POR QUE RAZÃO SE SUICIDAM POLÍCIASAno negro na PSP e GNR. Uma militar da GNR deu ontem um tiro na cabeça, aumentando para 14 os suicídios este ano nas forças de segurança. Agentes que já desejaram a morte contam ao DN as suas razões. Os polícias recorrem cada vez mais a psicólogos e a GNR procura causas junto de pessoas próximas das vítimas
Tinha 26 anos e apenas quatro meses de serviço na GNR da Mealhada. Solteira, vivia com os pais perto do posto militar, onde ontem de manhã se suicidou com um tiro na cabeça. É o 14.º caso entre as forças policiais este ano. As razões são desconhecidas, mas alguns dos que tentaram pôr termo à vida relataram ao DN o que os levou a desejar a morte.
"Os polícias não sabem como sair deste buraco em que se encontram, com tantos problemas financeiros por terem salários muito baixos, trabalho em excesso, falta de tempo para descansar nem acompanhar o crescimento dos filhos. E não têm apoio da instituição PSP nem da família, que deixa de os querer por estarem sempre ausentes. Acabam por ficar sozinhos." Maria (nome fictício, tal como o dos restantes agentes nesta reportagem), elemento operacional da PSP já há 25 anos, diz ser tudo isto que está na origem da onda de suicídios que este ano mancharam a GNR (11 casos) e a PSP (três). E deixa um alerta: "Infelizmente, ainda vai haver mais situações destas, porque pensam que o suicídio resolve todos os problemas. Acaba-se tudo..."
Maria
"Porcaria à face da terra"
"Como é que se percebe estes casos todos de suicídio e de conflitos familiares que acabaram em homicídios praticados por profissionais de polícia?", pergunta Maria, referindo-se a uma agente da PSP que seria vítima de maus tratos e, em Setembro, em Sacavém, matou a tiro o marido ex-polícia. Num tom envergonhado, Maria relata o seu caso ao DN: "Eu própria já me tentei suicidar. Foi há muitos anos, porque era vítima de violência por parte do meu marido, também polícia, pois achava que eu lhe era infiel. Como estão sempre a lidar com casos de infidelidade, os polícias tornam-se desconfiados e pensam que se pode passar o mesmo em casa."
"Eu ficava tão humilhada com aquilo que nem tinha forças para reagir. Uma pessoa sente-se a maior porcaria à face da terra. Por isso, entendo bem estas situações e apoio bastante as mulheres que apresentam queixa", confessou.
De baixa psiquiátrica há mais de um mês, Maria diz não voltar ao serviço enquanto não estiver em condições: "Trabalho no terreno e não posso tomar decisões erradas. Estamos a lidar com armas, criminalidade violenta, bairros problemáticos, situações muito delicadas. Este trabalho exige sanidade mental a 100%. Muita gente depende da minha capacidade de resposta."
"Sinto-me muito fragilizada como pessoa e profissional. Mas foi a própria instituição que me levou a isto, porque não dá incentivos. Nem que fosse só por palavras para reconhecer o trabalho que se fez e dar apoio moral às pessoas", referiu.
Com os olhos rasos de lágrimas, lembrou ter trabalhado dois anos com crianças vítimas de violação: "Isso afecta psicologicamente uma pessoa. E a PSP não vê isso. Só demonstra falta de respeito. É isso que me revolta. Retirarem o valor de uma pessoa. Não consigo aceitar isto."
"Já dei muito à polícia e a polícia a mim deu- -me zero. Foi aqui que aprendi a ser mulher. Dei a minha vida toda à PSP. E pela PSP deixei de dar atenção à família e aos filhos. Tudo para defender a bandeira nacional e a minha farda", diz, com uma tristeza no olhar. Desiludida, frisa que "o sonho comanda a vida. E quando uma pessoa deixa de ter sonhos, a vida deixa de fazer sentido".
"Eu perdi todos os amigos que tinha antes de entrar para a PSP, porque deixou de haver tempo para manter essas amizades. Há um corte com o mundo civil e em toda a vivência. Aos polícias só restam os polícias. Não há horas para comer, dormir nem para nada. Faço um turno, mas pode-se prolongar por mais de sete horas se houver uma detenção ou outra ocorrência", explica.
"Estamos em situação de stress extremo. E a realidade actual é muito mais violenta do que aquilo tudo que nos ensinaram na escola de polícia", salienta. Critica a ideia feita que "se és polícia, tens de ser forte em todos os aspectos. Mas isso não é verdade. Somos humanos e temos os nossos limites, como as outras pessoas".
Queixa-se que "não há apoio na corporação nem no exterior, porque a sociedade civil cada vez exige mais de nós".
"Temos um gabinete de psicologia que trabalha para a polícia, mas não com os polícias", denuncia Maria. E deixa um alerta: "Cada pessoa que pede apoio psicológico fica automaticamente queimada e à mercê da instituição."
