O recado nuclear de Bolton, assinado por Larry Rohter
Argemiro Ferreira
NOVA YORK (EUA) - O último recado mandado ao Brasil pela ala troglodita do governo Bush - aquela que deu ao mundo as guerras do Afeganistão e do Iraque e promete outras para futuro próximo - veio assinado pelo indefectível Larry Rohter, na forma enganosa de reportagem jornalística (mais uma!) nas páginas outrora nobres do "New York Times".
Rohter fingiu no texto (publicado dia 25) haver disputa entre a Aiea (Agência Internacional de Energia Atômica) e o governo Lula, que estaria descumprindo o Tratado de Não-Proliferação Nuclear (NPT). É falso, mas hoje a expressão "mentira de Larry Rohter" já virou pleonasmo. Ao contrário dos EUA, o Brasil cumpre rigorosamente os tratados internacionais que assinou e respeita o sistema multilateral.
O que me chamou atenção, no entanto, é que no mesmo dia desse texto teleguiado (e envenenado) do ex-jornalista, importante colunista do mesmo "Times", Nicholas D. Kristof, botou o dedo na ferida real da proliferação nuclear - a ditadura militar paquistanesa de Pervez Musharraf, general que Bush apadrinha na esperança de que consiga achar Osama Bin Laden antes da eleição americana.
Apoio de Bush à bomba-A islâmica
Vale a pena falar do Paquistão antes de voltar ao Brasil e Aiea. Os colunistas do "Times" são livres para opinar (o que teoricamente é vedado a reporterezinhos como Rohter). Leitores indignaram-se contra disparates e mentiras cínicas do direitista William Safire e o jornal explicou: não os corrige porque se trata de colunista (mas, por razão desconhecida, tampouco corrige os desvios de má-fé de Rohter).
Kristof foi ao Paquistão e de lá enviou coluna sob o título "Twisting Dr. Nuke's arm" (Torcendo o braço do dr. Nuclear). Explicou: "Se nos próximos anos uma bomba nuclear destruir o Capitólio, na certa terá sido desenvolvida com tecnologia paquistanesa. O maior desafio à civilização não é Osama Bin Laden ou Saddam Hussein, mas Abdul Qadeer Khan, pai da bomba atômica do Paquistão".
Apesar de ter o direito de mentir, como Safire, o que Kristof escreveu é verdade, como o mundo inteiro já sabe. O dr. Khan pediu desculpas recentemente ao ditador Musharraf por ter vendido tecnologia nuclear ao Irã, Coréia do Norte, Líbia e sabe-deus-quem-mais. O ditador o abraçou com carinho, dizendo para não se preocupar: "Está tudo bem, dr. Khan, você é herói nacional, construiu a bomba-A islâmica".
Bush podia ao menos exigir do amigo ditador arrancar do dr. Khan os nomes dos outros a quem deu a receita da bomba-A. "Espantosamente, oito meses depois de ter feito declaração pública confessando que disseminou sua fórmula nuclear pelo mundo, não sabemos quem são os outros clientes do dr. Khan", escreveu Kristof. "O próprio Musharraf admitiu: sabemos de alguns, mas não de todos".
Campo livre para o doutor Khan
Segundo Kristof, o que o ditador disse significa que eventualmente o mundo ainda ficará sabendo sobre as outras transações de Khan, acobertadas pela ditadura sob a proteção de Bush. Musharraf jurou ainda que seu amigo e protetor da Casa Branca não se interessou em ouvir o maior proliferador nuclear do mundo. "Vou ser franco: ninguém me pediu para interrogar o dr. Khan", disse.
Segundo o colunista, o ditador confirmou: os laboratórios do "herói" intocável foram visitados pelo ministro saudita da Defesa. A Arábia Saudita, claro, é amiga de outros carnavais da família Bush. E se os sauditas construirem a bomba, o Egito (e seu ditador protegido dos EUA) será o seguinte. Musharraf negou que também a Síria seja cliente do dr. Khan, que ainda tem ligações não esclarecidas na África.
Bush e seus neoconservadores negligenciaram essa proliferação nuclear de verdade mas investem contra o Brasil, país pacífico e quinto no mundo em reservas de urânio natural - portanto, com todo o direito de desenvolver sua tecnologia própria de enriquecimento, exportar o produto e ampliar sua receita, como fazem os países ricos. Por que teríamos de nos privar disso e deixar o mercado só para eles?
Como cumpre o NPT e respeita o sistema multilateral, o Brasil já se prontificou a abrir a intalação da Marinha em Resende às inspeções da Aiea. Mas exige proteção para sua tecnologia. Ninguém esquece a obsessão americana de infiltrar seus espiões entre inspetores da ONU (uma das situações graves que criaram impasse no Iraque, levando à suspensão por quatro anos das inspeções internacionais naquele país).
As fontes anônimas, uma vergonha
Rohter não faz jornalismo: apenas dá o recado do bando neocon, gente da laia de John R. Bolton, que tirou o brasileiro José Bustani da OPAQ. O que queria Bustani? Que arsenais químicos e biológicos dos EUA tivessem inspeção igual à dos outros países. Bolton, sub-secretário de Estado para Controle de Armas, mandou Bustani sair da OPAQ. Ele respondeu: "Não sou seu empregado. Fui eleito pela maioria".
O governo Bush mandou os submissos FHC e Celso Láfer tirarem Bustani. Os dois covardes tentaram e Bustani avisou: "Estou fora do Itamaraty, a serviço da ONU". O resultado é sabido. Países foram subornados e votaram a saída do diplomata, escancarando a arrogância imperial. Mas o Brasil derrotou FHC e o cupincha, elegeu Lula. E Bustani teve seu prêmio pela valentia: tornou-se embaixador em Londres.
Bolton comandou a indecente operação intimidatória e agora vinga-se, plantando a difamação na mídia e manipulando a Aiea, a insinuar que o Brasil não cumpre o NPT. Lula está no dever de repelir a insolência, cujo objetivo é forçar a assinatura de um "protocolo adicional" inventado pelos EUA. Não temos de assinar nada. Antes de ampliar nossas obrigações no NPT, é preciso obrigar os EUA a cumprir sua parte.
Rohter, na nova torpeza, usa fontes anônimas: "diplomata estrangeiro", "analistas de controle de armas nos EUA e na Europa", coisas assim. E quem são eles? Bolton? Bagrinhos neocons nos EUA e na "nova Europa" de Rumsfeld, de joelhos na "coalizão dos voluntários" no Iraque? Que tal identificá-los? Notórios demais? Sem fiscais como I. F. Stone, George Seldes, A. J. Liebling, a mídia fica no nível dos Rohters, Judith Millers, Jayson Blairs, etc. Uma vergonha.
Fonte: Tribuna da Imprensa