Os enigmas da Coreia do NorteAlexandre Reis RodriguesQuando se trata de atrair as atenções mundiais, a Coreia do Norte é imbatível. Normalmente, fá-lo pelas piores razões: desvinculação do Tratado de Não Proliferação Nuclear, ensaios de explosões nucleares, testes de lançamentos de mísseis balísticos, ameaças de ataque aos Estados Unidos, etc. Desta vez, é a realização do Congresso do Partido. Atrai muito interesse porque interrompe um período de 35 anos em que não se realizou nenhum. É natural que surjam muitas interrogações sobre o que poderá
estar por de trás da decisão e cresçam as expectativas de ver surgir sinais de mudança.
O mais provável, no entanto, é que não surja nada de novo. Os 130 jornalistas que aceitaram o convite do Governo norte coreano para visitar o País já começaram a aperceber-se que caíram num logro. Só lhes vai ser permitido ver o que as autoridades muito bem entenderem, ou seja, nada do que verdadeiramente interessaria à volta da realização do Congresso. Estão apenas a ser usados pela máquina publicitária de Pyongyang. Era previsível porque é uma prática instalada. Deveria haver mais cuidado em não estar a ajudar estas simulações de abertura num regime que vive da opacidade.
Tanto quanto se percebe do regime hermético da Coreia do Norte, a realização deste congresso pretende sobretudo dar mais consistência à mudança de liderança que ocorreu pela chegada ao poder de Kim Jong Un em 2012. O seu pai (e antecessor) não gostava de congressos nem muito menos de exposição mediática. Nos 17 anos em que esteve à frente dos destinos do país, realizou apenas uma reunião do comité político, nenhuma do comité central. Governava, através de um núcleo de ajudantes diretos (um núcleo de cerca de 30 pessoas, ao que consta) que se responsabilizavam perante ele pelas pastas mais importantes. Quanto a congressos participou no de 1980, que antecedeu o atual e no qual foi designado sucessor de seu pai, Kim Ill Sung. Nem a alternativa de realizar conferências do Partido, que a Constituição permitia, observou. Realizou apenas uma conferência do partido em 2010 para garantir a continuação da dinastia, designando Kim Jong Un como seu sucessor e fazendo dele um general de quatro estrelas.
Dizem os especialistas que, em termos de personalidade, o atual Presidente dificilmente poderia ser mais diferente de seu pai. Enquanto este não era dado a exposição pública, o filho tem apetência pelo mediático e, ao contrário do pai, optou por governar usando as estruturas do Estado coreano, Partido, Governo e Forças Armadas, num estilo que alguns comentadores designam por mais transparente. O seu pai resolvia os assuntos através dos chamados “back channels” e atribuía os cargos importantes com caráter vitalício.
Kim Jong Un não só recorre a reuniões como até publicita a sua realização e está a empreender uma mudança demográfica na composição elite que gere o País, rejuvenescendo os quadros com os chamados “millennials”, muitos dos quais com formação no exterior. A geração mais idosa tem sido afastada com “reformas douradas” mas resta a suspeita que alguns tenham sido feitos desaparecer, como acontecia no passado com os que se tornavam inconvenientes. A realização deste congresso talvez ajuda a perceber, através das presenças, o que terá acontecido.
Para além destas mudanças no quadro interno fala-se em mudanças de estratégia. Será para marcar essa viragem e para formalizar a sua própria agenda e autoridade, com novas mudanças na composição dos principais órgãos do partido, que Kim Jon Un se decidiu por avançar com o Congresso. Enquanto o seu pai é lembrado por uma estratégia que ficou conhecida por “Songun” (o poder militar em primeiro lugar), o atual presidente aposta em dois eixos de desenvolvimento, o económico e o nuclear (estratégia “Byongin”).
Admite-se que o congresso tenha sido encarado também como uma forma de reafirmar o estatuto de potência nuclear, como resposta à realização dos exercícios militares entre os EUA e a Coreia do Sul em março/abril, e como um desafio à nova condenação do Conselho de Segurança das Nações Unidas sobre a continuação dos testes nucleares (Resolução 2270). Muitos analistas calculam que virão muito brevemente – eventualmente, ainda durante o congresso que dura cinco dias - mais testes de explosões e ensaios de lançamento de mísseis balísticos.
Não obstante estes sinais continua a não ser possível fazer uma leitura sobre o caminho que a Coreia do Norte pretende seguir. Esta dificuldade resulta não só da natureza impenetrável do regime como também de um propósito deliberado em deixar dúvidas e criar incertezas sobre as suas verdadeiras intenções. Há dois enigmas principais, um no campo da economia, o outro no campo do nuclear.
No campo da economia – tanto quanto se sabe - nem sequer internamente se explica quais são os planos e objetivos. É uma forma de ficar a salvo de eventuais confrontações com falhanços em atingir as metas estabelecidas. No discurso de fim do ano, Kim Jong Un limitou-se a dizer que a questão das «condições de vida da população era a grande prioridade na miríade de assuntos a resolver»
No campo nuclear, não obstante a realização de quatros testes de explosões que se seguiram à declaração do estatuto de potência nuclear em 2005, ainda não é claro com que sucesso se domina o problema de miniaturização da ogiva para integração num míssil balístico. Aliás, neste último campo, o que tem ficado evidente são sucessivos falhanços nos ensaios de lançamento que têm sido realizados ultimamente. Mas mesmo que estes testes não tivessem falhado ainda lhe ficaria a faltar fazer prova final de outros aspetos técnicos (reentrada na atmosfera do cone com a ogiva nuclear e precisão de guiamento).
O terceiro enigma, certamente mais importante, é saber quanto tempo mais conseguirá a Coreia do Norte sobreviver como um regime isolado do mundo, em plena globalização. Obviamente não depende apenas de Pyongyang. Depende sobretudo de a China continuar a avaliar a situação como um mal menor comparado com a possibilidade de reunificação das duas Coreias.
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