Artigo de opinião do gen. José Loureiro dos Santos, no PÚBLICO de hoje.
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Guarda Nacional Republicana: força militar porquê?
30.03.2007
Se parece óbvia a necessidade de uma quadrícula policial, não há razões para uma quadrícula militar no território nacional Porque são improváveis as ameaças
A reorganização das forças de segurança interna levanta interrogações. Algumas relacionam-se com aspectos que envolvem o enquadramento da Guarda Nacional Republicana (GNR) como força militar, sua justificação e coerência dos desenvolvimentos subsequentes, em termos de capacidades (missões) e dispositivo. Segundo as declarações oficiais, existe a deliberada intenção de manter a GNR como força de segurança interna policial de natureza militar. Seria mais adequado designá-la como força militar com a capacidade (adicional) de efectuar operações policiais.
A capacidade militar não implica somente dispor de meios mais potentes e saber manejá-los. É intrínseca a essa capacidade o compromisso mútuo - do poder político e do profissional militar - na definição e na aceitação dos termos enquadrantes da condição militar. Um normativo específico que regula o comportamento dos militares, através de um conjunto de restrições de direitos e de compensações morais e materiais correspondentes à necessidade de operar e de estar sempre disponível para o exercício da sua actividade. A disciplina militar, como elemento integrante deste compromisso, constitui a garantia da operacionalidade da força e da sua resposta cabal às determinações dos responsáveis.
Não deve estranhar-se a existência de forças militares com capacidade de efectuar operações policiais. No quadro das Forças Armadas (FA), processam-se operações de combate que exigem actividades similares às realizadas pelas polícias em tempo de paz, só que num ambiente mais hostil e de maior intensidade de violência. É o caso da detenção e guarda de prisioneiros, do controlo de refugiados e de deslocados, de segurança de áreas de retaguarda dos teatros de operações, incluindo aglomerados populacionais, onde os combates são mais raros e menos intensos. Desempenham estas missões as unidades de "polícia militar", com armamento menos pesado do que o das unidades das armas combatentes. Que poderão mesmo dispor de autoridade policial em tempo de paz, como acontece com a polícia militar das FA espanholas.
Pelos responsáveis políticos foram avançadas duas justificações para que a GNR continue como força militar: 1) ser necessário manter uma quadrícula que substitua as forças do Exército, agora voltadas para operações no exterior; 2) e o facto de ser idêntica a política adoptada pelos outros países europeus que possuem este tipo de força.
Contudo, à boca pequena, há quem aponte como única razão o facto de só haver garantia de serem cumpridas estritamente as ordens do poder político, com uma força cujo comportamento se regule pelo normativo dos códigos e da ética militar, portanto sujeita aos respectivos condicionamentos e procedimentos judiciais e disciplinares. A ser verdadeira, esta razão não estará isolada e nunca é a principal. Mas não há dúvidas de que a existência de uma força destas dá mais "conforto" ao poder político, quando se trate de impor a lei e a ordem, em quaisquer circunstâncias, para além das "posições" dos sindicatos. Sem necessidade de recorrer à "requisição civil" nem a um dos estados de excepção constitucionalmente previstos.
Surpreende-me o motivo indicado em primeiro lugar (quadrícula). Parece óbvia a necessidade de uma quadrícula policial, mas, presentemente, não há razões para uma quadrícula militar no território nacional. São improváveis as ameaças que a justificam e, se elas apresentassem algum grau de probabilidade, competiria às FA, cuja responsabilidade pela defesa militar da República é "intransferível", levantar o adequado sistema de forças e estabelecer o correspondente dispositivo. Esta constatação resulta do Conceito Estratégico de Defesa Nacional e é pormenorizada no Conceito Estratégico Militar, documentos que traduzem as decisões tomadas sobre a defesa militar da República, objecto de aprovação governamental, todos com parecer positivo do Conselho Superior de Defesa Nacional.
Quanto à justificação que cita o exemplo de outros países europeus para mantermos forças militares em funções de segurança interna, conviria ir mais longe. E averiguar o racional que os conduziu a essa decisão. Que não é diferente daquele que sustentou a existência da GNR, ao longo de todo o século XX, a despeito de, conjunturalmente, ter sido considerada e militarmente reforçada, por quem usava ou temia o "golpe" na disputa do poder, como "força equilibradora" das FA, o que não parece ser a situação actual...
Nunca houve uma separação bem delimitada e brusca entre as ameaças à segurança surgidas no interior do território nacional que exigem apenas a resposta de capacidades policiais e as que exigem ser combatidas com capacidades militares. A intensidade da violência das ameaças vai aumentando progressivamente, ultrapassando, a partir de certo nível, a possibilidade de ser enfrentada com o mero exercício policial, que perde a eficácia necessária. A partir daí, terá de ser combatida por forças militares (em especificidade de formação, estruturas organizativas, regras funcionais e natureza dos meios), embora com armamento mais ligeiro. O que permite evitar o emprego frequente, se não normal, das FA no território nacional, em situação de paz, para o que não estão preparadas nem é aconselhável.
No nosso país, ao longo do século XX, até à concentração urbana ocorrida a partir dos anos 70, estas ameaças apareciam mais nos meios rurais, embora pudessem, esporadicamente, surgir nas poucas grandes cidades. Isto originou um dispositivo da GNR deslocado para o interior, com algumas unidades de reserva nos principais centros urbanos (Lisboa, Porto, Coimbra e Évora), com a finalidade principal de reforçar os postos rurais. A localização de efectivos em algumas das grandes cidades também pretendia responder a eventuais acções violentas de contestação política, tanto na Primeira República como no Estado Novo. Mas a polícia constituía a força civil em que assentava a manutenção da lei e da ordem, quando perturbada por ameaças de menor intensidade de violência, o que era a situação normal nos meios urbanos.
Com a concentração urbana (particularmente no litoral), a criminalidade mais violenta foi migrando para as cidades, até porque o interior se foi despovoando. Com a globalização, aumenta exponencialmente a imigração, proliferam as organizações transnacionais do crime e surge o terrorismo catastrófico. As cidades, onde se instalam verdadeiros guetos, passam a constituir as áreas de operações preferenciais destas novas ameaças, com origem interna ou provenientes do exterior, cuja intensidade ultrapassa frequentemente as capacidades policiais normais, exigindo ser respondida por capacidades militares.
Portanto, o actual contexto de segurança não só mantém a necessidade da existência de uma força militar com capacidade para efectuar operações policiais na segurança interna, como a reforça. Enquanto as forças policiais se devem alargar a todo o país, estabelecendo uma quadrícula (policial) adequada, a GNR deve ser orientada para os locais onde é maior a probabilidade de surgirem ameaças cuja intensidade exige resposta militar. O que incluirá alguns pontos quentes das grandes cidades. Além de constituir unidades de acção rápida, em reserva, com a finalidade de actuar em todo o território nacional, fazendo face a irrupções inesperadas de ameaças cuja intensidade ultrapasse a capacidade de resposta policial.
Se a GNR deve tomar a seu cargo a segurança marítima nas águas territoriais e dispor de meios aéreos próprios, é uma pergunta que deve ser respondida com outra. Pode o país dar-se ao luxo de aumentar ou até duplicar meios dispendiosos e não tirar rendimento daqueles que as FA já possuem? General