"Choque de Civilizações"

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"Choque de Civilizações"
« em: Novembro 25, 2004, 01:25:00 am »
Samuel Huntington e a teoria do "choque de civilizações"

Argemiro Ferreira

NOVA YORK (EUA) - A mídia continua persistente em recorrer (o que faz desde 11/9/2001) à teoria do "choque de civilizações". A expressão tornou-se lugar-comum após ser adotada pelo cientista político Samuel P. Huntington, que em 1996 publicou o livro "The clash of civilizations and the remaking of world order" (O choque de civilizações e a reformulação da ordem mundial).

Esse livro é encarado às vezes como tão influente na estratégia do governo Bush como tinha sido, na década de 1940, o estudo de George Kennan sobre a contenção do comunismo (containment), justificativa intelectual da Doutrina Truman. Resultou, diz Huntington, da controvérsia gerada pela publicação na revista "Foreign Affairs" de um artigo em 1993 sobre o mesmo tema.

Editores da revista compararam a repercussão à do ensaio de Kennan em 1947, sob o título "As fontes da conduta soviética" (assinado com o pseudônimo "X"). Walter Lippman, então o mais influente analista de política externa na mídia, fez depois uma dura crítica do trabalho - ambos republicados 25 anos depois, junto com preciosa apresentação de Ronald Steel, no livro "The Cold War" (A Guerra Fria).

"O Ocidente contra o resto"

Para Huntington, "choques de civilizações" (em vez de conflitos entre nações) passarão a dominar a política mundial, tornando-se a maior ameaça à paz no mundo. Como melhor salvaguarda contra a guerra, sugeriu sua própria receita de nova ordem internacional. Vivemos hoje, alegou, a transição do antigo sistema mundial apoiado em três blocos de poder (EUA, URSS, Terceiro Mundo) para outro.

O novo seria integrado por oito grandes civilizações - ocidental, japonesa, confuciana (chinesa), hindu, islâmica, eslava-ortodoxa, latino-americana e possivelmente africana. Ele fez certas concessões (diferenças não significam necessariamente conflito, conflito não é necessariamente violência), mas observou: 1. O mundo está ficando menor, aumenta a interação entre pessoas de diferentes civilizações; 2. A modernização econômica e a mudança social afastam as pessoas da antiga identidade local e enfraquecem estados, permitindo que religiões fundamentalistas preencham a lacuna; 3. Certas nações não ocidentais, com mais recursos, ficam mais tentadas a impor ao mundo hábitos e opções não ocidentais; 4. Diferenças culturais são mais difíceis de superar do que as políticas e econômicas; 5. Mais regionalismo econômico reforça a consciência de civilização.

Levando em conta diferenças de séculos, que não desaparecerão logo, e a pouca ressonância das idéias ocidentais de individualismo, liberalismo, direitos humanos, constitucionalismo, igualdade, liberdade, democracia e separação igreja-estado nas culturas islâmica, confuciana, japonesa, hindu, budista ou ortodoxa, ele conclui ser provável que o eixo central da política mundial no futuro venha a ser o conflito entre "o Ocidente e o resto" (expressão de Kishore Mahbubani em 1992).

O fundamentalismo dos dois lados

Huntington culpa as respostas das civilizações não ocidentais aos valores e poderio ocidental. E arremata citando uma ameaça terrível da "conexão islâmica-confuciana" contra o Ocidente (não explica porque não um choque entre a islâmica e a confuciana). A política ocidental teria necessariamente de ser conduzida no sentido de manter a hegemonia mundial, desestabilizando as civilizações hostis por meios militares e diplomáticos. Lançadas umas contra outras, no estilo "equilíbrio do poder", elas aprenderiam a conviver com a diversidade global.

Surgiram contestações vigorosas, mas a expressão "choque de civilizações" entrou na moda. Críticos apontam muitos furos, entre eles o fato de serem comuns os conflitos dentro das próprias civilizações - e entre elas. É destacado ainda que a busca de mais eqüidade em termos globais, atendendo às necessidades humanas, contribuiria para evitar choques entre civilizações.

Mas Huntington insiste: os choques virão, causados pela incompatibilidade de valores políticos e morais. Não explica por que têm de gerar confrontação política e militar. No governo Bush tal teoria foi abraçada com fervor pelos "neocons" e pela direita religiosa (os "theocons"). Acabou consagrada no Pentágono dias depois do 11/9, quando o neocon Paul Wolfowitz advogou o ataque ao Iraque, embora a inteligência só culpasse a al-Qaeda de Osama bin Laden.

Pouco adiantou o perplexo secretário de Estado Colin Powell alertar que tal coisa afastaria os aliados. O próprio Bush diria ao neocon Richard Perle que tão logo fosse resolvido o problema do Afeganistão seria a vez do Iraque. Na terça-feira, 18/9, Perle reuniu os 30 membros do Defense Policy Board, então presidido por ele no Pentágono, na própria sala de conferência do secretário da Defesa, Donald Rumsfeld.

O intelectual e o banqueiro vigarista

Dois convidados especiais falaram naquela reunião. O primeiro foi Bernard Lewis, da Universidade de Princeton, ligado há anos a Wolfowitz e Dick Cheney. Decano dos estudiosos das relações Ocidente-islamismo, Lewis fora o primeiro a usar a expressão "choque de civilizações". O próprio Huntington recorreu a ela, segundo disse, após ler ensaio dele, "As razões da fúria islâmica", no qual escrevera:

"(...) Enfrentamos um estado de espírito e um movimento que transcende o nível de temas e políticas, como dos governos que as perseguem. É um choque de civilizações - reação talvez irracional mas certamente histórica de um antigo rival contra nossa herança judaico-cristã, nossa atual secularidade, e a expansão em âmbito mundial de ambos."

No Pentágono, Lewis disse que os EUA tinham de responder com demonstração de força ao 11/9, para dar uma lição ao mundo islâmico. E ao defender um apoio aos "reformistas democratas" do Oriente Médio, voltou-se para o lado onde estava o outro convidado de Perle para falar na reunião: "... como meu amigo aqui, dr. Chalabi". Referia-se, claro, a Ahmed Chalabi, banqueiro falido, procurado por fraude na Jordânia, além de favorito do Pentágono para o lugar de Saddam Hussein.

A presença no coração do Pentágono do criador da expressão "choque de civilizações", junto com o banqueiro vigarista que fraudara pretextos para o governo Bush invadir o Iraque, era indício eloqüente das opções da Casa Branca. Três dias antes o presidente Bush, cristão renascido, prometera responder com uma cruzada à jihad de Bin Laden. Assim nasceu a nova estratégia para substituir a Doutrina Truman da Guerra Fria.

Fonte:

 
As pessoas te pesam? Não as carregue nos ombros. Leva-as no coração. (Dom Hélder Câmara)
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Volta Redonda
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