"Uma nova tragédia humanitária está em curso em África. E numa região de que poucos ou nenhuns terão ouvido falar: Darfur. Fica no sudoeste do Sudão e é palco de uma ofensiva de milícias árabes (árabes que na região integram sobretudo comunidades de pastores), aparentemente apoiadas pelo regime islâmico de Cartum, que se traduz numa campanha de limpeza étnica contra as comunidades negras (formadas sobretudo por agricultores) e que se tinham rebelado.
Esta guerra esquecida que estalou há mais de um ano vem martirizar um Sudão onde, também perante a indiferença geral, morreram só nos últimos 20 anos mais de dois milhões de pessoas numa outra guerra civil, travada no sul do país entre o exército de Cartum e a minoria cristã.
Na actual crise de Darfur já terão morrido pelo menos dez mil pessoas, mas o número pode pecar por defeito pois haverá potencialmente um milhão de refugiados e deslocados. Nalguns locais, como na cidade de Mornay, haverá mesmo 80 mil desgraçados virtualmente cercados pois, segundo os "Médicos Sem Fronteiras", qualquer homem que tente furar o cerco é morto e as mulheres são violadas.
Tudo isto se passa perante a quase total indiferença da comunidade internacional. Kofi Annan, que ainda recentemente apresentou um plano para impedir a repetição de tragédias como a do genocídio do Ruanda, defendia-se ontem, falando aos microfones da rádio das Nações Unidas, considerando que "ninguém pode culpar a ONU pela inacção do Mundo no conflito do Darfur". É verdade - as Nações Unidas fazem aquilo que as nações que integram decidem - mas é trágico e mostra os limites da organização mesmo em situações onde não existem aparentes disputas entre as potências que integram o Conselho de Segurança. Apenas existem outras prioridades.
No terreno, algumas organizações da ONU tentam mitigar o sofrimento dos refugiados e salvar vidas, mas existe a consciência clara de que nem sequer é possível fazer chegar à região comida suficiente. Daí que a impotência assumida por Kofi Annan face ao que a sua organização classifica claramente como uma "operação de limpeza étnica" e perante uma tragédia humanitária que aponta como sendo a mais grave com que o Mundo se defronta hoje, faz lembrar demasiado o genocídio ruandês - durante o qual a actuação do mesmo Annan, então responsável pelas forças de manutenção da paz, foi muito criticada - para que a sua entrevista de ontem possa ser lida como uma forma de sacudir desde já as suas responsabilidades, como notava a BBC.
Mas isso é secundário. Secundário, em primeiro lugar, porque encontrar culpados não salva vidas. E secundário porque a situação no Sudão, que se arrasta há dezenas de anos - como outras um pouco por toda a África - contém em si os germes de conflitos a uma escala muito maior. É que estamos, mais uma vez, numa zona de fronteira do mundo islâmico, neste momento as zonas sistematicamente mais perigosas e conflituosas do globo, como há mais de dez anos já notava Samuel P. Huntington. E estamos, também, perante um Estado falido, em ruínas, viveiro permanente de problemas para si e para os outros.
Estas coisas deviam preocupar-nos, mas talvez só nos preocupem quando houver outra vez um milhão de cadáveres para enterrar."
Por José Manuel Fernandes
Do editorial do PÚBLICO de 23/06/2004
Observações:
Este é um velho conflito religioso e sobretudo cultural que opõe o norte islamizado e o sul animista e com influências cristãs.
Este conflito que aí grassa não é inocente.
O apoio que os guerrilheiros do sul desde sempre liderados por John Garang, apoiado claramente pelo Uganda, grande aliado norte-americano na região começa a ter contornos que mimetizam trágicamete a disputa por riquezas naturais, como as que assolam a zona oriental do ex-Zaire e de Angola: a disputa por minerais, por diamantes, ou por metais ricos.
Um norte do Sudão islamizado e de que Bashir agora está muito mais próximo do ocidente, desde que baixou a guarda perante o Egipto, e um sul igualmente apoiado pelo ocidente.
Uma guerra improvavel politicamente, mas trágicamente real para os seus intervenientes e vítimas.
Uma guerra entre o norte islamizado e o sul cristão para os mais simplistas, e que tendem a esquecer o bom convívio que na África do norte e oriental sempre houve entre muçulmanos, judeus e cristãos, desde tempos medievais.
Mais uma tragédia esquecida, como a de Angola, a do ex-Zaire ou do Burundi.
Quando é que África sairá deste poço que o transformou no "continente perdido" pelos piores motivos?