'A Minha Guerra'

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Cabeça de Martelo

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'A Minha Guerra'
« em: Janeiro 10, 2008, 12:51:06 pm »
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Uma Guerra como ainda não foi contada

Passaram 40 anos, mas os homens, agora na casa dos 60, que fizeram a guerra em África, não esquecem. Eram rapazes, muitos deles nados e criados em pequenas aldeias – poucos teriam ideia de como o Mundo era grande – quando foram chamados a defender a integridade territorial da nação, então considerada pluricontinental e multirracial. É porque eles se lembram que a Domingo os convida a participar na rubrica “A Minha Guerra."

Estas páginas são reservadas aos testemunhos dos militares portugueses que combateram em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique. Nelas publicaremos as histórias e as imagens dos que lutaram em África entre 1961 e 1974. Entre eles, houve quem, nesses anos, mantivesse a lucidez suficiente para alinhar palavras num diário ou em cartas enviadas para a metrópole. Mesmo se é da história de cada um que se trata, ali conta-se igualmente uma parte, das mais importantes e dolorosas, da História contemporânea portuguesa. Na primeira pessoa.

Os homens que não escreveram esses diários e evitavam expressar sentimentos nas cartas, limitando-se a tranquilizar a família, calando a ansiedade, guardaram, ainda assim, a memória.

Podem agora passá-la a palavras e partilhá-la. Não só porque contar apazigua. Também para que outros, não nascidos ou menos conscientes naqueles anos, saibam o que sentiram e viram os jovens que partiam da Rocha Conde de Óbidos, em Alcântara.

VIAGENS

Os paquetes faziam-se ao rio e depois ao oceano atafulhados de militares. Em terra, acenando, ficavam as mulheres, as namoradas e as mães. Em “A Minha Guerra” cabem as impressões da viagem no ‘Vera Cruz’, ‘Império’, ‘Niassa’, ‘Uíje’... O que sentiram rapazes que mal tinham saído das aldeias em tão grandes barcos? O que viram quando chegaram ao destino? O que pensaram? Não são precisas palavras caras nem frases rebuscadas. Não se sintam assim desmotivados os que se crêem menos preparados para a escrita. Os sentimentos, as emoções, a coragem, o medo, a ansiedade contam-se com palavras simples.

Os combates, a acção propriamente dita, desempenham parte importante em “A Minha Guerra”. Mas nem por isso interessa menos o relato do quotidiano dos combatentes – os dias de calma, o tempo de ócio possível ou até os momentos de alguma felicidade entre camaradas de armas. Também os antigos combatentes que entretanto partiram podem ser aqui recordados.

"A MINHA GUERRA"

Os leitores do Correio da Manhã podem agora enviar as suas histórias de guerra – em Angola, em Moçambique ou na Guiné. Queremos ouvi-las. O CM publica as melhores. Contacte-nos por telefone (213 185 200), e-mail (http://www.correiomanha.pt/noticia.asp? ... idCanal=19

PS: vão ao link e vejam os comentários. :wink:
7. Todos os animais são iguais mas alguns são mais iguais que os outros.

 

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Lancero

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« Responder #1 em: Fevereiro 07, 2008, 10:00:42 pm »
As três já publicadas.


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2008-02-03 - 00:00:00

A Minha Guerra: Carlos Paiva
Companhia sofre uma baixa na primeira saída

A Companhia de Artilharia 2918 foi enviada para Diaca, no distrito de Cabo Delgado, bem no centro do planalto dos Macondes, entre Mueda e Mocímboa da Praia, em Moçambique. Eu era o comandante do 1.º pelotão.

Chegámos a Diaca em 21 de Junho de 1970 – e no dia 1 de Julho começava a Operação Nó Górdio, que foi, sem a mais pequena dúvida, a maior acção militar jamais lançada em toda a Guerra Colonial.

Tínhamos apenas 10 dias de Moçambique. O meu pelotão e o 3.º pelotão largaram às cinco horas da manhã daquele 1 de Julho, integrados na Operação Nó Górdio, com ração de combate para três dias. Seguimos rumo ao Rio Muera, passando pela ‘curva da morte’ – onde eram frequentes as emboscadas montadas pelos guerrilheiros da Frelimo.

