Julgam que (a revolução) é um movimento guerreiro feito por um certo número de indivíduos, quando afinal a revolução é feita por uma sociedade, por intermédio de, e inconsciente delegação em um certo número de indivíduos. É uma divisão do trabalho social. Uma revolução é ostensivamente uma derrubação violenta de um regime, feita por alguns – poucos ou muitos – indivíduos.
A revolução é uma expressão de opinião. É uma expressão violenta. A expressão violenta de opinião de vários indivíduos é um motim; quando se trata, porém, da expressão de opinião de uma sociedade inteira é uma revolução. Antes, a opinião de um corpo social socialmente pensando.(…)
O observador imparcial chega a uma conclusão inevitável: o país estaria preparado para a anarquia, para a república é que não estava. Grandes são as virtudes de coesão nacional e de brandura particular do povo português para que essa anarquia que está nas almas não tenha nunca verdadeiramente transbordado para as coisas!
Bandidos da pior espécie (muitas vezes, pessoalmente, bons rapazes e bons amigos – porque estas contradições, que aliás o não são, existem na vida), gatunos com o seu quanto de ideal verdadeiro, anarquistas natos com grandes patriotismos íntimos – de tudo isto vimos na açorda falsa que se seguiu à implantação do regime a que, por contraste com a monarquia que o precedera, se decidiu chamar República. (…)
Este regime é uma conspurcação espiritual. A monarquia, ainda que má, tem ao menos de seu o ser decorativa. Será pouco socialmente, será nada, nacionalmente. Mas é alguma coisa e, comparação com o nada absoluto que a república veio a ser.»[1]
«Os nossos políticos não são gente. Nenhum deles mostra ter tido na sua vida uma daquelas crises espirituais donde se emerge talvez ferido para sempre, mas psiquicamente homem, personalidade espiritual. São ateus pela mesma razão que o é um burro ou uma árvore. São portugueses porque, por desgraça nossa, nasceram adentro da nossa fronteira, oriundos de gente que secularmente assim tinha feito. Nenhum detalhe psíquico os mostra portugueses. Nenhuma centelha lhes acende um momento o olhar. São vazios e estúpidos. Só sabem comer e manobrar para comer. A ignóbil figura de D. Carlos I, que o Diabo guarde, é ainda o símbolo de Portugal. (…)
O Português é hoje um expatriado no seu próprio país. Somos uma nação, não uma pátria; somos um agregado humano sem aquela alma colectiva que constitui uma Pátria.(…)
Não há Portugal: há uma mistura ignóbil de “estrangeiros do interior” (como com razão, se bem que de outro ponto de vista, se lhes chamou) a governar-nos e a estropiar-nos o resto que somos. (…)
Se a perda declarada da nossa independência seria (e sê-lo-ia) uma desgraça e uma vergonha, em que é (salvo na absoluta evidência exterior) menos vergonha e menos desgraça a triste situação em que estamos? Um Portugal onde internacionalmente só se pode ser inglês; onde nacionalmente só se pode ser francês (pois que francesas sejam as ideias republicanas que nos “governam”) – um Portugal onde, portanto, tudo se pode ser (“tudo” é um modo de falar) menos português, que espécie de “Portugal Independente” é que é? Que independência há nisto? Triste gente que se contenta com a triste aparência das coisas, e não vê um palmo adiante das sensações quotidianas, para dentro da sua alma súbdita e oprimida!»[2]
Notas:
1 - Fernando Pessoa – ‘Da Ditadura à República’
2 - Fernando Pessoa, ‘Carta a um Herói Estúpido’
"Coimbra, 8 de Julho de 1974 - É trágico ter de assumir este quotidiano pátrio condicionado por meia dúzia de primários. Morrer nas mãos de uns tantos que sacrificam o destino de todos a uma pirueta do seu pretenso destino".
(Miguel Torga, Diário XII)