Mossul, o longo caminho para a pazAlexandre Reis RodriguesCom o início da operação de reconquista de Mossul – a cidade sunita mais importante do Iraque e a 2ª do País, há dois anos sob o controlo do ISIS – o Governo do Iraque dá mais um passo – o mais difícil e mais imprevisível – para a recuperação da soberania territorial1 que começou a perder em dezembro de 2013 a favor do ISIS.
Mossul caiu em julho de 2014 por ação de cerca de 1500 guerrilheiros do ISIS que puseram em debandada quatro divisões do
Exército iraquiano com abandono do respetivo armamento. Três semanas depois, al-Baghdadi, na Grande Mesquita de al-Nuri em Mossul, proclamava-a capital do ISIS no Iraque e o centro do califado. Por essa altura, o movimento já controlava cerca de um terço do Iraque, onde se incluíam as cidades de Faluja, Ramadi e Tikrit, entre outras localidades importantes, nomeadamente pelo acesso a explorações de petróleo.
Esta situação começou a inverter-se no final de 2015 com a recuperação de Tikrit, seguida pela de Ramadi em janeiro e Faluja em junho deste ano, na sequência de ofensivas desencadeadas pelo Governo iraquiano, mas os prejuízos resultantes do domínio jihadista, embora de duração relativamente curta, são quase incalculáveis. Ramadi, por exemplo, dez meses depois de libertada, permanece inabitável e Tikrit, que foi deixada sem serviços básicos funcionais, só conseguiu atrair ao regresso 70.000 dos 210.000 habitantes que tinham fugido. Por aqui se pode, desde já, imaginar o que pode estar em causa quanto à reabilitação de Mossul, na sequência da ofensiva em curso.
Mossul tem uma importância prática e simbólica de longe mais relevante que qualquer das outras cidades. Tem uma dimensão geográfica e populacional muito maior (tinha 2,4 milhões de habitantes) e uma localização que lhe permite o controlo de uma rede viária vital e funcionar como uma espécie de motor económico do norte iraquiano. É também um centro da civilização assíria, repleto de locais da antiguidade, e o mais importante símbolo da presença da ocupação jiadista. Estando sob o controlo do ISIS há mais de dois anos, e sabendo este que o Exército iraquiano tentaria regressar mais tarde ou mais cedo, é de esperar que o movimento a tenha tornado numa fortaleza quase inexpugnável.
Este contexto vai exponenciar as dificuldades, já de si grandes, que as forças da coligação têm pela frente. Será um total de cerca de 50000 efetivos,(2) repartidos por dois núcleos principais de forças. A aproximarem-se pelo sul, quatro divisões do Exército iraquiano e a avançarem pelo norte e leste cerca de 12000 peshmergas, conjuntos complementados por milícias sunitas tribais, formações da
Popular Mobilization Front (3) e forças de operações especiais de diversos países, com destaque para os EUA que fornecerá também os “forward air controllers”. Do outro lado, estarão as forças do ISIS de que não existe informação segura. Estima-se que podem ser entre dois mil e sete mil guerrilheiros (talvez 5.000 segundo a maioria dos analistas).
É muito difícil prever como se desenvolverão as operações. Neste momento, desenrola-se apenas o que se tem designado pela 1ª fase, que visa reduzir progressivamente o perímetro controlado pelo ISIS e preparar a entrada na cidade. Calcula-se que se evitará fechar o cerco para deixar uma via de saída em terreno aberto onde seria mais fácil derrotar as forças do ISIS mas o que estas farão é quase de todo imprevisível. Tanto podem retirar para voltar mais tarde como podem resistir até ao fim, prolongando o confronto.
Entre estas duas situações extremas, podem passar ao modo da luta de guerrilha e preparar um clima de insurreição para o período imediatamente subsequente à entrada das forças de libertação, explorando os ressentimentos dos sunitas pelo défice de proteção que têm sofrido por parte do Governo central em Bagdade. Poderão também optar por tentar “distrair” as forças da coligação atacando em outros locais, como aconteceu há dois dias em Kirkurk. Para já, não estão a apostar em retardar o avanço da coligação. As 53 aldeias que estas tinham já ocupado ontem tinham sido antecipadamente evacuadas pelo ISIS. De facto, encontravam-se
desertas. A estratégia pode passar por estar a reservar a grande resistência para uma fase mais final da aproximação mas prevalece a opinião de que evitarão qualquer confronto direto onde a supremacia militar das forças iraquianas faria facilmente pender a vantagem para o lado iraquiano.
