 auxiliares e 15.000 ordenanças. Em 1704, com uma população igual, mobilizávamos 28.000 homens também em 1ª linha. Em 1761-3 com uma população de 2.500.000 e com a organização de Lippe, mobilizava-se 48.000 pagos (1ª linha), com 40.000 para a infantaria, 2.100 para a artilharia, e 5.900 para cavalaria. E ainda 8.000 auxiliares.
CAMPANHA DO ROSSILHÃO (1793 – 1795), O LABORATÓRIO
Em 1793, ainda no Governo de D. Maria I, Portugal envia um corpo em auxílio de Espanha para combater os exércitos revolucionários franceses na fronteira dos Pirinéus Orientais. O denominado “Exército Auxiliar á Coroa de Espanha” compreendia 6 Regimentos de Infantaria e uma Brigada de Artilharia, na força de 5.000 homens. O sacrifício de dois anos de operações trarão poucas vantagens para Portugal, mas constituirá um verdadeiro laboratório ou escola de reformadores militares, pois das suas fileiras sairá uma prole de pensadores e organizadores de que salientaremos os seguintes: D. Miguel Pereira Forjaz, Ministro da Guerra e grande organizador do Exército das Guerras Peninsulares e que terá um excelente entendimento com Beresford. O general Marquês de Alorna, que introduzirá os primeiros corpos de tropas ligeiras (a Legião de Alorna e as companhias de atiradores).
O general Gomes Freire de Andrade que produzirá uma obra interessantíssima, propondo a organização do exército em acordo com as especifidades da agricultura e economia do país. O general de artilharia José António da Rosa, que reorganizará e dirigirá esta arma no exército português durante as guerras peninsulares e será um próximo colaborador de Beresford, e o comandante do corpo português que combateu no Roussilhão. Enfim o general John Forbes, que redigirá o “plano de organização militar “que servirá de base aos trabalhos da Comissão Militar criada em 1801, e ao extenso debate que houve na altura ,e de que resultarão as reformas de 1806 e 1809.
No campo naval a marinha reorganizada e aumentada pelo incansável ministro Martinho de Mello e Castro, enviará por duas vezes esquadras operar no Mediterrâneo, comandadas pelo almirante Pedro Mariz, em 1793 (6 navios de combate e 12 de transportes), e pelo Marquês de Niza, em 1798-1800 (4 naus e 1 corveta), em apoio á esquadra inglesa de Nelson.
A REFORMA DO EXÉRCITO DE 1806-7
Sem enumerarmos as várias pequenas reformas, limitamo-nos a referir aquela que sairá dos trabalhos do Conselho Militar criado em 1801 por D. João de Almeida Mello e Castro e do qual D. Miguel Pereira Forjaz era secretário. O Ministro Mello e Castro é demitido em 1804 por intrigas do partido francês e imposição de Napoleão transmitida pelo Embaixador de França general Lannes, mas as suas ideias e esforços de refleção concensual vingarão pelos decretos de Maio de 1806 e Outubro de 1807, que recriam as bases da organisação do nosso exército para o século XIX.
O exército é organizado em 3 divisões (Norte, Centro e Sul), cada uma comportando 8 regimentos de infantaria, 4 de cavalaria, 1 de artilharia (a do Sul, terá 2 regimentos de artilharia). Também recomenda a criação de 6 batalhões de caçadores, e a reorganização do exército auxiliar em regimentos de Milícia (2ªlinha), elevados a 48, e das Ordenanças (3ªlinha) organizadas em 24 brigadas de Ordenanças, que funcionarão como distritos de recrutamento para 1 regimento de infantaria e 2 de mílicias. Também concorrem com forças territoriais, organizadas em companhias, para acções pontuais e regionais.
Com as reformas decretadas em 1806 e 1807, são também criadas bandeiras e uniformes totalmente diferentes do passado e introduzidas bandas musicais nos Regimentos. Mas não estavam em plena execução estas novas medidas quando Portugal é invadido por Junot em Novembro de 1807.
AS REFORMAS DE D. MIGUEL FORJAZ E BERESFORD (1808 –15)
Portugal beneficiou do clima de colaboração construtiva do Ministro da Guerra, D. Miguel Forjaz com o marechal-general Beresford. Quando começam a reorganização do exército, só se mantêm 4 coronéis nos 4 Regimentos de Artilharia e os inspectores da Cavalaria, Artilharia e Engenharia. Todos os outros regimentos recebem novos chefes, posto que como já acima o dissémos a grande maioria dos coroneis haviam abandonado o país. Para além do proposto em 1806-7, Beresford cria um batalhão de Engenharia (sapadores e mineiros), desenvolve a artilharia moderna (ligeira) criando 10 baterias (brigadas) de Artilharia de campanha e montanha, um batalhão de Condutores do Trem, aumenta os batalhões de linha de 5 para 6 companhias, e implementa a criação dos 6, depois 12, batalhões de caçadores, que virão a ser verdadeiras unidades de elite nas guerras peninsulares.
