Intervenções humanitárias? O caso da Líbia
Alexandre Reis Rodrigues
Passou um mês desde que a NATO assumiu a responsabilidade pela intervenção militar na Líbia, ao abrigo da Resolução 1973 do Conselho de Segurança das Nações Unidas. No entanto, não obstante os reveses sofridos pelas forças fiéis a Khadafi, por acção da aviação aliada (estima-se terem perdido 40% das suas capacidades), a situação nos núcleos populacionais onde a oposição se concentra, principalmente Benghazi e Misrata entre outros, continua dramaticamente aflitiva e com níveis de destruição urbana impressionantes.
O objectivo da intervenção, tal como autorizada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas é perfeitamente claro: «…. to take all necessary measures … to protect civilians and civilian populated areas under threat of attack in the Libyan Arab Jamahiriya, including Benghazi ….». Tratando-se, portanto, de uma intervenção de natureza humanitária, neste caso para impedir o uso da força contra uma parte da população que apenas quer ver terminado o regime de ditadura em que vive há mais de 40 anos, seria de esperar, decorrido esse tempo, um progresso mais claro.
A lógica deste tipo de intervenções tem por base a ideia de que perante a eminência de uma catástrofe humanitária há que actuar rapidamente e com os meios necessários para resolver a situação no mais breve espaço de tempo possível. Quanto mais tarde o objectivo for alcançado maior será o grau de destruição a que o país ficará sujeito, mais se acentuarão as clivagens entre as várias facções e mais difícil será conseguir a subsequente estabilização do país.
Neste caso, mal grado a estratégia a seguir para alcançar o objectivo tenha alguma margem de variação dentro dos condicionalismos impostos, é preciso ter presente que a própria natureza de uma operação humanitária traz sempre implícita a ideia de mudança do regime responsável pela situação a que se pretende pôr termo; trata-se de libertar a população de uma calamidade, eventualmente um massacre, inevitáveis se não houver intervenção externa. É esse, aliás, o compromisso político assumido pelos Presidentes Obama e Sarkozy e pelo 1 º Ministro David Cameron, em declaração conjunta recentemente tornada pública: «a future without Kaddafi that preserves Libya’s integrity and sovereignty, and restores her economy and the prosperity and security of her people».
No entanto, se a finalidade é genuinamente humanitária, a intervenção não deverá incluir a construção de um novo modelo de governação. Michael Waltzer diz, por essa razão, que este tipo de operação tem uma natureza “negativa”, no sentido de que apenas visa pôr cobro à situação existente e não interferir sobre o que deve ser o futuro. Essa é uma tarefa que deve caber exclusivamente à própria população, em fase subsequente; uma solução imposta do exterior tem sempre escassas hipóteses de vingar.
Esta é a teoria; pode resumir-se à expressão “quick in-out”, sintetizando a ideia de curta duração, portanto, uma intervenção decisiva com objectivo bem circunscrito. A prática, porém, raramente consegue seguir este padrão; a intervenção acaba sempre arrastar outros compromissos que tornam inaceitável a retirada das forças empregues sem mais qualquer envolvimento complementar na reconstrução do país.
No caso da Líbia ainda não se chegou a esse ponto do processo habitual de intervenção; ainda se está na fase de encontrar uma resposta eficaz à continuada ofensiva do ditador. Para concluir este passo falta reunir mais algumas condições e rever as orientações políticas definidas na Resolução 1973 do Conselho de Segurança. Estas partiram do pressuposto de que uma vez anulada a capacidade do regime líbio usar a sua aviação e material pesado (blindados e artilharia) então Khadafi ficaria impedido de continuar a usar indiscriminadamente e de modo desproporcionado o seu potencial militar. Atingido algum equilíbrio entre as duas facções, poderia então começar a procurar-se entre um entendimento político.
