Para que serviu, afinal, o confronto entre o Hamas e Israel?
Alexandre Reis Rodrigues
Da parte de Israel, foram oito dias de intensos bombardeamentos aéreos que causaram a morte a 150 palestinianos, fizeram centenas de feridos e destruíram uma extensa parte das infraestruturas “militares” do Hamas. Da parte deste e de outros grupos islamitas radicais que também operam na faixa de Gaza, foram disparados centenas de rockets contra Israel, alguns dos quais atingiram, pela primeira vez, regiões habitadas, nas proximidades de Jerusalém e Telavive, causando cinco mortos israelitas.
O que detonou esta crise tem sido matéria de discussão, não existindo uma interpretação consensual e minimamente objetiva. É uma situação estranha porque um confronto com o nível de intensidade que este teve não devia começar sem óbvios e fortes motivos públicos. Tem sido referido que o Hamas provocou a crise para tirar partido de um contexto político que se lhes terá afigurado mais favorável, em resultado da ascensão da Irmandade Muçulmana no Egipto. Outros consideram que o Hamas foi - digamos - “empurrado” para o confronto, para não deixar a quase exclusividade dos ataques com rockets a Israel aos grupos salafitas radicais, os quais estariam a atuar sem reconhecer a sua liderança e a assumir-se como os principais combatentes da causa palestiniana. Noutras versões, adianta-se que o Hamas foi levado a avançar por recear estar a perder protagonismo internacional, em favor da Autoridade Palestiniana, em particular com a iniciativa desta em submeter a votação, em Assembleia Geral das Nações Unidas, uma proposta de estatuto de “Estado membro observador”, o que, como se sabe, foi entretanto conseguido com uma alargada margem de aprovação (71,5%).
É possível que tenham sido todas estas circunstâncias a provocar a crise, eventualmente com outros fatores ainda não identificados. Esta questão vai, no entanto, permanecer algo nebulosa, pelo menos nos tempos mais próximos. Por isso, seria interessante, pelo menos, analisar para que serviu, afinal, mais este confronto e tentar identificar que ilações poderão ser tiradas em função do seu desfecho.
Se pensarmos em termos do que seria realmente importante, isto é, conseguir fazer progredir o processo de estabelecimento de um estado palestiniano e criar condições que venham a permitir aos dois povos viver em paz, os oito dias de confrontação tiveram um impacto negativo. Terão tornado ainda mais remoto esse desfecho. Aliás, a iniciativa da Autoridade Palestiniana também terá adiado qualquer hipótese - se é que havia alguma – de as partes virem a sentar-se a uma mesa de negociações.
Alguns aspetos, que se conhecem quase desde sempre, foram de novo confirmados; por exemplo, que não há qualquer solução militar para o conflito. Israel, aliás, mostrou saber disso, ao estabelecer como objetivo militar, apenas a eliminação da ameaça dos mísseis de longo alcance, se possível, sem intervenção em terra. Israel também sabe que se destruísse o Hamas passaria, certamente, a ter que lidar com uma situação de caos ainda maior na Faixa de Gaza; sob esta perspetiva, pode dizer-se que Israel, até certo ponto, precisa do Hamas.
Naturalmente, a penosa experiência com a operação Cast Lead de 2008/2009, que muito custou à imagem internacional de Israel, terá pesado na avaliação das hipóteses em aberto. Não obstante o pesado impacto da invasão na faixa de Gaza (1387 palestinianos mortos e uma muita extensa destruição de infraestruturas), pouco depois da retirada israelita já o Hamas estava de novo a bombardear Israel com rockets, demonstrando que para nada tinha servido o esforço militar de Telavive.
Desta vez, dias depois de aceite o compromisso de cessação das hostilidades, Moussa Abu Marzouk, o número dois da hierarquia do Hamas residente em Gaza, veio afirmar que continuará o rearmamento. A probabilidade de tudo continuar na mesma é, de facto, grande. Nenhum dos lados, quaisquer que sejam as circunstâncias, conseguirá eliminar o outro; nem mesmo Israel com todas as capacidades militares que tem, conseguiria destruir uma organização que não tem propriamente um centro de gravidade vital, que uma vez atacado a deixaria sem condições de sobrevivência.
Esta é, grosso modo, a realidade conhecida. Há algumas outras, porém, que o recente conflito veio revelar. Começo por referir a ameaça dos mísseis de longo alcance, nunca anteriormente usados pelo Hamas (Fajr-56), que veio mostrar que Israel, pela primeira vez desde os Acordos de Camp David em 1978, precisa de se preocupar seriamente com a segurança do seu território já não só em função da ameaça terrorista. Até então, as centenas de rockets lançados da Faixa de Gaza, apenas conseguiram atingir o sul de Israel em zonas que têm sido mantidas desabitadas. É uma alteração substantiva do quadro de segurança.
A transformação grande por que passou o Médio Oriente, desde o conflito de 2008/2009, é a segunda nova realidade que interessa destacar. Durante o anterior confronto, o mundo árabe estava alinhado na ajuda financeira à Autoridade Palestiniana, como que procurando contrabalançar o “peso” do Hamas, e era o próprio Presidente do Egipto, Mubarak, que, de algum modo, facilitava o esforço militar de Israel. Hoje, temos uma situação drasticamente diferente.
O Qatar, por exemplo, planeia investir 400 milhões de dólares na faixa de Gaza e o Presidente Morsi passou a ser a entidade a que Israel tenta atribuir o papel de garante de que o Hamas e os outros grupos palestinianos radicais vão abandonar a violência. Obviamente, o Egipto não pode ser o garante de qualquer compromisso desta natureza, mas, em qualquer caso, passou a ter o estatuto de agente de estabilização regional, tirando partido de uma equidistância em relação às duas partes que o Governo de Mubarak não tinha, muito menos os EUA. Estes envolveram-se na solução do conflito mais na medida em que o Egipto precisou do seu apoio, para ter credibilidade perante Telavive, do que em interesse direto em participar. O interesse ainda é grande e vai permanecer como tal por algum tempo mais, dada a dependência energética em relação ao Golfo Pérsico, mas como esta está a diminuir, os EUA tornar-se-ão cada vez menos visíveis na região. Este foi um primeiro pequeno passo desse percurso.
Tudo considerado, poder-se-á esperar uma evolução favorável da situação num futuro próximo? Não é possível ser-se otimista, por várias razões. Em primeiro lugar, porque o espaço de manobra de Morsi é limitado; não pode dar-se ao luxo de se mostrar disponível para acomodar as pretensões dos EUA nem muito menos de Israel, sendo conhecido que a opinião pública egípcia nem sequer aprova o Acordo de Paz com Israel, muito menos a Irmandade Muçulmana de cujo apoio precisa.
Em segundo lugar, porque foi a precisamente a violência desencadeada pelo Hamas que, no desfecho do último conflito, levou Israel a levantar parte das restrições extremas que têm sido impostas sobre os habitantes da faixa de Gaza, grande parte das quais são geralmente consideradas como excessivas. Esta situação mostra que o recurso à violência “paga melhor” de que a via diplomática preferida pela Autoridade Palestiniana.
Por último, porque Israel, não obstante a pressão dos EUA, insiste na continuação da expansão dos colonatos em território palestiniano, o que é uma forma de tornar cada vez mais remota a possibilidade prática de criação de um Estado Palestiniano. Em resposta à iniciativa do Presidente Abbas junto das Nações Unidas, como atrás referido, o Governo de Telavive autorizou, ontem, a construção de mais 35000 casas. Não tardará, com certeza, a resposta palestiniana.
Jornal Defesa