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É neste contexto que o Ministério Público entende que houve violação dos princípios da contratação pública e irregularidades nestas negociações. Os procuradores Jorge Malhado e Joana César de Campos constatam que o processo terá sido alegadamente conduzido de forma bilateral e sem pressão da concorrência, o que corresponderá a um ajuste direto. E concluem que todos os responsáveis políticos constituídos arguidos terão aceite resultados menos favoráveis do que os oferecidos pelos contratos originais, o que equivale a uma alegada violação dos princípios de uma boa gestão financeira e de uma gestão de riscos prudente.
Da mesma forma que ao permitir a alteração da matriz de risco entre Estado e privados, a negociação terá distorcido os resultados do concurso inicial, penalizando a relação custo-benefício para o Estado, o que configura também uma alegada violação dos princípios da contratação publica.
O Ministério Público aponta ainda para a falta de transparência do processo negocial, a ausência de estudos comparativos com os encargos antes e depois, a atribuição por ajuste direto, sem concorrência, da operação das portagens às concessionárias e a não submissão, por entendimento da comissão de negociação, dos novos contratos a visto do Tribunal de Contas, apesar de representarem mais encargos.
Com a exceção da Costa da Prata, conclui o Ministério Público, todas as concessões negociadas — Grande Porto, Norte, Beiras Litoral e Alta, Grande Lisboa — são deficitárias para o Estado mesmo com a cobrança da receita de portagens.
As perdas reais são ainda maiores porque o concedente (a EP, que foi entretanto substituída pela empresa Infraestruturas de Portugal) passa a suportar os custos de cinco em vez de três concessões, a que acrescem os custos com o serviço de cobrança de portagens. Com recurso a peritos especialistas no regime das PPP, o Ministério Público quantifica esse acréscimo de custos para a empresa pública em cerca de 466 milhões de euros que não eram cobertos pelas receitas de portagens. O prejuízo é estimado através do VAL, não sendo referido no documento qual foi o ano de referência para calcular o montante.
Para suportar os encargos acrescidos após a renegociação, o concedente terá de recorrer às receitas dos contribuintes para cobrir uma diferença que tinha um VAL de 466 milhões de euros que não eram cobertos pelas receitas de portagens.
O Ministério Público imputa aos arguidos Paulo Campos, Carlos Costa Pina, Mário Lino, António Mendonça e Fernando Teixeira dos Santos a alegada responsabilidade por o Estado ter assumido uma posição contratual e responsabilidades financeiras “objetivamente mais gravosas” em cada um dos contratos renegociados com a Ascendi, beneficiando assim a concessionária que era então liderada pelo Banco Espírito Santo e pela construtora Mota e Companhia.
Como contornar o Tribunal de Contas — com a ajuda do próprio e a intervenção de um ex-ministro
O segundo dossiê sob escrutínio criminal no processo das PPP são os contratos das cinco subconcessões rodoviárias que o Governo Sócrates lançou um pouco antes de a crise financeira se iniciar nos Estados Unidos. Esses cinco contratos começaram a ser submetidos ao vistos prévios do Tribunal de Contas no final de 2008 mas, dois meses após a vitória de José Sócrates nas legislativas de setembro de 2009, os conselheiros da 1.ª secção do Tribunal de Contas mandam um balde de água fria para cima da política de obras públicas ao chumbarem todos os contratos.
Com o Novo Aeroporto Internacional de Lisboa parado (a localização escolhida pelo Governo Sócrates era a Ota) e o projeto de alta velocidade ferroviária já envolvo em dúvidas, os contratos de sete subconcessões rodoviárias representavam o único grande investimento que estava em condições de avançar no terreno, criando o emprego prometido na campanha eleitoral por José Sócrates. E com a vantagem, do ponto de vista do Governo de então, de que contratualmente o Estado só começaria a fazer pagamentos quatro anos mais tarde, quando as obras estivessem concluídas.
O contexto ajuda a perceber a pressão feita pelo poder político para resolver o problema criado pela recusa de visto prévio às subconcessões que impedia a execução dos contratos e a prazo daria lugar a pedidos milionários de indemnização.
O processo de reforma destes contratos envolveu três partes: Governo, Estradas de Portugal e Tribunal de Contas. As provas e testemunhos recolhidos pela investigação, confirmam reuniões, trocas de documentos e instruções entre os Tribunal de Contas e o gestores da Estradas de Portugal com pleno conhecimento e até orientação direta por parte dos ministros.
Recém-chegado ao Ministério das Obras Públicas, António Mendonça (que tomou posse em outubro de 2009) ficou ciente da vontade do Governo em implementar o modelo de gestão do setor rodoviário e da “imperiosa necessidade para tal de contratar com as subconcessionárias.”. A investigação coloca ainda o ex-ministro Mário Lino em várias reuniões realizadas em 2010 com o sublinhado de que este já não desempenhava funções governativas. Ao rol de arguidos neste inquérito juntam-se, no caso das subconcessões, os então gestores e diretores de primeira linha da Estradas de Portugal que participaram no processo negocial, incluindo Almerindo Marques.
Não obstante o envolvimento do então presidente do Tribunal de Contas, Guilherme d’Oliveira Martins, e sobretudo do atual presidente da instituição, à data diretor-geral, José Tavares, nesta negociação, nenhum deles é encarado pelo Ministério Público como suspeito.
