A defesa antimíssil da Europa. Uma ameaça emergente para a Rússia? Alexandre Reis Rodrigues“Ameaça emergente” é a expressão usada por Putin para descrever o modo como a Rússia encara o escudo de defesa antimísseis balísticos que os EUA têm vindo a estabelecer na Europa.
A etapa mais recente deste processo foi a inauguração da base de intercetores instalada na Roménia (Deveselu), no passado dia 6 de maio. Pouco antes, em março, tinha sido constituída a “Task Force 64” da 6ª Esquadra (Mediterrâneo), cujo comandante passa a responder perante o EUCOM, no campo operacional e tático, pela defesa antiaérea e antimíssil integrada, na respetiva área de responsabilidade. Ficam sob o seu comando as instalações na Roménia e os quatro cruzadores “Aegis” com intercetores de mísseis balísticos, que já se encontram baseados em Rota (Espanha).
A declaração de Putin é surpreendente mas não é uma reação inesperada. Desde sempre que Moscovo mostrou oposição à iniciativa dos EUA em construir um escudo de defesa antimísseis balísticos e o correspondente abandono unilateral do Tratado Antimísseis Balísticos (Tratado ABM). A rota de colisão começou nessa altura. Entrou agora numa fase de relacionamento dos EUA/Europa (NATO) com a Rússia que já inclui alguns contornos iniciais de uma corrida aos armamentos. O assunto é preocupante para muitos, nomeadamente Chuck Hagel, ex-secretário da Defesa americana, que vê esse desfecho como inevitável, se nada for feito para o contrariar.
De facto, está a entrar-se num ciclo perigoso que apanha a Europa impreparada para lidar eficazmente com a crise. Em resposta à decisão americana de colocar três brigadas em rotação na Europa, entre outras medidas desenhadas para “sossegar” o Leste da Europa (Polónia e Bálticos, em particular) em função da questão ucraniana, Putin promete alterar o orçamento da Defesa para fazer face à ameaça que representa o escudo de defesa antimíssil e posicionar três divisões perto das fronteiras sul e sudoeste.
Esboroa-se assim a teoria desenvolvida, à volta de 2009, por Fogh Rasmussen, como secretário-geral da NATO, de que a criação de um sistema de defesa antimíssil europeu seria uma oportunidade de estabelecer um novo campo de parcerias com a Rússia. Já se sabia que não seria mas não se quis contestar. Era fácil ver também que a justificação da iniciativa estava mal apresentada em termos técnico-militares.
Por exemplo, nunca chegou a ficar clara a razão da urgência apresentada para o combate à ameaça de mísseis balísticos, num contexto de segurança em que avultam muitas outras que não estão a ser devidamente enfrentadas e se apresentam como mais prováveis (em especial as originadas por atores não estatais). À referência sobre a proliferação de mísseis balísticos, com a menção de haver no mundo 31 países com essa capacidade, ficou a faltar o esclarecimento de que a maioria desses países tem apenas mísseis com curto e médio alcances (18 países têm os velhos SCUDs com alcance na ordem dos 300 quilómetros). Ficou sem se perceber a razão da prioridade dada à defesa antimísseis balísticos, perante a ameaça paralela dos mísseis de cruzeiro para a qual – já então diziam vários especialistas – as defesas são inadequadas. Este assunto já se debatia antes da Cimeira da NATO em Lisboa, que aprovou o projeto de defesa antimísseis balísticos para a Europa, mas curiosamente nunca o vi ser referido pela NATO.
Para os EUA, a razão apresentada para a instalação do chamado “Third Site” do seu escudo antimíssil balístico - vinda do tempo da administração Bush - decorria da necessidade de conter o Irão, então referido como podendo estar dotado de mísseis balísticos intercontinentais por volta de 2015.
Obama alterou este propósito limitando a capacidade de interceção a mísseis de alcances médio e intermédio, num processo mais flexível para avançar por fases (“European Phased Adaptive Approach”). Tratou-se de reconhecer que o progresso do Irão no campo dos mísseis intercontinentais não tinha evoluído de acordo com a avaliação anterior mas, para muitos observadores, a alteração foi entendida também como uma forma de tornar o assunto mais aceitável para Moscovo.
