Nova Couraça: Propostas para o Futuro dos Carros de Combate no Exército Brasileiro
Propostas para o Futuro dos Carros de Combate no Exército Brasileiro
Rogerio Atem de Carvalho
Instituto Federal Fluminense
Eduardo Atem de Carvalho
Universidade Estadual do Norte FluminenseResumoAs diretrizes publicadas recentemente pelo Alto Comando do Exército (Portaria no. 126 de 12 de junho de 2019) apontam diferentes (possíveis) caminhos a serem tomados quando se trata do futuro da força de Carros de Combate da Força Terrestre. No curto e médio prazo existe uma maior probabilidade de um processo de modernização dos componentes principais dos modelos existentes, enquanto que no longo prazo se aponta, acompanhando as tendências mundiais, para a adoção de uma família de blindados que contemple não apenas uma solução para Carro de Combate, mas também blindados de Infantaria, Engenharia, Artilharia e de suporte. Nesse sentido, este artigo revisita e amplia trabalho anterior dos autores, abordando as possibilidades para a modernização dos blindados existentes e a proposição de uma família futura, com foco em uma metodologia básica que priorize os elementos que devem ser produzidos no país e observações acerca das possibilidades de pesquisa e desenvolvimento dentro de modernos mecanismos de colaboração Governo, Indústria e Academia.
1. IntroduçãoA portaria estabelece definições, atribuições e objetivos para os as diversas Diretorias e o CMS, de forma a produzirem um novo documento que deverá então balizar as decisões do Exército Brasileiro nos anos vindouros neste campo estratégico e decisivo, que são as formações blindadas e seus meios, definindo “as estratégias para minimizar o hiato tecnológico atual dos componentes digitais e optrônicos embarcados nos blindados do Exército [...]”. Para os profissionais que irão compor esta comissão de saída são citados 16 documentos básicos que servem de referência. O documento a ser gerado deverá balizar medidas emergenciais para a frota atual, atreladas ao volume de recursos realmente disponíveis, bem como medidas de médio e longo prazos.
Ainda segundo a Portaria 162, no seu item 5.b, os projetos de modernização deverão considerar a existência de ilhas de modernidade, de pronto emprego, próximas ao estado da arte, bem como outras unidades que deverão ser adestradas no nível mais próximo possível deste, até onde permitir o orçamento. Esta abordagem se alinha com a história dos conflitos militares, onde o grau de adestramento e a moral da tropa sempre foi mais importante que o material disponível. O exemplo mais incontestável disto se passou no Oriente Médio, onde Israel venceu seus oponentes, melhor armados, em maior número e assessorados pela URSS (1967 e 1973), nas três grandes guerras em que disputou contra seus vizinhos (1948, 1967, 1973). Até mesmo a superioridade numérica, combinada com o elemento surpresa caíram diante do treinamento superior na Guerra do Yom Kippur. Historicamente, portanto, é acertada a decisão do Estado Maior do Exército em priorizar o treinamento.
A racionalização de meios de treinamento pode ser alcançada pelo uso do Centro de Instrução de Blindados (CIBld) como unidade de treinamento de novas tecnologias. Ao invés de se pulverizar os meios de instrução em diversas unidades, deve se concentrar estes meios no CIBld e oferecer estágios e cursos que habilitem militares de todas as especialidades relativas à guerra blindada no estado da arte, pelo pessoal mais qualificado do EB. Todo o material de instrução disperso por escolas, a menos das de manutenção, deve ser reunido no Centro. Nas escolas deve se ensinar com profundidade os fundamentos teóricos, aqueles que não mudam com o tempo e que seguirão com o combatente por toda a sua carreira. A vanguarda tecnológica e o emprego desta fica para as unidades de ensino posteriores, como o CIBld.
No intuito de contribuir para o avanço na elaboração da estratégia de modernização das forças blindadas do Exército Brasileiro, este artigo visa discutir mecanismos viáveis de aquisição e manutenção de uma frota homogênea junto à indústria nacional, no médio e longo prazo, sem abranger todos os tópicos cobertos pela Portaria 162, nem comentar os assuntos que são domínio da Doutrina e seus profissionais.
