A lenda de Biriba
Roberto Porto
— Baduca, meu filho, venha cá...
— Pronto, seu Carlito... O que é que o senhor manda?
— Olha, Baduca: infelizmente você não vai poder embarcar...
— Por que, seu Carlito? Fiz alguma coisa de que o senhor não gostou?
— Não, Baduca. Até que você tem se comportado muito bem...
— Então, por que não posso viajar com o time?
— Lamento, Baduca. Lamento muito... Mas o Biriba vai a São Paulo no seu lugar...
— Mas, seu Carlito!!! O Biriba é um cachorro!!!
— É, meu filho, sei que o Biriba é um cachorro. Mas ele nos ajudou muito a conquistar o campeonato... Fica para outra vez, Baduca...
O diálogo, inusitado mas verdadeiro, ocorreu no saguão do Aeroporto Santos Dumont, no Rio, mais precisamente no dia 16 de janeiro de 1949. Dele participaram Carlos Martins da Rocha, o Carlito Rocha (1894-1981), então presidente do Botafogo de Futebol e Regatas, e o atacante Osvaldo Monteiro da Silva, o Baduca, que não chegou a tomar parte como titular do inesquecível Campeonato Carioca de 1948. Baduca, cabisbaixo, apertado num mal-ajambrado paletó e gravata, pegou um táxi e desapareceu.
A rigor, no entanto, não foi precisamente a mascote Biriba, supostamente um fox terrier, que tomou o lugar de Baduca no avião. Quem seguiu para São Paulo, a bordo do DC-3 da Panair do Brasil, foi o antigo zagueiro alvinegro Macaé, orgulhoso proprietário do cachorro. Protegido pelo todo-poderoso Carlito Rocha, Macaé sentou-se confortavelmente na poltrona reservada a Baduca e, com jeito, acomodou o Biriba no colo. Acostumado aos jogadores, Biriba teve comportamento irrepreensível durante o vôo. E bebeu suco de laranja e comeu biscoitos servidos pelas aeromoças da então mais famosa companhia aérea do país.
Em São Paulo, nas comemorações pelo título de 1948, o Botafogo enfrentou o Santos duas vezes, na Vila Belmiro, além de São Paulo e Corinthians, no Pacaembu.
Nílton Santos e Octávio Sérgio de Moraes, presentes à aventura acima relatada, continuam aí mesmo para confirmar a história. Nílton está com 79 anos e Octávio, um dos artilheiros do Carioca de 1948, fez 81. Infelizmente, o companheiro Geraldo Romualdo da Silva, do JORNAL DOS SPORTS, que acompanhou aquela delegação alvinegra, já não está entre nós.
Das tiras de quadrinhos para os estádios
Há várias explicações para a origem do nome da mais famosa mascote surgida até hoje no futebol brasileiro, no fim dos anos 40 e início da Era do Maracanã. Mas o mais provável é que Macaé, que encontrou o cachorro vagando nas proximidades da Rua Miguel Lemos, em Copacabana, tenha se baseado nas tiras de histórias em quadrinhos. Várias delas faziam sucesso com o público leitor, mas uma das mais lidas era sobre o casal Pafúncio e Marocas, de autoria do americano George McManus (1913-1954). Vez por outra, para azucrinar a boa vida de Pafúncio e justificar fatos injustificáveis em sua casa, surgia um bilhete misterioso: "Biriba esteve aqui."
A partir daí, o carioca passou a atribuir ao indecifrável Biriba de Pafúncio & Marocas tudo o que ocorria de estranho e inesperado na cidade. E foi esse nome que Macaé escolheu para o cachorro que adotou, passando a tratá-lo com o que havia de melhor — evidentemente, de acordo com suas minguadas posses.
Ex-zagueiro do clube e alvinegro de coração, a 25 de julho de 1948 Macaé decidiu assistir ao jogo Botafogo x Madureira, em General Severiano, em companhia do Biriba. O cachorro fez um tremendo sucesso na arquibancada do velho estádio, até porque Macaé chegou cedo, a ponto de testemunhar a goleada de 10 a 2 que os reservas aplicaram no Tricolor Suburbano. A festa ficou completa quando Biriba entrou em campo com a equipe titular, que goleou por 6 a 0. A partir daí, o supersticioso Carlito Rocha tomou-se de amores pelo cachorrinho e passou a exigir a presença dele, com Macaé, em todos os compromissos do clube da Estrela Solitária.
