Sri Lanka - dos tempos da canela à nova base da marinha chinesa
Alguns dos locais onde a guerrilha tâmil e o exército do Sri Lanka travam os últimos combates de uma guerra civil com mais de 30 anos testemunham ainda hoje a presença portuguesa na ilha.
Uma presença que se fez sentir no início do século XVI, indica Luís Filipe Thomaz, referindo fontes portuguesas em que se define a ilha como "cousa tão rica e tão principal", por se situar "perto de Malaca e do Golfão de Bengala". Hoje, uma nova potência cobiça o Sri Lanka: a China, que financia a construção de um porto no Sul, em Hambantota.
E se no século XVI era referido o valor da localização do Ceilão, como a ilha era designada, esta localização mantém toda a importância nos jogos da actual geopolítica asiática. E estes jogos estão a reflectir-se na evolução do conflito entre Colombo e a guerrilha dos Tigres de Libertação do Eelam Tamil (TLET). O The Times escrevia na edição de ontem que Pequim financia a construção de Hambantota, que planeia usar como ponto de abastecimento para a sua marinha de guerra em patrulha às rotas comerciais do Golfo Pérsico à China.
Este porto no Sri Lanka vai integrar o "colar de pérolas" estratégico criado pela China do Sudeste Asiático até ao Paquistão, representando a base indispensável junto às costas do seu rival indiano.
A presença portuguesa fez-se sentir, por exemplo, em todo o Norte da ilha, sobrevivendo algumas muralhas ou outros vestígios de fortificações, por exemplo, na península de Jafna, na região de Mannar ou na enseada de Trincomalee. Áreas onde três séculos mais tarde, os tâmiles reivindicam a criação de um Estado autónomo, afirmando-se discriminados numa sociedade onde 74% da população é cingalesa.
Quando os portugueses chegaram ao Ceilão, a ilha estava dividida em vários reinos daquelas duas etnias, que mantêm relações complexas entre si e com os vizinhos indianos, escreve Amita Shastri em Government Policy and the Ethnic Crisis in Sri Lanka (1997), em que comércio, diplomacia e guerra se alternam. É este cenário que os portugueses vão encontrar, conseguindo forjar alianças com alguns reinos, que convertem ao cristianismo e aos quais vão cobrar "páreas" (tributo) em canela. Especiaria que se vai converter no grande interesse comercial luso na ilha.
A presença portuguesa mantém-se até ao século XVII, com o seu centro político-administrativo em Colombo, a actual capital, onde permanecem vestígios desta época, como igrejas e edifícios públicos. A cidade assistiu, em 1630, a um episódio que revela a importância do mar como elemento estratégico nos conflitos no Sri Lanka. Uma realidade que não escapou ao Presidente Mahinda Rajapakse na campanha que prossegue contra a guerrilha tâmil. No século XVII, o rei cingalês Senarat ataca os portugueses em Colombo e, após um cerco de três meses, só não obtém a vitória, porque não controlava os mares.
O mar é agora a derradeira linha de fuga para o líder dos TLET, Vellupillai Prabhakaran, depois do ministro da Defesa cingalês ter anunciado sexta-feira o cerco total à guerrilha.
A derrota militar dos TLET constitui um sucesso pessoal e político do Presidente Rajapakse, em parte resultado da cooperação militar chinesa. Um desenvolvimento facilitado a partir dos anos 90, quando o Ocidente impõe embargos à venda de armas a Colombo numa tentativa de forçar uma solução negociada do conflito.
Assim, a China ficou com o caminho aberto para os negócios, que vão da venda de aviões de combate a munições, sublinhava ontem o The Times. Em simultâneo, Pequim, prosseguindo a estratégia de cultivar laços com Estados ou regimes isolados internacionalmente, transformou-se num importante aliado diplomático de Colombo, a que não é indiferente a sua presença como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU.
A China é hoje o principal doador do Sri Lanka, com mais de mil milhões de dólares em 2008. Verbas relevantes na estratégia de Rajapakse e nos resultados que têm obtido contra os TLET. Mas a vitória do líder cingalês não assinalará o fim do conflito. As raízes deste assentam em clivagens anteriores à independência (1948), e agravadas nos anos 50, com as estratégias nacionalistas cingalesas de transformar o Ceilão num estado budista e hegemonizado por esta etnia.
A decisão tomada no pós-independência de transferir populações rurais - pondo em causa a maioria dos tâmiles nas suas regiões de origem, onde surgem importantes minorias cingalesas - vai revelar-se outro dos argumentos para fundamentar as reivindicações de autonomia tâmil. Nos anos 70, esta comunidade considera esgotado o caminho da negociação política e adere à luta armada para criar um estado independente no Norte e Nordeste da ilha.
Em 1976, surge uma primeira formação comprometida com a luta armada, mas será com os TLET e a sua estratégia de intimidação do restante campo político tâmil, numa primeira fase, e de acções violentas contra os seus adversários, que as tensões entre cingaleses e tâmiles atingem o ponto de não retorno.
Hoje, como no passado, os conflitos internos no Ceilão/Sri Lanka estão a ser usados por potências externas para favorecer os seus objectivos; no século XVI, foram as estratégias de evangelização e comércio portuguesas; no século XXI, são os interesses geopolíticos e económicos da China.
DN