2. Produção de Um Carro de Combate: Questões Industriais
Este tópico reapresenta o método proposto originalmente pelos autores em Carvalho e Carvalho (2017), reproduzindo quase que ips literis parte deste documento. O modelo apresentado serve de base tanto para definições do processo de modernização quanto de produção de uma nova família de blindados.
Ter o máximo possível de independência quanto ao fornecimento de uma nova solução, ou de uma modernização dos atuais, para o Carro de Combate do EB é desejável, por motivos estratégicos óbvios: não faltam na História exemplos de países que tiveram o fornecimento de armas, munições e componentes cortado nos momentos mais necessários, como o clássico caso das aeronaves Mirage 5 para Israel (Israel Defense, 2015) e mais próximo, o caso dos mísseis Exocet para a Argentina na Guerra das Malvinas (Freedman, 2005). A decisão do que produzir em um CC, porém, não é trivial, como não é quando se trata de qualquer produto complexo.
A forma de se avaliar o que produzir de um Carro de Combate e, essencialmente, de qualquer produto final complexo, passa por dois aspectos principais, que são o domínio das tecnologias envolvidas e a necessária escala industrial para manter os custos de produção em níveis aceitáveis. Estes aspectos serão analisados a seguir.
2.1 O Domínio das TecnologiasEste item se refere ao corpo de conhecimentos necessários para produzir em solo nacional os componentes que se desejam. Este domínio, por sua vez, pode se dar de duas formas: desenvolvendo a tecnologia ou adquirindo a tecnologia:
a) Desenvolver a tecnologia: traz maior independência e benefícios em termos de aplicações duais (em outras áreas), além de formação de pessoal. Como desvantagem, consome maior tempo e impõe maiores riscos. Pode não conseguir atingir em tempo hábil o nível de maturidade desejado.
b) Adquirir a tecnologia: é mais rápido e com menos riscos, porém envolve dependência, inclusive com restrições de comercialização para terceiros e uso em outros projetos, não formam recursos humanos com tanta profundidade de conhecimentos quanto ao desenvolvimento, e existem questionamentos sobre se é realmente possível “absorver” tecnologia. O elemento de custos também pode ser questionado, posto que tecnologia adquirida envolve pagamento de royalties e limites à comercialização, que pode reduzir a escala e influenciar diretamente nos custos.
Em resumo, desenvolver significa assumir menor risco comercial e estratégico, porém com maior risco tecnológico, enquanto que adquirir, significa o oposto: ter menos risco tecnológico e mais comercial e estratégico.
2.2 Escala IndustrialA escala industrial refere-se basicamente à quantidade economicamente viável para se produzir um determinado produto a um custo aceitável. Por vezes, a análise da escala industrial aponta soluções que se opõem às questões tecnológicas vistas anteriormente, portanto, critérios de avaliação da escala devem ser cuidadosamente levados em conta, como visto a seguir.
·
Critérios de avaliaçãoDeve-se notar que, atualmente, desenvolver uma tecnologia não significa necessariamente produzi-la. Como exemplo, tem-se o casco da viatura blindada de combate de infantaria (VBCI) Namer do exército israelense, projetado em Israel, mas fabricado nos EUA, por questões de disponibilidade (custo) de instalações industriais (ZIDON, 2012). Assim, deve-se considerar que para cada subconjunto, seu desempenho relativo aos objetivos do processo decisório (utilidade) deve ser medido quanto aos aspectos tecnológicos e de fabricação. Por sua vez, cada um desses aspectos é avaliado por duas variáveis:
a) Custo: refere-se ao esforço financeiro para desenvolver e/ou produzir determinado item, quanto maior, pior quando comparado à alternativa concorrente. Por exemplo, quanto maior for o custo de produzir o tubo do canhão, melhor será adquiri-lo pronto.
b) Criticalidade: refere-se a quão estratégico para a organização, no caso o EB, é dominar a tecnologia e/ou fabricação daquele item, este critério por vezes se opõe ao custo. Em outras palavras, o alto custo pode indicar a não fabricação, mas a sua criticalidade pode indicar o contrário.
Conforme citado anteriormente, fica ainda mais clara a opção de que por vezes vale mais a pena dominar o projeto do que propriamente a fabricação de determinados itens.