Cria também os Depósitos de Instrução de recrutas de Cavalaria (Salvaterra) e Infantaria (Mafra). Os uniformes serão de novo reformulados em 1811, de modo a os tornar mais homogéneos com os equipamentos aliados, e a introduzir modelos mais práticos beneficiando dos ensinamentos de dois anos de campanha. Beresford tratou de reformar e criar novos quadros, criando um limite conveniente para os oficiais em serviço activo. Disciplinador, fê-lo com espírito de justiça, pois cuidou igualmente do bem estar das tropas, aumentando-lhes os vencimentos e garantindo a integridade e pontualidade dos pagamentos. Modernizou os regulamentos moldando-os tanto quanto possível aos ingleses para que houvesse uniformidade na acção dos dois exércitos aliados.
Não tentou fazer uma reorganização radical, criteriosamente procurou valorizar o que existia por corresponder a condicionalismos nacionais, ouvindo e aconselhando-se com Pereira Forjaz com quem desenvolveu uma relação de confiança total. Enfim, a acção directa dos oficiais ingleses deu um aprumo, asseio e disciplina ao exército que lhe conferiu por largos anos uma feição britânica.
No tocante às Milícias e Ordenanças, excepto uma maior mobilização das mesmas e o aumento das suas unidads e efectivos, a organização continuou a ser basicamente a de 1807. De salientar a organização de corpos territoriais, agrupando unidades auxiliares que se ocupam da vigilância das fronteiras e dificultam ao inimigo a manobra de forças táticas menos numerosas. São também criadas unidades auxiliares adicionais em Lisboa, e para guarnição das Linhas de Torres Vedras.
As unidades do exército, integradas a nível de brigada no exército aliado, guardam a sua especificidade nacional, mas os equipamentos e armas são praticamente todos ingleses, assim como as novas ordens de evolução e manobras de combate. Depois da batalha do Bussaco, a eficiência das tropas portuguesas é um facto reconhecido por inimigos e aliados. O seu emprego tático por Wellington a partir de 1811, não sofre qualquer discriminação positiva ou negativa relativamente ás outras tropas inglêsas.
A infantaria é organizada em regimentos a dois batalhões, que em batalha em campo aberto disponham-se em linha um ao lado do outro, (dai chamar-se Infantaria de Linha!), a três fileiras de profundidade, oferecendo assim um máximo de poder de fogo. Este ordenamento era o oposto da formação francesa favorita que preferia dispor os batalhões com uma frente menos extensa (menos poder de fogo), mais em múltiplas fileiras em profundidade o que dava maior força de impacto e moral numa carga á baioneta. Os regimentos operavam a dois e dois, constituindo uma brigada, que era a unidade logística. Cada brigada sempre que possível integrava também um batalhão de caçadores, que actuava regra geral em ordem dispersa ou aberta à frente dos batalhões da infantaria de linha. A brigada portuguesa ou funcionava tacticamente como corpo independente (cerca de 6 brigadas ), ou era integrada numa divisão anglo-portuguêsa (as outras 6). Estas divisões normalmente eram compostas de uma brigada portuguêsa e de duas outras brigadas inglêsas.
Mas como estas tinham só 3 ou 4 batalhões cada, (contra os 5 batalhões nas brigadas portuguêsas ), resultava que estas divisões aliadas mistas eram compostas normalmente de cerca de 40 % de soldados portugueses, ou seja 5 batalhões portuguêses e cerca de 6 ou 7 batalhões inglesês.
O exército aliado de manobra era composto a partir de 1811 de 6 divisões mistas angloportuguesas, 1 divisão inteiramente portuguesa, 1 divisão inteiramente inglesa (da Guarda Real), a da elítica Divisão Ligeira que integrava 2 batalhões inglêses de “rifle”, 2 batalhões de Caçadores portugueses, 2 batalhões de infantaria ligeira inglesa e 1 ou 2 batalhões de infantaria portuguesa (ou da Leal Legião Lusitana). O exército integrava ainda 2 a 5 brigadas de infantaria portuguesas independentes.
A estas forças de infantaria juntavam-se baterias de artilharia portuguesas e inglesas ditas “a pé”, e inglesas ditas “a cavalo”. Cada um dos 4 regimentos de artilharia portugueses tinha 7 companhias ou baterias de artilharia, além de 3 companhias de especialidades. Mas dos 4 regimentos nunca se destacaram mais de 10 baterias em campanha, (designando-se então cada companhia ou bateria “brigadas de artilharia”), ficando as restantes em serviço de guarnição em fortalezas. Conjuntamente com os caçadores, a artilharia portuguesa gozava de boa reputação, sendo a arma que necessitou de menos intervenção da parte de Beresford.