A 26 de setembro daquele ano, o primeiro incidente. A diretoria do Vasco decidiu proibir a presença de Biriba em São Januário. Não foi um ato arbitrário ou reacionário, como muita gente pensou. Os dirigentes cruzmaltinos queriam apenas evitar problemas com a arbitragem, entregue aos ingleses Ford, Barrick, Lowe e Dewine, além dos brasileiros Mário Vianna e Alberto da Gama Malcher. Carlito Rocha, porém, não aceitou a proibição. Entrou em São Januário de paletó e gravata com Biriba nos braços e foi claro diante do porteiro:
"Vocês podem barrar o Biriba, mas o presidente do Botafogo, não..."
A partir daí, Biriba reinou absoluto em todos os estádios do Rio, entrando em campo com a equipe titular e sempre que o jogo estava difícil. Os árbitros ingleses iam à loucura quando a mascote perseguia a bola, ameaçava abocanhar as pernas dos jogadores adversários e retardava o reinício das partidas.
Em 1954, a última aventura do cãozinho sortudo
O último e quase dramático episódio de 1948 ocorreu em dezembro, às vésperas da decisão do título, com o Vasco, que, no início do ano, no Chile, havia se sagrado campeão dos campeões sul-americanos. De repente, em General Severiano, correu a notícia de que torcedores cruzmaltinos, de maneira sorrateira, pretendiam envenenar Biriba. Carlito Rocha (foto) entrou em pânico. E a sua providência não poderia ter sido mais arbitrária: obrigou Macaé a se mudar para uma das torres do palacete de estilo mourisco da Wenceslau Braz, levando o Biriba. Mais: desconfiado ao extremo, segundo relatou o jornalista Sandro Moreyra, Carlito Rocha obrigou Macaé a provar a comida que era servida ao cachorro. Se veneno houvesse, Macaé morreria mas o Biriba estaria são e salvo.
A 12 de dezembro (reparem aí o cabalístico número na história do clube), em General Severiano, o Botafogo derrotou o Vasco por 3 a 1 e conquistou o título carioca — o único obtido no seu estádio. No ano seguinte, Biriba, além de posar ao lado dos jogadores alvinegros no Pacaembu, também esteve várias vezes no Maracanã e em São Januário, freqüentando assim os três maiores estádios brasileiros.
O último registro da presença do Biriba ocorre em 12 de agosto de 1954, numa foto ao lado dos remanescentes fundadores do clube — entre eles Flávio Ramos, Emmanoel Sodré e Augusto Paranhos Fontenele —, durante as comemorações do cinqüentenário do Botafogo. Há 50 anos.
A partir daí, o cachorro nas cores preta e branca não foi mais visto. Mas em todos os estádios do Rio e no Pacaembu deveria haver uma placa:
"Biriba esteve aqui."
Eu não creio em bruxas, mas que elas existem...
Mas fica aí a pergunta: terá sido Carlito Rocha o introdutor da superstição alvinegra? Todos os registros contidos no livro "O Futebol no Botafogo — 1904-1950", de Alceu Mendes de Oliveira Castro, indicam que sim. O calção branco foi adotado em 1948 (8 + 4 = 12) e o Botafogo passou a utilizá-lo seguidamente até 1956, quando Carlito, cismado, já na época de João Saldanha, decidiu retornar aos calções negros (oficiais, segundo o estatuto). E o Botafogo, de calções pretos, foi campeão de 1957 (cinco mais sete, 12).
A partir daí surge no cenário o roupeiro Aloísio, que obriga os jogadores a vestirem camisas de mangas compridas até o bicampeonato carioca sobre o Flamengo, por 3 a 0, no dia 15 de dezembro (olha o mês 12 aí).
O auge da superstição alvinegra acontece a 21 (12 ao contrário) de junho de 1989. Depois de 20 anos, o Botafogo torna a ser campeão, vencendo o Flamengo com um gol aos 12 minutos do segundo tempo. O placar do Maracanã marcava 21º de temperatura e Maurício, camisa 7, aproveitou o cruzamento de Mazolinha, o 14, para pôr a bola na rede rubro-negra. E 7 mais 14 dá 21 — ou seja, 12 ao contrário.
Será preciso mais? Será preciso falar nas meias cinzas, nas cortinas amarradas na sede de General Severiano? No terno marrom que Carlito Rocha usou durante todo o Carioca de 1948? Será ainda necessário dizer que o Botafogo recuperou General Severiano em 1993 (9 + 3 = 12)? Será que é importante dizer que o clube foi campeão da Copa Conmebol ainda em 93? E, por fim, será preciso dizer por que a Fifa incluiu o Botafogo entre os 12 maiores clubes do século 20?
Fonte: Jornal dos Sports