"que se passou em 9 de Abril de 1918 ?"
Aqui está o que Yves Buffetaut no n°27 de Abril-Maio/2008 de 'Batailles-Histoire Militaire du XX siécle' nos desvenda:
"Logo após a perda de fôlego da primeira ofensiva Ludendorff, frente a Amiens, , os alemães atacam de novo em Abril, desta vez entre Arras e Armentiéres.É o começo da batalha da Lys ('La Lys' na terminologia consagrada em Portugal).O primeiro choque abate-se sobre três divisões aliadas: duas britânicas e a 2.Div.Inf. portuguesa.
A frente rompeu-se em poucas horas e a progressão alemã foi ainda mais notoria que em 21 de Março.A situação tornou-se rapidamente dramática para os britânicos porque, ao contrário do mês anterior, eles tem muito pouco espaço de manobra: o mar estava relativamente proximo e Haig temia que os alemães alcançassem os portos da Mancha, dividindo em dois o exército britânico.Mas não é nossa intenção descrever o desenvolvimento desta ofensiva (designada Georgette) que acabaria por 'morrer' junto ao monte Kemmel e nas proximidades da floresta de Nieppe, obrigando de passagem os britânicos a abandonar todo o terreno tão duramente conquistado no Verão anterior, entre Ypres e Passchendaele.
Culpa de quem ?
Desde o fim de Abril de 1918 que rumores contraditórios começam a circular, especialmente na imprensa francesa e britânica, e em breve retomada por jornais portugueses.
A 2Div. portuguesa apanhou com todo o peso da ofensiva alemã, e foi aniquilada em 9 de Abril entre La Bassée e Estaires.Mas em que condições? O rumor mais persistente que apareceu foi que a 40.Inf.Div. recuando diante do assalto alemão, deixara 'desprotegido' o flanco português, por onde o adversário se precipitara destruindo a grande unidade portuguesa.
A polémica sobe de tom, e a tal ponto que uma crise diplomática entre os governos britânico e português foi evitada por muito pouco depois de uma troca de correio oficial pouco sereno entre embaixadores e representantes das autoridades políticas dos dois países.
Descobrimos nos arquivos britânicos uma série de documentos que mostram a importância da crise.Estamos assim em posição de vos apresentar diversos documentos contraditórios, e que emanam das autoridades militares britânica e portuguesa.
O testemunho do general HORNE
O documento seguinte encontra-se nos National Archives de Kew, Londres(cota WO 158/710).Trata-se de um relatório datado de 6/5/1918 e redigido pelo general Horne, comandante da First Army.
Este relatório é essencialmente factual, indicando a posição das duas unidades.Neste caso , o sector da divisão portuguesa está assim delimitado: E de Richebourg-l'Avoué, E de Neuve-Chapelle, E de Fauquissart, S de Pétillon.Ali a divisão esta em contacto com a 40°Div, que mantém a frente de Fleurbaix até E de Bois Grenier, onde começa a 'frente' da 34°Divisão.
«por volta das 4h05, começou um violento bombardeamento em toda a frente, do canal de La Bassée a Bois Grenier, com pesados tiros de obus explosivos e de gas, até a rectaguarda.Este bombardeamento enfraqueceu a partir das 6h30 mas redobrou de intensidade a partir das 8 horas e prosseguiu até às 9 horas quando o assalto principiou.
Antes do ataque principal houve pequenas acções menores de infantaria, patrulhas e 'raids' lançados pelos alemães, aproveitando o bombardeamento e o espesso nevoeiro ;
Por volta das 8 horas, o inimigo conseguiu tomar posição em dois pequenos postos na 'frente' da brigada de direita da 40.Div.
Perto das 8 horas, parece que o inimigo conseguiu apoderar-se da quase totalidade da 'frente' sustentada pela 2Div. portuguesa; e perto das 9H00 conquistara também toda a linha "B" da divisão portuguesa.Não há indicações que as tropas portuguesas tenham oferecido uma mínima e séria resistência.
Os relatórios dos oficiais da missão britânica junto da divisão portuguesa, bem como os oficiais das divisoes 55th, 50th e 40th, na direita, nas linhas de comunicação e na esquerda da 2Div portuguesa, e da artilharia pesada atras do 'front' português, mostram que entre as 9 e as 10 horas da manhã, o grosso das tropas portuguesas passou através da linha
Lacouture- Le Drumez a cerca de 5 Kms da sua 'frente' e qua praticamente a totalidade das tropas portuguesas que conseguiram retroceder se encontrava para lá dessa linha ás 11 horas.