2.3 Modelo decisórioÉ possível produzir um modelo decisório baseado em múltiplos critérios que, em face das alternativas existentes, conduza a um plano de produção e/ou nacionalização consistente. Deve-se compreender, porém, que este plano será dinâmico, devido à janela de tempo de produção. Naturalmente, quanto mais tempo previsto para produzir a quantidade necessária para equipar o EB, maior será o risco de o plano ser impactado por questões orçamentárias, cambiais e macroeconômicas. Como está fora do escopo deste artigo apresentar tal modelo em detalhes, apresenta-se aqui apenas sua base:
- Objetos: Subconjuntos do CC
- Aspectos: Tecnologias e Fabricação
- Critérios: Custo e Criticalidade
Como exemplo, tem-se o Subconjunto Sistema de Pontaria,formado por hardware, software, sistemas ópticos e sistemas termo-ópticos. Para cada item do subconjunto devem ser avaliados os aspectos tecnológicos e de fabricação, sob a luz de custos e criticalidade. Tome-se o hardware do sistema de pontaria (simulação proposta, de acordo com a visão dos autores):
- Quanto a Desenvolver ou Adquirir Tecnologia: dada a base tecnológica nacional na área, é possível desenvolver a tecnologia (projetar o hardware) em tempo hábil e com a qualidade desejada – a menos do processador central. Sua criticalidade é alta e seu custo de desenvolvimento é médio.
- Quanto a Fabricar a Tecnologia: novas tecnologias de produção de circuitos impressos permitem fabricá-los em pequenos lotes a custos baixos (Anderson, 2004), porém, deve ser considerado o processador. Neste caso, seria recomendável adquirir algum “de prateleira” (Component Off The Shelf – COTS), sem restrições de aquisição e baixo custo. Fabricar é de alta criticalidade e baixo custo relativo. Parte dos componentes do item seriam importados.
Assim, para este item específico, aponta-se para a decisão de dominar por completo o ciclo de produção, a menos de um dos subitens, o processador, posto que seu projeto e produção dependem de uma escala muito maior, para além, inclusive, da indústria bélica apenas.
2.4 Ranking SugeridoDeve ser considerado que, atualmente, em face do aumento da blindagem e poder de fogo das VBCI, já é perfeitamente considerável que a família de blindados baseada no CC não se limite a veículos de Socorro, de Engenharia e Lança Pontes, como usualmente, mas também ao blindado transporte de tropas, o que pode aumentar a escala de produção e reduzir custos, tanto de aquisição quanto de operação e manutenção, custos estes que compõem o chamado Total Cost of Ownership (TCO). Nesse aspecto, com o crescente índice de tecnologia embarcado nos veículos militares, estes estão caminhando para uma situação similar aos dos modernos caças, nos quais o custo total de propriedade é de 3 a 5 vezes maior que o de aquisição, ou seja, para produtos militares de alta tecnologia, o custo de aquisição as vezes responde apenas por cerca de 15-20% do custo total, o restante sendo associado a componentes, serviços e munições (Herrmann et al., 2004). Isso aponta para uma solução há muito compreendida por Israel, qual seja: focar na produção dos itens estratégicos e de ciclo de vida mais curto, de maneira a unir independência à escala industrial. Explica-se: durante a vida operacional de um caça, quantas vezes se troca sua estrutura central, por exemplo? Tipicamente, nenhuma. Já componentes eletrônicos e do turbopropulsor são substituídos com frequência e, portanto, além de menores e mais baratos, terão fornecimento necessário durante toda a vida útil do equipamento. Se o país que vendeu o caça não quiser vender mais a aeronave, não há problema.
O problema existe se não for possível adquirir mais peças do motor e munições. É claro que produzir partes da estrutura ainda é vantajoso, mas quando se tem escala, seja no próprio produto, seja quando a planta produtora pode fabricar, a custos competitivos, para outros produtos.
Baseado em uma avaliação sem ter posse dos custos detalhados de produção e projeto, os autores sugerem o seguinte ranking de subconjuntos a se nacionalizar, com as devidas justificativas:
1) Munições: prioridade máxima e absolutamente indispensável, nenhum Exército da importância do EB pode abrir mão de ter as diversas munições para seu CC fabricadas em solo nacional, com a tecnologia completamente dominada. Depois do Homem e das armas em si, as munições são o principal elemento da Guerra.
