Jornal de Negócios
Quinta-feira, 29 de Abril de 2004
Golpe constitucional
Por Sérgio Figueiredo
A meio da noite, quando o país andava a matar saudades da Grândola Vila Morena e a celebrar o cumprimento dos três D’s, um golpe constitucional estava a ser desferido por três dos cinco maiores partidos da Democracia portuguesa.
Não sei se esta revisão constitucional consagra a mais importante alteração da Constituição desde a sua aprovação em 1976, como pensa Vital Moreira.
Só sei que a consagração da supremacia do direito comunitário sobre o direito interno é uma alteração demasiado importante para ser negociada na maior das clandestinidades e votada sob pressão pelos senhores deputados da República.
Também é um facto que o país não está muito preocupado com tal mudança. A Constituição da República é uma abstração, que nada diz a ninguém.
É naturalmente muito mais excitante acompanhar as aventuras do major de «Gondomargate» e os casos de polícia protagonizados por Albarran, o ex-jornalista dos anúncios da Colgate.
Mas, já que toda a gente defende consensualmente a Democracia, é preciso avisar que ela foi alvo de um violento ataque. A Europa deixou há muito de ser uma opção.
A partir de agora é, definitivamente, encarada como uma fatalidade. Isso é de uma gravidade extrema. E, embora não pareça, é um assunto que nos envolve a todos.
A começar pelo Presidente da República, que no seu incisivo discurso do 25 de Abril perdeu uma bela oportunidade para denunciar que, também aqui, o rei vai nú. Ou, neste caso, não o rei mas a dona República.
Aliás, a relação geral do doutor Jorge Sampaio com a Constituição da República é bastante ambígua, para não dizer paradoxal.
Sampaio, é justo reconhecer, tem colocado na agenda do debate os temas que são realmente relevantes para o desenvolvimento nacional.
Granjeou prestígio e credibilidade por causa disso. Conquistou o respeito geral, por tomar a iniciativa.
Promove coisas como a inovação, lançou a ideia da Cotec, porque percebeu há muito que o país tem de ganhar mobilidade, tornar-se mais ágil.
Mas, depois, não admite sequer que o texto fundamental está repleto de arcaísmos revolucionários que, eles próprios, impedem que o país entre nesse trilho do progresso.
É hoje muito fácil dizer que a reforma laboral pariu um rato. Mas já ninguém se lembra a quantidade de vezes que o Código de Trabalho «bateu na trave», porque toda a revisão foi feita nos limites estritos da Constituição.
O Presidente tinha, também nesta revisão agora concluída, a obrigação de repreender o processo e os métodos seguidos pela esmagadora maioria da Assembleia da República.
Porque é isso mesmo que está em causa, não tanto a substância das alterações em si mesmas.
Esta revisão deveria, repito, ter servido para suprimir grande parte das restrições na componente económica da Constituição.
Mas, naquilo que foi mexido, foi um erro crasso não promover um debate mínimo - já para não falar do referendo que a deveria ter precedido. Vamos pagar caro por isso.