O comandante de companhia, o nosso capitão Simões, ia connosco – para nos dar a confiança necessária aos primeiros tempos de uma guerra que desconhecíamos. Seguíamos em silêncio absoluto. Avançávamos pela picada em fila de pirilau, atrás uns dos outros, com muito cuidado, olhos bem abertos, armas prontas a disparar, dedo no gatilho. Era preciso ver aonde pisávamos para evitar as minas. A atmosfera era pesada. De quando em vez, arrepiávamo-nos com os guinchos dos macacos.

Tínhamos andado uns quatro quilómetros quando detectámos a primeira mina antipessoal. A fila imobilizou-se. Os soldados dobrados sobre as G-3 perscrutavam atentamente qualquer movimento estranho. Não levávamos o equipamento para rebentar minas – que ficara esquecido no quartel. À falta de melhor solução, e com a ingenuidade da altura, eu próprio rebentei a mina com um tiro de G-3. Chegados à ‘curva da morte’, virámos à esquerda, em direcção ao Rio Muera.

Dois quilómetros mais à frente, parámos para pernoitar ali mesmo. O dia seguinte começou cedo. Coube ao meu pelotão a tarefa de começar a “picar” à procura de minas. Avançámos poucas centenas de metros quando, de repente, se ouviu um grande estrondo: um soldado caiu – e todos os outros, em instinto de defesa, atiraram-se ao chão e dispararam rajadas para a mata. O soldado contorcia-se com dores: cerrava os dentes nos lábios e tinha os olhos fechados e rosto sujo de terra e de trotil. Na extremidade de uma perna, apenas se viam fragmentos e tendões destruídos por uma mina: um pé tinha desaparecido.

Era o soldado José Joaquim Guerreiro da Silva – a primeira vítima da companhia. O cabo enfermeiro tentava minorar-lhe as dores com injecções de morfina. Pedimos por rádio uma evacuação urgente. Enquanto o helicóptero não chegava, os fumadores puxaram dos cigarros LM.

Passados cerca de 20 minutos, ouvimos um ronco no ar que se aproximava. Era o helicóptero. Nós já tínhamos preparado na picada um local para a aterragem. O ‘heli’ pousou, carregou a primeira baixa da nossa companhia e levantou voo atirando poeira e vento para todos os lados.

"AGORA OS MEUS DIAS PASSAM DEPRESSA DE MAIS"

Carlos Paiva nasceu em São Martinho de Mouros, no concelho de Resende, distrito de Viseu. Fez o curso liceal num colégio interno. Quando passou à disponibilidade, em Setembro de 1972, ficou por Lisboa. “O meu primeiro emprego, em Janeiro de 1973, foi no Ministério da Educação, como 3.º oficial”, recorda Carlos Paiva. Em Setembro, casou-se e, em Julho do ano seguinte, entrou para o Banco Pinto e Sotto Mayor. O casal tem duas filhas. Hoje, Carlos Paiva está reformado da banca, onde trabalhou durante 30 anos. Vive com a mulher no Feijó, na Margem Sul do Tejo. O casal tem duas netas. “Não há dúvida de que melhor que ser pai é ser avô. Agora, sucede o contrário de outros tempos: os dias passam depressa”, diz.

A MINHA GUERRA

Carlos Paiva.Companhia de Artilharia 2918. Moçambique (1970-1972). Hoje, aos 59 anos, no Feijó, Margem Sul do Tejo.

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2008-01-20 - 00:00:00

A minha Guerra: Vírgilio Silva
Só de uma vez perdemos 23 homens

A Companhia de Caçadores 3 estava aquartelada em Guidaje, no Norte da Guiné, mesmo na fronteira com o Senegal. Eu era cabo especialista em transmissões. A companhia era comandada pelo capitão Marques Abreu. Tinha quatro alferes, quatro furriéis e 14 cabos, todos idos da Metrópole em rendição individual, e 129 soldados africanos.

Antes de eu ter chegado, levou a cabo uma operação junto ao Rio Cachéu e, após violento combate, conseguiu apanhar 10 toneladas de armamento aos guerrilheiros. Por causa disso, o comandante-chefe, general António Spínola, respeitava muito a Companhia de Caçadores 3.

O clima era húmido e quente. A vizinhança ‘queimava’. Refiro-me à base do PAIGC em Komombori, no Senegal, a quatro quilómetros do nosso aquartelamento, em Guidaje. Eles tinham lá entre 700 a 1000 guerrilheiros que nos flagelavam diariamente.