Os encargos que desapareceram dos contratos, mas que afinal estavam lá
A recusa de visto prévio da 1.ª Secção do Tribunal de Contas às cinco subconcessões rodoviárias deveu-se ao agravamento do valor das propostas da primeira fase para a fase final da BAFO (best and final offer). Este aumento explica-se pela subida dos custos de financiamento dos projetos nos mercados que foi consequências da crise financeira de 2008, mas contrariava expressamente a lei. Daí o chumbo do Tribunal de Contas.
A solução encontrada passou por reformar o processo inicial dos cinco concursos. Isto é, e seguindo o conselho do próprio Tribunal de Contas, a EP fez retroceder os concursos até à segunda fase da BAFO, dando a hipótese aos concorrentes de apresentarem uma proposta final efetivamente mais baixa do que aquela que tinham apresentado na primeira fase, de forma a respeitar integralmente a lei.
Mas os acréscimos dos encargos financeiros que os concorrentes tinham de suportar por via do aumento das taxas de juros não desapareceram dos contratos. Foram transferidas para as chamadas side letters (ou contratos paralelos) pelos quais o Estado se comprometia com os bancos financiadores a repor as condições financeiras previstas nos contratos iniciais (chumbados), no caso de não ser possível refinanciar os custos das concessões em circunstâncias mais favoráveis. Esta alteração deu origem aos chamados pagamentos contingentes que o Tribunal de Contas veio mais tarde a considerar ilegais em auditoria e que por isso nunca foram concretizados até ao momento.
Também neste processo o regulador terá sido deixado de lado. O Ministério Público adianta que o INIR alertou a EP (hoje Infraestruturas de Portugal) para o facto de a reforma dos contratos não consubstanciar uma efetiva alteração do resultado financeiro, uma vez que, através das compensações contingentes, as concessionárias seriam compensadas pelo Estado dos custos adicionais resultantes da crise financeira. Esta referência era já feita na auditoria do Tribunal de Contas de 2012, mas não fica claro se este alerta do INIR foi feito antes da assinatura dos contratos reformados em 2010, uma vez que o regulador não terá participado, nem sido ouvido, neste processo.
O Ministério Público quantifica esses pagamentos contratualizados para contornar os chumbos do Tribunal de Contas em cerca de 595 milhões de euros medidos em VAL. A auditoria de 2012 do Tribunal de Contas já tinha denunciado pagamentos contingentes de 705 milhões de euros que não foram autorizados. Devido ao facto de o órgão fiscalizador das contas públicas não ter permitido tais pagamentos, os mesmos nunca chegaram ser realizados.
Sobre a identificação destes pagamentos paralelos nos contratos reformados que foram visados pelo Tribunal de Contas sem que os juízes se tenham aparentemente apercebido da sua existência, importa reter o parecer da perita financeira ouvida pelo Ministério Público, Mariana Abrantes de Sousa. A especialista em PPP, e que chegou a ser controler financeira do Ministério das Obras Públicas, considera, a partir da análise aos modelos financeiros, que nem todos os contratos explicitam pagamentos contingentes. Por exemplo, no contrato da Algarve Litoral é usada uma expressão menos suspeita de outros proveitos.
A perita avisa que o VAL do esforço financeiro do concedente (a EP) não deve ser calculado de acordo com o critério que foi usado na adjudicação, porque este deixa de fora a compensação contingente. Mas se aceitarmos que o valor a pagar pelo concedente depende de fluxos que são introduzidos apenas na aplicação de um modelo financeiro — que normalmente não é objeto de análise para visto prévio sem que esses fluxos estejam identificados no contrato, nem referidos de forma explícita no pedido de visto, então, conclui Mariana Abrantes de Sousa, “estaremos a criar um precedente de má gestão nas finanças públicas que provocaria sucessivas crises financeiras”.
Uma coisa é certa para o Ministério Público: os ex-ministros António Mendonça e Mário Lino, o ex-secretário de Estado Paulo Campos, Almerindo Marques (o ex-presidente da EP), Eduardo Gomes e Diogo Madeira (ex-administradores da EP) e os ex-diretores Rui Manteigas, Joaquim Pais e Jorge e João Canto e Castro estariam “bem cientes” que os novos contratos aprovados pelo Tribunal de Contas e as consent letters comportariam uma alegada posição contratual e responsabilidades financeiras para a EP e para o Estado que eram “objetivamente mais gravosas” do que as propostas que tinham sido submetidas a concurso.
Por outro lado, há uma questão especialmente relevante: do ponto de vista penal, é irrelevante que os pagamentos contingentes nunca tenham sido realizados até hoje devido ao papel do Tribunal de Contas. Na perspetiva do Ministério Público, o crime ter-se-á alegadamente consumado quando a EP, com a alegada concordância dos ex-ministros António Mendonça e Mário Lino e do ex-secretário de Estado Paulo Campos, assumiu a contratualização daquelas responsabilidades financeiras, tendo alegadamente prejudicado o Estado e e beneficiado as subconcessionárias privadas.
https://observador.pt/especiais/ppp-todas-as-suspeitas-que-o-ministerio-publico-imputa-a-cinco-ex-membros-do-governo-socrates/Tudo bons rapazes........