Às forças iraquianas também não interessa o confronto frontal de assalto à cidade, que aumentaria o grau de destruição e faria muitas vítimas civis. Vão certamente seguir uma estratégia de esgotamento e corte das linhas de abastecimento externo embora incluindo algumas ações diretas contra grupos de guerrilheiros, se as oportunidades surgirem. Presume-se que estas serão cada vez menores porque o ISIS já terá passado ao modo de guerrilha, dispersando as forças e misturando-se com a população local.
A ser verdade que o ISIS construiu uma extensa rede de infraestruturas subterrâneas, terá por essa via a possibilidade de surpreender as forças regulares e fugir logo de seguida para evitar duelos diretos. Para as forças iraquianas terá que ser um trabalho de muita paciência e por isso se tem dito que demorará bastante tempo mas se o ISIS enveredar por recorrer a atrocidades contra a população local – como tem feito com frequência - tudo se pode precipitar. Uma organização que luta pela libertação das mulheres da etnia “yasidis” que foram escravizadas pelo ISIS lançou um apelo dramático que esclarece bem os riscos que alguns setores da
população local estão a correr: «
If you can’t save us, please bomb us».
Quer pela ação da coligação, quer pelo próprio ISIS, o risco de que a cidade seja deixada em ruína total é grande. Em qualquer caso grande parte do desfecho fica dependente da postura da população local. Se continuar a complacência ou mesmo cumplicidade local que permitiu ao ISIS instalar-se sem grandes obstáculos, a operação demorará muito mais tempo e terá custos humanos e materiais muito maiores.
Não obstante todas estas dificuldades, não é difícil de prever que a cidade, ou que o restará dela no final, voltará ao controlo das forças iraquianas, mais tarde ou mais cedo. Será, no entanto, essencial que os EUA giram satisfatoriamente as rivalidades militares e diferentes visões dentro da coligação e consigam que o 1º Ministro iraquiano cumpra a promessa de deixar em exclusivo para as forças governamentais a entrada na cidade. Se as milícias xiitas forem autorizadas a entrar, o risco de que a libertação corra mal, devido ao sectarismo do seu comportamento, será elevado. A conclusão dessa fase, porém, não encerra o assunto. Encerra apenas o primeiro capítulo, essencialmente militar. Virão depois mais dois capítulos, tanto ou mais complexos do que o primeiro.
Por um lado, o processo interno de administrar o período de pós-recuperação da cidade. Este assunto depende da forma como for feita a gestão de sensibilidades políticas internas dando à comunidade sunita garantias de que poderão confiar no Governo central de Bagdade. Se a totalidade da população que ainda vive na cidade for tratada com cúmplice do ISIS será difícil um desfecho positivo. Por estas razões, muitos têm tentado lembrar que o pior ainda está para vir, mesmo admitindo que a cidade é libertada.
Por outro lado, haverá que lidar com um clima de disputa política internacional por áreas de influência. De um lado, estará a Turquia, com o apoio da Arábia Saudita e, em geral, os Estados de Golfo, a tentarem garantir que a cidade permanece como área sob administração sunita. Do outro lado, estará o Irão com o propósito de favorecer o controlo xiita. As disputas, internas e externas, que permitiriam ao ISIS tomar conta da cidade com grande facilidade não se vão extinguir com a sua libertação. O que virá a seguir pode ser mesmo mais difícil do que a expulsão do ISIS, principalmente se os acontecimentos vierem a dar razão aos sunitas que concluíram que, mal por mal, o domínio do ISIS pode ser menor que o dos xiitas. Para evitar que o drama iraquiano se prolongue, a comunidade internacional vai ter que fazer muito mais porque o Iraque sozinho não consegue encontrar o caminho da reconciliação nacional e estabilidade.
1 - O grande objetivo do 1º Ministro al-Abadi, desde que tomou posse em 2014.
2 - Fareed Zakaria fala num total de 100.000 efetivos. Os EUA terão, presentemente. no Iraque quase 6000 efetivos (houve um recente reforço de 600)
3 - Foi criada como uma formação militar permanente, independente mas integrada na estrutura das Forças Armadas iraquianas, em fevereiro de 2016, com o apoio do Irão. Tem sido considerado como um grupo semelhante ao Corpo de Guardas Revolucionários do Irão.
>>>> http://database.jornaldefesa.pt/crises_e_conflitos/iraque/JDRI%20217%20231016%20mosul.pdf