As saídas para o mato eram sempre às primeiras horas da madrugada – para o inimigo não se aperceber da nossa movimentação. Recordo-me muito bem do meu baptismo de fogo. Apesar de levarmos guias – sempre desconfiei de alguns deles –, passámos a noite atascados nas bolanhas (arrozais da Guiné) e logo ao nascer do Sol levámos com o primeiro dos cinco ataques do dia. O último foi o mais forte. Os guerrilheiros receberam reforços e fizeram fogo durante 45 minutos. Já estávamos na mata Samboiã, muito cerrada. Só não tivemos baixas por mérito e competência de quem nos comandava: o alferes Fernandes.

Mas como perdemos muitas horas – se calhar a táctica deles era mesmo ganhar tempo –, quando chegámos ao objectivo, o armamento que procurávamos já tinha sido retirado. No regresso tivemos boleia em lanchas da Marinha até Binta, onde estava destacado um pelotão nosso. Depois, fizemos 23 quilómetros a pé até Guidaje. Chegámos com sede e muita fome. Andávamos há quatro dias no mato a ração de combate –e comemos mais outra, pois não havia comida feita.

Numa madrugada, era quase duas horas, um numeroso grupo de guerrilheiros atacou o nosso quartel.

Durante mais de meia hora fizeram fogo com morteiros e rajadas baixas a ‘varrer’ o aquartelamento. Tínhamos que correr para os abrigos e responder ao fogo. Mal pulei da cama tropecei no corpo de um camarada morto. O alferes Gonçalves, outro excelente comandante, não permitia as “rajadas no escuro”. Fazíamos fogo com alvo à vista e tiro-a-tiro. Rajadas só em caso extremo.

Os guerrilheiros tentaram chegar ao arame farpado – e nós reagimos muito bem. Houve baixas dos dois lados. Nós chorámos as nossas e eles levaram as deles. Durante os 25 meses da minha comissão, os guerrilheiros nunca deixaram um ferido ou um morto para trás.

Um dos dias mais tristes e de maior revolta aconteceu num dia de reabastecimento. Nós íamos de Guidaje buscar os víveres que vinham do aquartelamento de Binta, nas margens do Rio Cachéu. Picávamos até meio do caminho ao encontro dos outros, trocávamos as viaturas e voltávamos para trás já com comidinha fresca. Naquele dia tudo correu mal.

As minas espalhavam o terror e a destruição. A caminho de Binta entrámos, sem saber, numa picada minada. Eu tinha avisado o alferes que nos comandava que era mais seguro seguirmos mais metidos na mata. Mas ele não me deu ouvidos e teimou em ir pela picada que era o caminho mais fácil. Quatro camiões Berliet que formavam a coluna explodiram um a seguir ao outro. A Berliet onde eu seguia com o rádio também foi atingida: sofri uma lesão na coluna e o rádio ficou sem antena. Vi-me de repente num inferno: vi camaradas mortos e outros sem pernas. O rádio sem antena não funcionava – a não ser que eu conseguisse chegar a um local mais elevado para tentar transmitir. Foi o que fiz. Daí a um longo bocado começaram a chegar os helicópteros. Eu é que os chamei. Ajudei a carregar os mortos e a socorrer os feridos. Só ali perdemos 23 homens.

"EU TINHA JEITO PARA O RÁDIO E QUERIAM-ME NA TROPA"

Quando terminou a comissão, em Março de 1971, Virgílio Silva ainda hesitou sobre se seguia a carreira militar ou se voltava à oficina de Abrantes onde aprendera a profissão de torneiro mecânico. “Diziam-me que eu tinha muito jeito para o rádio” - recorda, hoje, aos 60 anos. Preferiu a vida civil. Foi recebido pelo patrão de braços abertos.

Era para se casar, mas a pedido do tio adiou a boda até o primo regressar do Ultramar. Casou-se finalmente em 1972. O casal teve uma filha. Em 1976, Virgílio Silva largou o trabalho em Abrantes - e montou a sua própria serralharia, em Ponte de Sor, onde reside. Hoje, além da oficina, tem uma casa de ferragens.

PERFIL

Virgílio Silva. Companhia de Caçadores 3. Guiné (1969-1971). Hoje, aos 60 anos, em Ponte de Sor.