No entanto, não é esse exactamente o caminho que a evolução da situação veio a tomar. Por duas razões: primeiro, porque Khadafi continua a ser capaz de usar material pesado e passou a adoptar tácticas que compensam bem as limitações decorrentes de não poder usar toda a sua força militar; segundo, porque a oposição não consegue, por falta de experiência, organizar e ter pronta uma força minimamente eficaz.
De facto, mal grado a Resolução do Conselho de Segurança permita todas as «medidas necessárias” para proteger a população (à excepção de colocação de tropas no terreno), nem todas as potencialidades do poder aéreo da coligação estão a ser devidamente exploradas. Isso explica-se por dois motivos: insuficiências do dispositivo aéreo por falta de algumas capacidades especializadas no combate ao solo (destacadamente, a falta dos aviões que os EUA retiraram, os A-10 e os AC 130, falha agora compensada com a atribuição de dois UAVs Predator) e meios no solo para coordenação dos ataques; segundo, recusa de alguns países participantes em irem além da fiscalização da zona de exclusão de voo, situação que a Itália alterou precisamente ontem, em vista do agravamento da situação em Misrata.
Parece que a coligação aliada está a apostar no desgaste porque está a passar Khadafi, também sujeito a um embargo de armamento. Mas não é essa a estratégia recomendada para intervenções de assistência humanitária; devem começar e acabar o mais rapidamente possível. Uma vez que se decida actuar, deve-se procurar ir directamente à origem do problema; neste caso, seria eliminar a capacidade de militar de Khadafi.
Admitindo que esta situação se resolve, fica para decidir o passo ulterior. Em teoria há três situações típicas em que a continuação da presença militar estrangeira se pode tornar inevitável: quando não existe no país uma base institucional e humana que permita lançar a reconstrução; quando o Estado se desintegrou e deixou de ser possível contar nem com as Forças Armadas nem com as Forças de Segurança; ou, finalmente, quando as divisões internas são tão grandes e tão profundas que ameaçam fazer regressar à situação original mal as forças de intervenção se retirem.
Dificilmente, a Líbia vai escapar a qualificar-se em pelo menos num destes três quadros possíveis, mas como essa saída se vai concretizar é um assunto com várias opções em aberto. A mais atractiva exigiria bom senso e realismo das futuras autoridades; seria pedir o auxílio da Peacebuilding Commission das Nações Unidas, como fez recentemente a Guiné-Konakry, de modo muito responsável. Se não for possível - aliás parece-me pouco provável -, o que é de esperar será, muito possivelmente, o envolvimento da comunidade internacional, com a presença de forças no terreno. A perspectiva é preocupante, mas não será certamente menos a alternativa de se ter de acrescentar a Líbia à lista de “estados falhados”, ao lado da Somália, Chade, Sudão, Congo, etc.
Nenhuma destas circunstâncias poderá, em qualquer caso, fazer esquecer que a solução deve vir de dentro e que a saída das forças deve acontecer tão rapidamente quanto possível. Michael Waltzer lembra que o critério principal é o da “legitimidade local”; o que melhor se adapte à cultura local. Não tem que ser uma democracia, um regime liberal, pluralista ou capitalista. Desde que não repita as circunstâncias que determinaram a assistência humanitária para salvar um sector da população e a subsequente intervenção para estabilização do país, deve ser o que os locais quiserem, sem interferência externa.
É sob esta perspectiva que, neste momento e enquanto não se conseguir pôr a oposição líbia a salvo das forças leais a Khadafi, não pode ser elemento de consideração decisivo para a escolha do caminho a seguir conhecer quem é e o que pretende fazer no futuro o designado Governo Nacional de Transição. Embora muitas pessoas se interroguem sobre a sua idoneidade e competência para assumir a responsabilidade pelo futuro da Líbia pós-Khadafi, não imagino que se possa fazer condicionar a sua defesa contra os ataques indiscriminados de Khadafi ao prévio exame das suas credenciais para então decidir se são ou não merecedores de apoio.
Jornal Defesa