A cavalaria portuguesa, funcionando como cavalaria ligeira e sempre com crónica insuficiência de cavalos, nunca conseguiu pôr em campanha mais de 2 ou 3 brigadas, a dois regimentos cada, e estes quase sempre com uma força de efectivos reduzida pela mencionada falta de cavalos. Os ingleses operavam com 2 ou 3 brigadas de cavalaria pesada, e 3 ou 4 brigadas de cavalaria ligeira. Apesar dos regimentos inglêses serem bem montados e com efectivos relativamente elevados, a cavalaria aliada era geralmente menos numerosa que a francêsa. Podemos dizer que em relação ás forças napoleónicas contra quem combatiam, os aliados tinham geralmente menos artilharia e cavalaria que os francêses, mas melhor infantaria e particularmente infantaria ligeira.
EM GUISA DE CONCLUSÃO
Em 1809, Portugal tem uma população de aproximadamente 3.000.000 de habitantes e nunca mobilizara exércitos à escala a que foram aqui mobilizados. Durante este conflito, o exército português nunca perdeu uma bandeira em combate (excepto as Milícias). Ao longo de seis anos sustentou 15 batalhas, 215 combates, 14 sítios, 6 bloqueios e 12 defesas de praças. O total das baixas elevou-se a 21.141 homens dos quais 5.160 mortos. Os franceses perderam 50.000 soldados na Península em batalhas, e 180.000 por acção de guerrilhas, fome ou doença.
Sob o comando de Beresford e da administração de Forjaz, o exército ganhou uma disciplina, coesão e combatividade exemplar. No Bussaco provou ser uma força capaz de igualar em valor e eficácia os seus camaradas ingleses e, progressivamente, foi ganhado prestígio e confiança em si próprio. Nas Linhas de Torres Vedras o exército de Linha, as Milícias e as Ordenanças aguentaram a pé firme as investidas do temível exército francês! A sua determinação faz desistir os 3 Corpos de Exército do marechal Massena, e os francêses nunca mais invadirão Portugal!
Quando Wellington passa à ofensiva em Salamanca, em Vitória e em S. Sebastian, os soldados portugueses estão na linha da frente. Nas campanhas dos Pirinéus e na invasão do sul da França é “aquela máquina” a que Wellington chamará os “ fighting cooks of my army”! Na última grande batalha, em Toulouse, os portuguêses contribuem com o maior contigente do exército aliado, encerrando com essa vitória o nosso envolvimento nas Guerras Napoleónicas.
Wellington, em 1815, pede a Portugal que lhe envie um contingente de 15.000 soldados para integrar no seu Exército Aliado na Bélgica. A Regência atrasará o envio de uma divisão preparada por Beresford, e quando chega do Brasil a aprovação explícita de D. João, já a batalha de Waterloo tinha tido lugar! D. Miguel Pereira Forjaz envia então esta divisão para o Brasil, denominada de Voluntários Reais do Príncipe, que irá fazer a conquista e a pacificação do Uruguai em 1816, e depois reforçar a guarnição do Rio e a segurança da capital num Brasil contagiado pela febre emancipalista. Estes serão verdadeiramente os últimos “Soldados de Portugal”! Depois serão os soldados das guerras civis...
Em 1814 Beresford havia conquistado a admiração e estima do exército português. Mas finda a guerra não compreendeu que agora o jogo do poder era outro, e que passado o perigo francês a sua função de “protector” não era recebida com agrado pela nova sociedade portuguesa do pósinvasões! Em 5 anos de campanhas os oficiais haviam desenvolvido a sua auto-estima e a consciência da sua legítima cidadania.
E muitos, no combate aos exércitos franceses, haviam sido conquistados pelas ideias liberais, facto a que a ausência da corte no Brasil não terá sido alheio. Na seu novo papel de polícia fundamentalista e por demais estrangeiro, Beresford mobilizará todos contra a sua pessoa. Este triste fim-de-festa explica que ainda hoje a sua memória não faça justiça ao excelente reformador e chefe militar que foi.
Como última reflexão, permito-me chamar a vossa atenção para o mapa de 1806, redesenhado em 1810, aqui junto, com o plano de uniformes para o exército. Impressiona a organização geométrica e aritmética do mesmo; “24 brigadas de ordenanças, 48 regimentos de milícia, 24 de infantaria, 12 de cavalaria, 4 de artilharia, 6, depois 12 batalhões de caçadores, tudo organizado
em três divisões iguais”.
Tudo isto reflecte o espírito que presidiu ao pensamento reformador do exército português das guerras peninsulares, aliás também presente nas várias propostas e obras publicadas à época, quando do amplo debate organisado no país a partir de 1801 e que levou ás reformas de 1806-7.