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2008-01-27 - 00:00:00

A minha Guerra: António Fernandes
O meu navio transportou soldados mortos

No dia 17 de Fevereiro de 1967 embarquei no Vera Cruz para Angola. No portaló do navio, as senhoras do Movimento Nacional Feminino distribuíam maços de cigarros com os emblemas do Benfica, Porto e Sporting numa vergonhosa acção psicológica. Cheguei a Luanda em 27 de Fevereiro e embarquei no navio-patrulha Madeira.

Conheci Angola de extremo a extremo: desde o Rio Massabi, que faz fronteira com o Congo Brazaville, até ao Cunene, que faz fronteira com a actual Namíbia. Naveguei pelo poderoso Rio Zaire, desde a foz, Santo António do Zaire, até Noqui, fronteira com o ex-Congo Belga.

Certo dia, estávamos fundeados no Zaire e o pessoal da força de desembarque, da qual eu fazia parte (pois além do meu trabalho da especialidade também era ‘ajudante do enfermeiro’) recebeu ordem para um missão junto à Pedra do Feitiço. Às três da manhã do dia seguinte, uma Lancha de Desembarque Média (LDM) encostou ao nosso barco. E toca a embarcar na lancha, todos equipados como para uma batalha.

O comando mandou um guia negro chamado ‘Kanga’ e um sargento fuzileiro que conhecia a zona. Foi a nossa sorte. Ao chegarmos ao sítio, três horas rio acima, a lancha abre a porta e toca a desembarcar em plena mata. Disse-nos o oficial comandante: “Agora esperamos aqui, que o guia vai abrir caminho”.

Ali estivemos numa pequena clareira da mata, mais de duas horas, à espera que o negro aparecesse. Já clareava e ele não aparecia. E nós, que não tínhamos a mais pequena prática de andar no mato, começámos a pensar que ele tinha ido avisar os guerrilheiros. Veio a fome e vai de sacar do bornal as rações de combate, que estavam estragadas devido ao tempo de armazenamento a bordo.

Lá aparece o ‘Kanga’ de catana na mão. Metemos por uma vereda e assim andámos até chegar a outra clareira. Constava do programa: dormir a noite na mata e, no outro dia, os ‘fuzos’ iriam recolher-nos num dos muitos canais do Zaire. Fizemos as camas com ramos de palmeira. Montou-se a segurança, com as sentinelas separadas de dez em dez metros. Escuro como breu e com os barulhos dos animais selvagens, se não fosse o tal sargento fuzileiro que nos acompanhou, podia ter havido uma desgraça. Gritava um: “Senhor tenente aí vêem os turras”. E o sargento lá acalmava dizendo que era uma pacaça ou um crocodilo na água. Conclusão: se os guerrilheiros quisessem tinham-nos agarrado à mão. Quando apareceram os fuzileiros com os botes de borracha a recolher a malta, foi um alívio. Ao chegar a Kissanga, cheios de fome, até pão rijo com chouriço reles que ia da Metrópole em latas de azeite, soube como um manjar.

Muitas vezes dávamos também apoio logístico, principalmente quando vínhamos para Norte. Numa dessas viagens, na volta de Cabinda para Luanda, trouxemos a bordo alguns soldados vivos que iam a consultas – e outros encaixotados para serem embarcados para Portugal e enterrados nas suas terras.

"AOS CINCO ANOS COMECEI A CARREGAR ABÓBORAS"

António Fernandes nasceu na Aldeia dos Dez, em Oliveira do Hospital, numa família pobre. Foi o terceiro de quatro irmãos. Estudou até à quarta classe e sempre teve que trabalhar no duro. Recorda-se de carregar abóboras aos cinco anos e de se alimentar de “caldo de couve galega e feijão com nada”. Aos 15 anos partiu para Lisboa, onde trabalhou como aprendiz de mecânico. Depois da tropa, trabalhou na Lisnave. Casou, teve um filho. Emigrou para a Venezuela. Aos 40 anos regressou a Penacova. Explora, com a mulher, um café, um minimercado e uma loja de artigos de pesca.

PERFIL

António Fernandes. Navio-patrulha Madeira. Angola (1967-1969). Hoje, aos 62 anos, em Penacova.
"Portugal civilizou a Ásia, a África e a América. Falta civilizar a Europa"

Respeito