A partir da Cimeira da NATO em Lisboa, este sistema passou a ser apresentado como a contribuição dos EUA para o sistema NATO de proteção da Europa contra a ameaça de mísseis balísticos, aprovado nessa ocasião.
Naturalmente, o assunto não pode ser discutido apenas em termos técnico-militares. Aliás, como se viu pelo dito acima, nem sequer se encontram nesse campo os argumentos mais úteis para o justificar. Precisamos de ter presente que o tema tem uma dimensão político-estratégica, na qual prevalece o objetivo americano de dispor de um sistema antimíssil balístico global que, a prazo, desincentive a proliferação de arsenais de mísseis e de armas nucleares.
É precisamente com a dimensão estratégica do sistema de defesa antimíssil que Putin se mostra preocupado e é em função dele que procura reagir, malgrado as explicações dadas pelos EUA de que o sistema não está pensado para as capacidades da Rússia. O que quer que os EUA digam sobre os propósitos do sistema não é fator de planeamento em que Moscovo se queira basear. Compreende-se porquê. Se fossem os EUA e a Europa a estar numa posição semelhante à da Rússia, reagiriam certamente numa base de raciocínio semelhante. Não se arriscam questões de segurança com base em intenções que podem mudar a qualquer momento. A base de planeamento será sempre a capacidade que a outra parte tem ao seu dispor. Intenções só contam se existe uma relação sólida de confiança mútua, o que não é caso dos EUA e Rússia.
Para Moscovo, o escudo de defesa antimísseis balísticos americano encerra dois perigos de dimensão estratégica: 1. Tem potencial para desvalorizar a dimensão nuclear da Rússia, que é a garantia restante de manutenção do seu estatuto de grande potência. Mesmo que apenas diminua a eficácia da sua capacidade nuclear, isso é quanto basta para ser considerado um elemento desestabilizador, a somar à desvantagem que tem acumulado no campo convencional e, sobretudo, nas novas tecnologias; 2. Cria o risco de lançar a Rússia numa corrida aos armamentos, do que teve uma experiência desastrosa no passado. Numa economia que vive uma fase extremamente complexa, esse risco chega na pior altura, mas, como se referiu acima, já está a ser corrido.
Esta posição de Moscovo tem sido, regra geral, muito criticada e considerada sem fundamento na invocação de que o escudo antimíssil afeta a segurança da Rússia. Mas se se pretende evitar o círculo vicioso acima referido, será altura de ponderar no que diz um trabalho publicado no âmbito do Strategic Studies Institute e do US Army College Press:
«
The history needs to be considered from both the U.S. and the Soviet sides, because it helps
provide a framework for understanding the current Russian objections and points to likely future
developments in the Russian stance. It will also show that some of the russian objections to
U.S.plans, which are perceived as irrational by the current U.S. leadership, in fact, precisely mirror
U.S. statements and atitudes from previous decades».
As expectativas de que a situação possa mudar são baixas, mas poderá ajudar a melhorá-las ter também presente que nenhuma das partes tem vantagem em a manter tal como está. Os EUA vão sentir-se pressionados a voltar a “investir” mais seriamente na defesa da Europa, contra o interesse de colocarem o foco das suas atenções na Ásia/Pacífico. A Rússia ficará mais afastada da possibilidade de algum dia vir a fazer parte de um novo quadro de segurança europeia e terá que investir muito mais para encontrar uma resposta militar à altura da vulnerabilidade em que perceciona a sua situação. A Europa passará a contar com mais apoio militar dos
EUA, mas num quadro de segurança que não lhe interessa manter, estando incapaz de lidar com a Rússia sem apoio dos EUA.
>>> http://database.jornaldefesa.pt/escudo_de_protecao_antimissil/JDRI%20187%20150516%20defesa%20antimissil.pdf