O problema de Gibraltar
Alexandre Reis Rodrigues
Gibraltar é um território tomado por conquista em 1703 no âmbito da Guerra de Sucessão espanhola. Posteriormente, a sua posse pelo Reino Unido foi legitimada perpetuamente pelo Tratado de Utrecht em 1713. Está designado como território da Coroa Britânica mas para as Nações Unidas é um “non-self-governing territory”, um dos 16 remanescentes do grupo de 80 territórios coloniais que existiam à data da criação das Nações Unidas e para os quais ainda não foi possível encontrar uma solução de descolonização.
A Constituição aprovada para o território em 1969 proíbe o Governo Britânico de entrar em qualquer tipo de negociação que possa eventualmente levar a uma mudança deste estatuto, designadamente a transferência da sua soberania para outro Estado, contra o desejo expresso democraticamente pela respetiva população. Dois referendos entre os 30.000 habitantes do território realizados até ao momento, o primeiro em 1967 (cuja realização foi condenada pelas Nações Unidas e não reconhecida por qualquer organização internacional ou Estado) e o segundo em 2002, rejeitaram claramente essa possibilidade.
É um desfecho que se compreende facilmente à luz das perspetivas económicas que a população local então tinha e que se têm confirmado. Presentemente, a economia cresce a 7%, quase não existe desemprego e o PIB per capita chega a ser cerca de três vezes superior ao de diversas regiões de Espanha. Ou seja, uma situação quase diametralmente oposta à que se vive, de momento, em Espanha. No entanto, são, no mínimo, controversas algumas das raízes deste sucesso económico. Estão no regime de zona franca que permite ao território funcionar como um “paraíso fiscal”, um regime especialmente atrativo para empresas sediadas no território. Serão, segundo referia o jornal Expresso de 24 de agosto, 24.500 empresas comerciais que beneficiam de um reduzido imposto sobre sociedades (10% em vez de 30% em Espanha), menor imposto sobre o rendimento e ausência de outros, como o IVA, etc. Segundo outra fonte, um em cada dez automóveis em circulação no Reino Unido estão seguros em companhias com sede em Gibraltar. Existem também referências várias a processos de “lavagem de dinheiro” facilitados pelo estatuto de “paraíso fiscal”.
Espanha tem regularmente procurado trazer a disputa sobre a soberania do território para a mesa de negociações baseando-se na Resolução 1514 (XV) da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 14 de dezembro de 1960 (sobretudo invocando o princípio da integridade territorial) e na Resolução 2231 (XXI), de 20 dezembro de 1966, (que reafirma a natureza colonial do território). Ao contrário de Madrid, Londres, curiosamente usando também o texto da Resolução 1514 das Nações Unidas atrás referida, alega que o princípio da integridade territorial não prevalece sobre o princípio da autodeterminação. No entanto, este direito, no ponto de vista espanhol, não se aplica a Gibraltar uma vez que não existe, nem nunca existiu, algo que se pudesse designar por nação gibraltina. Ou seja, a forma artificial como a comunidade foi criada não permite invocar o critério de nação.
A agudização por que está a passar este contencioso tem a sua origem próxima na decisão do governo de Gibraltar em criar um recife artificial numa área tradicional de pesca para os espanhóis da comunidade piscatória de La Linea. Espanha tem recorrido a esta prática em vários pontos da sua costa, como forma de facilitar o “repovoamento” de espécies que tenham estado sujeitas a pesca excessiva, precisamente o argumento usado pelo governo de Gibraltar. O problema é que neste caso, em resultado do lançamento dos 70 blocos que formarão o recife, os pescadores espanhóis ficaram impedidos de exercer a sua faina habitual de pesca. Fica assim em causa o sustento de cerca de 300 famílias. Independentemente das razões que assistam a cada lado, este aspeto particular da disputa poderá estar resolvido brevemente com o anúncio feito, mais recentemente, pelo Governo de Gibraltar de que a partir de outubro, haverá autorização para 59 barcos de pesca espanhóis voltarem às suas atividades na zona. Segundo peritos em Direito Internacional sobre a questão de Gibraltar não é claro que o Acordo constante do Tratado de Utrecht reconheça o direito a águas territoriais.
O atual Presidente do Governo espanhol tem recusado associar esta disputa específica com a adoção de medidas excecionais de controlo fronteiriço que estão quase a “paralisar” a movimentação entre os dois territórios, não obstante ser impossível dissociar os dois assuntos. As questões de pesca foram, pelo menos, um pretexto para reavivar o problema de fundo. Tenta-se argumentar que são medidas desenhadas essencialmente para combater o contrabando que a inexistência de taxas fiscais em Gibraltar fomenta. Para Londres, porém, são apenas medidas políticas e desproporcionadas («politically motivated and dispproportionate»), sobre as quais já foi pedida a intervenção da União Europeia através de envio de uma missão para apurar a situação e avaliar as razões invocadas pelas partes. No entanto, como dito atrás, parece claro que, independentemente da pertinência dos argumentos de Madrid para proteger a economia local, o que está em causa é o desejo espanhol de trazer a questão da soberania de Gibraltar para um novo ciclo de discussões. As declarações do ministro dos Negócios Estrangeiros não deixam dúvidas quando refere que «The party is over for Gibraltar» e quando se fala de uma possível intenção de formar uma frente unida com a Argentina, tentando juntar a discussão de Gibraltar com a das Ilhas Falkland.
Ao contrário, Londres tem-se abstido de invocar o caso de Ceuta e Melila para reforçar a sua posição mas, como se referia no jornal El País, Madrid terá que ter presente que, independentemente das razões que lhe assistam para sustentar a sua posição em relação a esses dois territórios, se viesse a obter qualquer concessão de Londres sobre Gibraltar teria, muito provavelmente, que dar resposta a idêntica pretensão de Marrocos, que reclama a inclusão dos dois enclaves no seu território. O mesmo tipo de questão se porá a Londres se fizer concessões a Madrid; ficará na contingência de ter de as fazer também em relação aos outros dez “non-self-governing territories” de que é a potência administrante. Nalguns casos poderá não ser um problema relevante mas sê-lo-á sempre no caso das ilhas Falkland, tanto mais porque neste caso estão associados direitos de exploração de importantes jazidas petrolíferas.
Nada nos diz que estas disputas poderão ter proximamente qualquer solução mas irão, com certeza, continuar a ser tratadas no âmbito das Nações Unidas e, eventualmente, do Tribunal Internacional de Haia.
Jornal Defesa