O conflito esquecido num continente esquecido

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Rui Elias

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O conflito esquecido num continente esquecido
« em: Junho 23, 2004, 10:55:45 am »
"Uma nova tragédia humanitária está em curso em África. E numa região de que poucos ou nenhuns terão ouvido falar: Darfur. Fica no sudoeste do Sudão e é palco de uma ofensiva de milícias árabes (árabes que na região integram sobretudo comunidades de pastores), aparentemente apoiadas pelo regime islâmico de Cartum, que se traduz numa campanha de limpeza étnica contra as comunidades negras (formadas sobretudo por agricultores) e que se tinham rebelado.

Esta guerra esquecida que estalou há mais de um ano vem martirizar um Sudão onde, também perante a indiferença geral, morreram só nos últimos 20 anos mais de dois milhões de pessoas numa outra guerra civil, travada no sul do país entre o exército de Cartum e a minoria cristã.

Na actual crise de Darfur já terão morrido pelo menos dez mil pessoas, mas o número pode pecar por defeito pois haverá potencialmente um milhão de refugiados e deslocados. Nalguns locais, como na cidade de Mornay, haverá mesmo 80 mil desgraçados virtualmente cercados pois, segundo os "Médicos Sem Fronteiras", qualquer homem que tente furar o cerco é morto e as mulheres são violadas.

Tudo isto se passa perante a quase total indiferença da comunidade internacional. Kofi Annan, que ainda recentemente apresentou um plano para impedir a repetição de tragédias como a do genocídio do Ruanda, defendia-se ontem, falando aos microfones da rádio das Nações Unidas, considerando que "ninguém pode culpar a ONU pela inacção do Mundo no conflito do Darfur". É verdade - as Nações Unidas fazem aquilo que as nações que integram decidem - mas é trágico e mostra os limites da organização mesmo em situações onde não existem aparentes disputas entre as potências que integram o Conselho de Segurança. Apenas existem outras prioridades.

No terreno, algumas organizações da ONU tentam mitigar o sofrimento dos refugiados e salvar vidas, mas existe a consciência clara de que nem sequer é possível fazer chegar à região comida suficiente. Daí que a impotência assumida por Kofi Annan face ao que a sua organização classifica claramente como uma "operação de limpeza étnica" e perante uma tragédia humanitária que aponta como sendo a mais grave com que o Mundo se defronta hoje, faz lembrar demasiado o genocídio ruandês - durante o qual a actuação do mesmo Annan, então responsável pelas forças de manutenção da paz, foi muito criticada - para que a sua entrevista de ontem possa ser lida como uma forma de sacudir desde já as suas responsabilidades, como notava a BBC.

Mas isso é secundário. Secundário, em primeiro lugar, porque encontrar culpados não salva vidas. E secundário porque a situação no Sudão, que se arrasta há dezenas de anos - como outras um pouco por toda a África - contém em si os germes de conflitos a uma escala muito maior. É que estamos, mais uma vez, numa zona de fronteira do mundo islâmico, neste momento as zonas sistematicamente mais perigosas e conflituosas do globo, como há mais de dez anos já notava Samuel P. Huntington. E estamos, também, perante um Estado falido, em ruínas, viveiro permanente de problemas para si e para os outros.

Estas coisas deviam preocupar-nos, mas talvez só nos preocupem quando houver outra vez um milhão de cadáveres para enterrar."


Por José Manuel Fernandes
Do editorial do PÚBLICO de 23/06/2004

Observações:

Este é um velho conflito religioso e sobretudo cultural que opõe o norte islamizado e o sul animista e com influências cristãs.

Este conflito que aí grassa não é inocente.

O apoio que os guerrilheiros do sul desde sempre liderados por John Garang, apoiado claramente pelo Uganda, grande aliado norte-americano na região começa a ter contornos que mimetizam trágicamete a disputa por riquezas naturais, como as que assolam a zona oriental do ex-Zaire e de Angola: a disputa por minerais, por diamantes, ou por metais ricos.