As tropas portuguesas não retrocediam em boa ordem.Elas encontravam-se em fuga, a maior parte sem armas, outros sem sapatos e enfim alguns meio-despidos.Os seus oficiais nada tentavam para os reagrupar, mesmo depois de passarem através das linhas britanicas.
Nalguns casos resistiam mesmo a tentativas de reorganização por parte dos oficiais britanicos.Nessa altura o inimigo não estava em sua perseguição e teria sido possivel reorganizá-los.As tropas portuguesas da rectaguarda quando viram que os da primeira linha não se detinham, fugiram também com eles.╗
Esta é pois a descrição de Horne sobre os acontecimentos na 'frente' portuguesa.Um pouco adiante, no seu relatorio, ele indica que a partir das 8h45 o flanco direito da 40thDivision começou a ser 'ladeada'
pelos alemães que prosseguiam no sector português.
Horne conclui assim o seu relatorio:
"Devido a todos estes detalhes, é evidente que os boatos que correm em Lisboa segundo os quais as tropas portuguesas teriam sido 'batidas' por causa da incapacidade da 40thDiv poder cobrir os seus flancos não tem fundamento.A verdade é que as tropas portuguesas não foram capazes de oferecer uma resistencia séria e fugiram.A fraca resistência oferecida foi tão rapidamente 'varrida' que o flanco direito da 40thDiv foi envolvido antes que as tropas de reserva pudessem intervir.
O comandante e o Estado-Maior do corpo portugues estão bem ao corrente do que se passou que imediatamente após a batalha estavam conscientes do desmoronar das suas tropas;A mudança de tom que se constata agora é devida a mensagem enviada ao governo português pelo Foreign Office e pelos relatórios enganadores que apareceram na imprensa francesa e inglesa."
Assim para Horne a culpa pertence aos portugueses: foram eles que cederam e abriram uma brecha no 'front' aliado, que os alemães imediatamente aproveitaram.Mas a verdade nunca é assim tão categórica.
Os arquivos britânicos detém também um longo relatório do general Gomes da Costa que comandava a divisão portuguesa.E não se duvide que a sua versão é bem diferente da do general inglês.
Introdução á versão portuguesa
O general Gomes da Costa não tenta esconder as fraquezas da sua divisão, e o seu relatório apresenta alguns esclarecimentos, muito interessantes, sobre a situação das tropas portuguesas no momento do ataque.
O general Horne que leu essse relatório, dá aliás algumas indicaçoes novas, que vale a pena serem conhecidas: assim ele indica que o sector da 'frente' detido pelos portugueses era normalmente impraticável para qualquer ofensiva antes do mês de Maio, devido a sua humidade.A planície da Flandres é realmente muito pantanosa, mas em 1918, o Inverno tinha sido particularmente seco e o terreno estaria mais transitável que de costume.
E Horne escreve a seguir:
«Quando as possibilidades de ataque se tornavam evidentes, parecia ser necessário que os portugueses fossem revezados ou, pelo menos, que a a sua 'frente' seja reduzida.Era também evidente que o moral e a condição geral das tropas não eram bons»
Horne explica isso por razões de fundo: a organização portuguesa era deficiente, os oficiais não partilhavam nem a vida nem os rudes serviços dos seus homens.Além disso a divisão tinha necessidade de reforços; os seus efectivos estavam abaixo do normal, especialmente em oficiais pois os pedidos feitos nesse sentido ao comandante do CEP não foram tidos em conta.E enfim, os sargentos e praças nunca obtinham licença para ir a Portugal, enquanto os oficiais partiam frequentemente e muitos deles nem sequer voltavam!
Em Março de 1918 a organização da 'frente' portuguesa deveria mudar, e o sector seria 'encurtado'.Mas as transformações desejadas por Gomes da Costa não estavam ainda em vigor no momento da ofensiva alemã.