Por isso, "estou a ser acompanhada pelo psicólogo e psiquiatra particulares. Eles estão também a tratar imensos elementos da PSP com muitos problemas. Há muitos agentes que não vivem, só sobrevivem, porque não têm tempo livre nem dinheiro. Só ganham 700 ou 800 euros por mês".
Alerta que "começa a haver uma revolta silenciosa entre os polícias. Há agentes com meia dúzia de meses na PSP, que já estão tão desanimados com isto, que só desejam arranjar outro emprego e largar a PSP. Na minha esquadra, já ouvi mais de 40 agentes novos a dizerem isso".
João
"Preso como um animal"
"Tenho 30 anos de PSP e nunca vi uma situação igual com tantos suicídios." Quem o diz é João, que já se encontra de baixa psiquiátrica desde 2005 e tentou suicidar-se no Outono de 2007. "Entrei em baixa psiquiátrica pelo grande desgaste em que me encontrava. Entretanto, foi-me detectada doença bipolar e a corporação não me ajuda em nada. Por isso, muitos como eu tentam pôr termo à vida", refere João, que tem uma certeza: "Se pudesse voltar atrás, não teria ingressado na PSP."
Em 2007, a junta médica superior da PSP considerou-o "apto para retomar o serviço", enquanto a sua psiquiatra particular dizia que não estava em condições: "Fiquei muito transtornado com aquilo tudo. Estava em casa e não sei o que me passou pela cabeça. Ingeri grandes quantidades de medicamentos. Senti-me muito mal e, quando me dirigi à esquadra para pedir auxílio, peguei numa coisa qualquer e parti as vidraças das instalações."
"Detiveram-me por danos voluntários. Estive oito horas detido na esquadra e algemado como se de um bandido se tratasse. Fui levado a tribunal e constituído arguido por ter feito um prejuízo de 190 euros", contou João, considerando "inadmissível" a situação: "Em vez de me ajudarem, porque estava mal psicologicamente, fui detido e tratado como um animal irracional. Se o mesmo tivesse sucedido com um cidadão comum, ele teria sido assistido e conduzido aos serviços médicos."
"Não recorro aos serviços de psicologia da PSP, porque não confio neles. É um sistema que tem de ser remodelado para trabalhar para e com os polícias e não apenas para a PSP", sublinha o agente.
E denuncia outra situação que classifica de grave: "Estamos a ser julgados por duas entidades, que é o tribunal e a própria instituição. Há cerca de 50 processos internos pendentes contra mim."
"Sinto que a minha vida desapareceu. Perdi a minha família, os meus amigos. Tive de vender a casa para pagar aos advogados", queixa-se João.
Manuel
"Dar um tiro na cabeça"
"Estive de baixa psicológica durante um ano, devido a pressões da hierarquia. Puseram-me o telemóvel em escuta e descobri que estava a ser investigado", conta Manuel, com 23 anos de serviço operacional na PSP.
"Prejudicavam-me nas escalas, trocavam-me turnos e folgas, ficava sem tempo para a família, nem para a mulher nem para o filho. Sentia-me tão mal, que só queria abandonar a polícia e arranjar outro trabalho", confessou ao DN.
"Até cheguei a pensar em fechar-me na casa de banho da minha esquadra e dar um tiro na cabeça, porque aquilo poderia ser considerado acidente em trabalho. Assim, a mulher tinha direito a receber uma pensão e a casa ficava paga pelo seguro", explicou o mesmo agente.
"Na zona onde moro, a população é que se foi apercebendo de que havia algum problema comigo. Deram-me apoio, porque a minha mulher precisava de ser internada no hospital. Pedi ajuda aos serviços sociais da PSP e não fizeram nada. Os vizinhos é que me emprestaram dinheiro para ela poder ser tratada", recordou, deixando uma crítica: "Quando há um assalto, vou sempre a correr para tomar conta da situação. E a instituição não nos ajuda."
Em termos salariais, diz que "é triste não poder comprar uns ténis ou umas calças ao filho, porque tem um pai que é polícia e ganha mal".
Quanto ao gabinete de psicologia da PSP, "faz relatórios contra mim e a favor da instituição. Por isso, tenho de recorrer à psicóloga particular", salienta, denunciando mais outro problema: "Antigamente, éramos recrutados e sabíamos que tínhamos uma carreira e podíamos concorrer e progredir. Agora não. É preciso estar nas boas graças do chefe, senão nunca se sobe..."
José
"Antecâmara da morte"
José já presta serviço operacional na PSP há 23 anos e é considerado um veterano que sabe lidar com situações de risco de suicídio. "Tenho servido de elo de ligação entre eles - os colegas que pensam em suicidar-se - e as soluções dos seus problemas", explicou ao DN, alertando que "tem aumentado assustadoramente o número de casos destes".