2) Sistema de Comunicações: na era da Guerra Centrada em Redes é vital ter o domínio sobre o sistema de comunicações, primeiramente para evitar que o adversário o invada e segundo para potencializar a capacidade de combate do elemento blindado através de uma eficiente coordenação de seus meios.
3) Hardware e Software do Sistema de Pontaria: é a alma combatente do CC. É vital ter segurança de que a eletrônica e o software são auditáveis não existindo bugs e Cavalos de Troia ou similares embutidos no sistema, em especial naqueles adquiridos de fornecedores externos. Além disso, a eficiente integração do hardware, software e sistemas óticos e térmicos aumenta a fluidez e precisão da informação relativa aos alvos, aumentando a consciência situacional da tripulação sendo, portanto, um diferencial no campo de batalha.
4) Elementos Óticos e Termo-óticos do Sistema de Pontaria: compõem com o hardware e software, sendo um pouco menos críticos porque, embora façam parte do mesmo sistema, não permite invasão por parte do adversário.
5) Conjunto Rodante: o poder dos blindados está na sua proteção e no seu movimento, junto com o conjunto motriz este elemento é vital. Troca de posição no ranking caso o CC seja de projeto integralmente nacional, ou seja, rodas, polias, esteiras e potencialmente, amortecedores, sejam projetados exclusivamente para o modelo a fabricar. São de maior rotatividade relativa – elementos de esteiras e amortecedores, são de fabricação simples e críticos.
6) Conjunto Motriz: elementos com alta rotatividade e vitais para a operacionalidade do CC. Sua produção pode ser realizada por subsidiárias dos grandes fabricantes em plantas já existentes no país. Deve-se atentar para alguns detalhes, como por exemplo, é economicamente vantajoso fabricar o bloco do motor? Ou apenas seus componentes que são trocados com mais frequência?
7) Armamento Principal: apesar de ser de suma importância, apresenta vida útil relativamente grande e sua produção, em especial a do cano em si, é complexa e cara. Devido sua importância estratégica, é interessante poder fabricar este elemento do canhão ou adquiri-lo e manter em estoque para trocas, caso não seja possível fabricar. Notar que no modelo decisório proposto, este é um subconjunto de alto valor estratégico, porém de tecnologia que não vale a pena desenvolver e produzir devido aos custos envolvidos.
8 ) Blindagem Extra Móvel: é um subconjunto de classificação complexa, uma vez que em tempos de paz este material fica armazenado nas unidades, poupando combustível durante exercícios e outras atividades, mas quando da participação em forças de paz, deve se prever seu consumo e substituição em ritmo mais acelerado, em especial quando em operações envolvendo conflitos assimétricos. Sua tecnologia tende a ser mais avançada que a do casco, no caso de compósitos cerâmicos ou bem simples, como a “gaiola” anti-RPG.
9) Torre: guarda os elementos de combate e, em termos industriais, é o elemento mecânico de maior complexidade, agregando tecnologia no que tange à blindagem. Neste aspecto, sofre também com a questão de escala, embora dominar a fabricação de blindagens compostas é interessante do ponto de vista geral para a indústria bélica. Adicionalmente, em modernizações geralmente a torre é afetada, portanto é interessante ter pelo menos parte do maquinário industrial para manipular este subconjunto.
10) Casco: Mais baixa prioridade de todas, é o subconjunto que agrega menos tecnologia e o menos afetado em toda a vida útil do blindado. Sua produção só é economicamente viável se for possível usar o maquinário para outros blindados, ou seja, para poder cobrir o próprio investimento no maquinário.
Como se pode ver, a decisão do que desenvolver e do que produzir não é simples e pode variar no tempo, sendo assim, o plano de produção do blindado, como de qualquer outro produto complexo e que não seja fabricado massivamente, deve prever limiares, que quando ultrapassados, devem gerar mudanças nos planos de produção. Por exemplo, aumentos no dólar podem passar a justificar a fabricação de componentes que antes eram importados e vice-versa. Cortes orçamentários podem aumentar as janelas de entrega e dificultar o plano de nacionalização também – como se tem visto no Programa HX-BR, por exemplo. Outro fator preponderante é a primeira decisão a se tomar: produzir algo totalmente novo, adaptar um projeto existente, ou simplesmente fabricar sob licença.
CONTINUA....