O General Gomes da Costa
O Gen. Gomes da costa estende-se muito longamente no seu relatório nos efeitos da artilharia alemã sobre as baterias portuguesas e sobre as trincheiras de primeira linha.Ele escreve por exemplo:
«Debaixo dos tiros de artilharia e das Minenwerfer do inimigo, as nossas primeira e segunda linhas são totalmente destruidas e as 7 horas todo o sector não é mais que montes de terra de onde emergem braços, pernas ou cabeças.
Os homens da guarnição que escaparam ao massacre abrigam-se em crateras entre a frente e a linha B; eles estão evidentemente desmoralizados pela extraordinária intensidade do bombardeamento.
As 7h00, a coberto da barragem de artilharia e de um intenso nevoeiro, a infantaria alemã saiu das trincheiras e avançou para as nossas linhas em sucessivas vagas de assalto, separadas de 120 metros.Cada linha era formada de secções de 30 a 50 homens em linha e dupla fila.O intervalo entre as secções era de 50 a 100 passos e as tropas marchavam a passo.
Cada grupo era precedido de quatro metralhadoras ligeiras que varriam o terreno a sua frente ; o resto das tropas de assalto avançava com fuzil na mão ; os oficiais marchavam á frente dos seus homens e o comandante com o seu bastão.
O arame farpado diante das nossas trincheiras desapareceu totalmente e o inimigo atravessou a primeira linha... então pequenos grupos dispersaram-se para limpar as crateras da linha B, retomando o seu avanço em direcção á linha das aldeias.
As vagas de assalto do inimigo eram sustentadas nos flancos por grossas colunas talvez com a dimensão de uma brigada ; essas colunas penetraram pelos flancos esquerdo e direito da nossa posição junto a nossa junção com as divisões britânicas.
A 55Div estava a nossa direita.Vendo o avanço inimigo e compreendendo que a nossa segunda linha não aguentaria, ela contituiu um flanco defensivo sobre a sua esquerda o que tornou ainda mais fácil a penetração alemã.
Sobre a nossa esquerda, o intervalo com a 40Div. é ainda maior.Para remediar essa situação foi criado um pequeno posto, mas toda a sua guarnição fora morta.»
Nestas circunstâncias, estavam preenchidas todas as condições para um desastre.
Sobre a direita, o PC da 5Brig.Portuguesa é submergido e todos os seus oficiais são mortos ou feridos.A aldeia de Touret é capturada e apenas o ponto de apoio de Lacouture consegue reter os alemães por algum tempo.
No flanco esquerdo, Gomes da Costa escreve que os alemães passam pelas posições britânicas da 40thDiv, no sector de Fleurbaix.Tendo sido atingida a linha B, os alemães voltam-se contra as posições portuguesas.Os restos do 8°Bat° são submersos ; alguns sobreviventes conseguem alcançar o PC do 29°Bat°.O seu chefe, o comandante Xavier da Costa, reagrupa todos os homens que encontra e defende-se passo a passo e recuando para Laventie.Mas os alemães são muito largamente superiores em número e apenas três sobreviventes alcançam Laventie.Xavier da Costa não faz parte deles pois foi morto no caminho.
O 20°Bat° resiste nas suas posiçoes até perto das 8 horas e ao retroceder vai ‘cair’ sobre a linha B que já tinha sido conquistada pelos alemães.
É num ponto de apoio de Lacouture que os portugueses oferecem a sua melhor defesa, com duas companhias do 13°Bat°, uma do 15° e alguns soldados ingleses.Por volta das 9h30 o capitão Bento Roma vendo os alemães aproximarem-se, contra-ataca com a sua companhia.Mas esta carga é desfeita pelo adversário.Entretanto os alemães apenas conseguem por o pé nessa posição por volta das 16h30.E aí apenas encontram mortos…
E agora a conclusão do articulista francês :
Ao ler este relatório de que citamos apenas uma pequena parte, compreende-se que os portugueses ficaram completamente aturdidos pelo bombardeamento alemão e que os britânicos sofreram igualmente bastante.Nestas condições parece-nos que cada uma das divisões se fechou sobre ela mesma, tentando evitar ser submersa, mas ficando incapaz de conservar as suas ligações com as unidades vizinhas.
Nestas condições os portugueses não se comportaram pior que os britânicos e não podem em caso algum ser tidos como responsáveis pela ‘derrocada’ aliada do 9 de Abril.Eles provávelmente resistiram menos tempo, mas a sua divisão era evidentemente mais fraca e menos treinada que as unidades vizinhas.