"E a principal razão é a falta de descanso. Os polícias ganham mal e, para terem mais algum dinheiro, têm de fazer serviços gratificados, ficando sem tempo para descansar", denuncia.
"No outro dia, elementos do meu grupo entraram de serviço às 00.30. Às 04.30 detiveram três indivíduos por assalto a vários estabelecimentos comerciais e depois estiveram a fazer o expediente até às 21.30, porque aquilo era complicado e envolvia uma série de casos. Depois voltaram a pegar ao serviço à meia-noite até às 06.30. Às 10.00 tiveram de ir para tribunal com os suspeitos e aquilo prolongou-se até às 19.00. Portanto, estiveram praticamente dois dias seguidos a trabalhar sem descanso", relatou.
Salienta que "a PSP não paga horas extras nem nada. Tiveram de almoçar e jantar fora pagando do seu bolso, enquanto as mulheres estavam em casa à espera deles com as refeições já cozinhadas".
"Estes e outros problemas vão-se acumulando e chega-se a um ponto em que a pessoa começa a descarregar no elo mais fraco e mais próximo, que é a família. Ou termina no suicídio, porque não vê outra saída", comenta o mesmo agente da PSP.
José traça o filme que culmina nesta tragédia: "O polícia vê o comandante a criticá-lo por se atrasar ou andar cansado. A família a queixar-se e a sociedade a exigir cada vez mais dele. Vai-se encolhendo mais e mais e acaba por se colocar na antecâmara da morte."
Na última semana de Setembro, "um sub-chefe de Oeiras tentou suicidar-se. Ia lançar-se de uma falésia do cabo da Roca (Sintra). Felizmente, uma patrulha da GNR passou ali por acaso e evitou o suicídio. Ficou de baixa psiquiátrica".
O mesmo agente considera que "antigamente, os polícias tinham mais capacidade de sofrimento. Mas, agora, os novos são mais frágeis e vulneráveis a nível psicológico. Vão-se abaixo mais facilmente".
Pedro
"Bomba de rastilho curto"
"O grande stress laboral de sobrecarga de trabalho é uma das principais causas que está a levar muitos agentes à baixa médica, a recorrer às consultas, a tentar o suicídio e a cometer violência doméstica", afirmou ao DN um elemento do Sindicato dos Profissionais de Polícia, que fez um estudo sobre esta problemática.
Na origem destas crises, Pedro diagnosticou também "os baixos salários, falta de progressão na carreira e deficiências no gabinete de psicologia da PSP, que é uma fachada, porque só funciona depois de as desgraças acontecerem. Deviam era tomar medidas de prevenção para não sucederem".
"Não há horário de trabalho estipulado", referiu, dando exemplos: "Num dia, o meu horário era das 08.00 às 16.00. Ligaram na véspera, às 16.00, a informar que, afinal, no dia seguinte só iria entrar às 21.00. Tive de reorganizar toda a minha vida. Noutro caso, dois elementos iam entrar às 16.00, mas mudaram-lhes o turno para as 18.00 sem os avisarem. Tiveram de ficar duas horas na esquadra à espera de entrar ao serviço."
Com estas alterações todas, Pedro explica que "por vezes há polícias que só dormem uma ou duas horas, porque, além do horário normal, têm de fazer serviços gratificados e operações de noite e madrugada".
Esclarece que "a resolução destes problemas de turnos não implica mais dinheiro nem gastos. Basta regulamentar os horários para permitir aos polícias terem uma vida social".
Alerta que "os agentes mais novos vêm lá das terras deles e ficam em Lisboa abandonados. Um vivia num quarto com um colega. Só conseguia ir a casa uma vez por mês. Entretanto, o colega casou-se e mudou de casa. O outro ficou sozinho e não aguentou a solidão. Tentou suicidar--se na rua. Estava num banco de jardim com uma pistola na mão. Polícias encontraram-no, desarmaram-no e depois ele foi colocado de sentinela à porta da esquadra. Não teve apoio do comando nem acompanhamento psicológico. Mais tarde, voltou a ser considerado apto e devolveram-lhe a arma de serviço. No dia seguinte foi encontrado morto com um tiro na cabeça, no quarto onde vivia sozinho".
Salienta que "há um número muito maior de situações mais graves que os suicídios: os casos de violência doméstica praticados por polícias. E a dor das suas vítimas vai-se prolongando por muito tempo". Na sua opinião, "um polícia é uma bomba com rastilho curto. Quando chegam ao limite, uns dá-lhes para se suicidarem e outros para agredirem em casa".
Conclui que "tentar prevenir a criminalidade com polícias que trabalham 24 horas por dia não é sistema. Estão a trabalhar em cansaço e sem condições para o fazer".
http://dn.sapo.pt/2008/11/12/sociedade/ ... icias.html