Egipto. O que está à vista? Mudança de liderança ou de regime? Alexandre Reis Rodrigues Algo de importante vai certamente mudar no Egipto, na sequência da onda de desobediência civil em que o país mergulhou, como que seguindo a insurreição que depôs na Tunísia o Presidente Ben Ali. Não é previsível, porém, o que acontecerá no Cairo. Pode haver apenas uma mudança de liderança, sem modificação de políticas, ou uma alteração radical na postura externa pró-ocidental do País, em paralelo com reformas internas. Numa situação extrema, poderá surgir um Estado islamita, hipótese com que sonham os radicais islamitas mas que terá a oposição da hierarquia militar.
Mubarack pode recuperar o controlo do país, com a ajuda das Forças Armadas, circunstância em que nada mudaria; esta possibilidade já pareceu mais remota do que se apresenta hoje. Noutro cenário, pode ser compelido a abandonar o poder pela hierarquia militar. Esta conseguiu, por algum tempo, ter o controlo da situação, depois das forças de segurança o terem perdido e terem sido retiradas de cena por ordem do Ministro de Interior, para deixar o assunto ser resolvido pelo Exército. Foi uma espécie de presente envenenado, para deixar claro que o Exército sozinho também não conseguirá repor a normalidade. De facto, a situação voltou em breve a roçar o caos, a situação actual. Se continuar a deteriorar e o clima de boa receptividade que os militares usufruem junto da população desaparecer, estes poderão sentir-se compelidos a “convencer” o Presidente a afastar-se em nome do regresso à ordem. Entretanto, admite-se que as forças de segurança vão regressar para uma acção decisiva com o apoio do Exército.
Em qualquer caso, com grande probabilidade, será das mãos das Forças Armadas, mais do que no Governo, que se encontrará uma saída para a crise. O Governo acolheria de bom grado um claro envolvimento dos movimentos islamitas nas manifestações, em especial a Irmandade Muçulmana, o que confirmaria as acusações que Mubarack lhes faz e lhe permitiria actuar sem contemplações e, provavelmente, com uma regular base de apoio. A oposição islamita, no entanto, não lhe faz a vontade; embora muito longe de ter uma frente unida, está a actuar cautelosamente, eventualmente nos bastidores. A sua participação nas acções de rua faz-se sem qualquer associação visível com a Irmandade Muçulmana.
Quem dá a cara são sobretudo os jovens, os que sofrem mais com a crise de desemprego (a rondar no seu caso 40%, enquanto que em termos médios anda pelos 10%) e constituem cerca de 60% da população (abaixo dos 30 anos). A questão é muito séria; segundo um estudo da Population Action International 80% dos conflitos mundiais entre 1970 e 1999 começaram em países com mais de 60% de jovens. Uma população jovem, de facto, tanto pode proporcionar progresso como problemas; depende das oportunidades que se lhes dêem. No entanto, para haver uma mudança vai ser preciso mais do que os jovens e as manifestações; vai depender de como os acontecimentos serão aproveitados pelas organizações políticas e de como estas se entenderão com as Forças Armadas. El Baradei, ex-director da Agência Internacional de Energia Atómica, que entretanto regressou ao país para liderar a oposição, já disse que vai entrar em contacto com os militares.
De facto, estes têm sido o garante da estabilidade nacional desde 1952, data da fundação da moderna República, quando Nasser, coronel do Exército, depôs o regime monárquico que o Reino Unido apoiava. Desde aí, a Presidência do País não mais saiu das mãos dos militares; com Sadat até 1981 e desde aí com Mubarak, oficial general da Força Aérea. A entrega do cargo de 1º Ministro a um ex-Chefe de Estado Maior da Força Aérea, Ahmed Shafiq, numa tentativa de Mubarak de retomar o controlo não pode deixar de ser lida nessa perspectiva. Como se esperava, a medida não resultou porque os descontentes querem romper com o passado.
Poderá ser de novo das “fileiras” que sairá um novo líder se, de facto, a situação evoluir para a retirada de Mubarak; para alguns observadores, as Forças Armadas estão a preparar condições para a sua retirada. Quanto tempo vão esperar depende da forma como a situação evoluir; se a população se começar a virar contra os militares, então não haverá grande espera. Gamal Mubarak, filho do Presidente e há muitos anos referido como o “sucessor”, não tem, de momento, qualquer hipótese séria de ser escolhido pelo Partido Nacional Democrático. Entretanto, consta que Mubarak e Habib al-Adly, o ministro do Interior, os dois alvos principais dos descontentes, já negociaram a sua continuação no poder, pelo menos nos tempos mais próximos.
Obviamente, o assunto não é apenas interno do Egipto, o maior país da região e como que o centro de gravidade do mundo árabe; a crise tem uma dimensão regional para todo o Médio Oriente e particularmente para o conflito entre Israel e a Palestina. Enquanto se mantiver o acordo de paz assinado por Sadat, há mais de 30 anos, os outros países árabes também não hostilizarão Tel Aviv. Mas se houver uma alteração radical de política externa egípcia pode ficar em causa o triângulo EUA-Israel-Egipto e agravar-se-ão as dificuldades de Washington em tentar manter a situação sob controlo.
El Baradei pode ser uma esperança para o Ocidente, como alternativa à eventual chegada ao poder do Irmandade Muçulmana o que seria um enorme revés para o Ocidente em geral e para os EUA em particular. Veremos se é uma boa hipótese para os egípcios e se consegue o apoio das Forças Armadas. No entanto, uma mudança para um regime interno moderado, com prováveis cedências à oposição islamita, pode encerrar o assunto apenas por breve período. O registo histórico de situações semelhantes, como lembra Leslie H. Gelb (Council on Forein Relations), mostra que, muito frequentemente, se os moderados não têm sucesso a curto prazo, seguem-se outros ditadores.
Jornal Defesa