Um norte do Sudão islamizado e de que Bashir agora está muito mais próximo do ocidente, desde que baixou a guarda perante o Egipto, e um sul igualmente apoiado pelo ocidente.

Uma guerra improvavel politicamente, mas trágicamente real para os seus intervenientes e vítimas.

Uma guerra entre o norte islamizado e o sul cristão para os mais simplistas, e que tendem a esquecer o bom convívio que na África do norte e oriental sempre houve entre muçulmanos, judeus e cristãos, desde tempos medievais.

Mais uma tragédia esquecida, como a de Angola, a do ex-Zaire ou do Burundi.

Quando é que África sairá deste poço que o transformou no "continente perdido" pelos piores motivos?
 

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Luso

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« Responder #1 em: Junho 23, 2004, 12:36:50 pm »
"Quando é que África sairá deste poço que o transformou no "continente perdido" pelos piores motivos?"

Quando for colonizada outra vez, e assumidamente por estados e não subreptíciamente por multinacionais.
Ai de ti Lusitânia, que dominarás em todas as nações...
 

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P44

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« Responder #2 em: Junho 23, 2004, 01:37:02 pm »
Citar
Quando for colonizada outra vez, e assumidamente por estados e não subreptíciamente por multinacionais.


Apoiado!!!!!!
"[Os portugueses são]um povo tão dócil e tão bem amestrado que até merecia estar no Jardim Zoológico"
-Dom Januário Torgal Ferreira, Bispo das Forças Armadas
 

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komet

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« Responder #3 em: Junho 23, 2004, 01:39:58 pm »
Sem dúvida... qualquer governante local que se apanhe lá em cima cai sempre na fraqueza do petroleo e diamantes, e o povo a morrer á fome.

É preciso por lá alguem que saiba o que faz  :wink:
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Guilherme

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« Responder #4 em: Junho 23, 2004, 01:40:26 pm »
Citação de: "Luso"
"Quando é que África sairá deste poço que o transformou no "continente perdido" pelos piores motivos?"


Quando deixarem de matar seus semelhantes, por terem uma religião ou grupo étnico diferente, e quando um grupo político aceitar que outro grupo político detenha o poder conquistado com eleições.
 

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JLRC

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« Responder #5 em: Junho 23, 2004, 01:47:00 pm »
Citação de: "Luso"

Quando for colonizada outra vez, e assumidamente por estados e não subreptíciamente por multinacionais.


Seus neo-colonizadores de trazer por casa :oops:  :oops:
 

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Rui Elias

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« Responder #6 em: Junho 23, 2004, 02:01:09 pm »
Numa couisa o Luso tem razão:

As multinacionais e os interesses comerciais e económicos em África, aliados a governantes corruptos que confundem o Estado com a sua vida particular são a pior mistura para o futuro do continente.

Sabiam que uma das causas da guerrilha no leste do ex-Zaire é por causa de uns minerais que servem para fazer chips para telemóveis?
 

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Luso

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« Responder #7 em: Junho 23, 2004, 05:26:15 pm »
"Seus neo-colonizadores de trazer por casa"

Sou neo-colonialista - assumidamente - mas não de trazer por casa.
De que me adianta a "independência" se não posso beber água potável?
Ou um pouco de pão?
Ou tratar um dente?
Ai de ti Lusitânia, que dominarás em todas as nações...
 

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komet

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« Responder #8 em: Junho 23, 2004, 07:25:19 pm »
Luso certamente que o povo aquando a descolonização deve ter pensado nisso, mas as forças de libertação e afins passaram a ficar muito bem na vida e é so isso que realmente lhes interessava  :?
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Luso

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« Responder #9 em: Junho 23, 2004, 09:13:36 pm »
"Luso certamente que o povo aquando a descolonização deve ter pensado nisso, mas as forças de libertação e afins passaram a ficar muito bem na vida e é so isso que realmente lhes interessava."

Isso é um facto que ainda hoje se demonstra, infelizmente.
Ai de ti Lusitânia, que dominarás em todas as nações...