Uma leitura do poder naval chinêsAlexandre Reis RodriguesAonde pretende chegar, exatamente, a China a caminho do estatuto de potência global é algo sobre o que se especula muito, entre vários tipos de preocupações que Pequim não consegue dissipar, não obstante os esforços que faz nesse sentido. Julgo, no entanto, que uma análise do processo de transformação em curso na estrutura do seu poder naval ajude a perceber as aspirações chinesas. É o campo militar onde Pequim mais tem apostado no passado recente, presumivelmente, sob a convicção de que essa é a via que mais pode ajudar o regime a afirmar-se no exterior, em termos políticodiplomáticos, com risco reduzido de gerar reações negativas.
Talvez o termo transformação não seja o mais adequado para descrever a mudança uma vez que a configuração tradicional “anti-invasão” do seu sistema de forças navais permanece, no essencial, inalterada com uma continuada aposta numa numerosa componente de submarinos convencionais, entre outros sistemas de armas que servem o mesmo tipo de propósito. A recente entrada ao serviço de um porta-aviões é um elemento marcante do processo porque denuncia a ambição de uma capacidade de projeção de poder mas a grande alteração vem na área do que os anglo-saxónicos chamam o “reach” (alcance) de uma marinha, ou seja a capacidade de operar sem restrições logísticas longe das bases.
Este trajeto patenteia de forma inequívoca o propósito de concretizar a ideia “uma marinha global para uma potência global”, o que revela o abandono da aposta exclusiva numa estratégia defensiva, como é o caso da opção “anti-invasão” atrás referida. Não é oporta-aviões “Liaoninl” - CV-16 (ou os que se lhe seguirão) que consumará esse propósito, embora faça parte dele. O elemento-chave é a cadeia logística que está metodicamente a ser construída para apoio das operações navais a uma escala global, em duas componentes: uma rede de “facilidades de apoio” (para usar a terminologia chinesa que evita o termo “base naval”) e uma frota de navios auxiliares de reabastecimento e apoio logístico que posiciona a China como a segunda maior potência naval neste campo.
Não serão, certamente, estas mudanças que farão a China perder o estatuto de potência continental, mas vão permitir que passe a ter a valência dupla de potência marítima, entre as mais importantes em todo o mundo. Perceber de que forma pretende Pequim fazer uso desta nova capacidade ajudará a compreender como ambiciona posicionar-se no mundo.
Se Pequim olhar para o que diz a história – com certeza que não deixa de o fazer – terá pela frente os casos de duas potências continentais (França e a Alemanha) cuja aposta complementar no poder naval nunca lhes chegou para vencerem a potência marítima da época (o Reino Unido), tendo ambas se visto obrigadas a reverter para uma estratégia naval defensiva.
Pequim está obviamente ciente de que apesar dos progressos que tem feito no campo naval continua a uma distância dos EUA, quer em termos tecnológicos, quer em termos de treino e experiência, que não lhe permitirá ter qualquer veleidade de disputar o controlo do mar aos EUA. Não sendo provável que esta situação se altere proximamente e tendo em conta as atrás referidas lições da história, Pequim tentará, certamente, evitar ver-se confrontado diretamente com a hegemonia naval americana.
É um desafio que precisa de ser gerido com cuidado porque se, por um lado, existe essa preocupação, por outro lado, está a pressão da defesa de interesses que cada vez mais são globais, das disputas territoriais sobra arquipélagos cuja soberania é reclamada por países que esperam a proteção dos EUA e ainda dos conflitos de interpretação de direitos em águas de jurisdição, tema em que Pequim reivindica prerrogativas que a maioria dos países não reconhece estarem consagrados na Convenção do alto mar. Este conjunto de circunstâncias torna mais provável a possibilidade de conflitos, não obstante os esforços que a China e os EUA têm
estado a fazer para manutenção de uma relação militar estável.
Pequim tem reafirmado, consistentemente, a sua política de não-interferência nos assuntos internos de outros países, opondo-se, regra geral, a intervenções militares externas como forma de resolução de conflitos. Curiosamente, porém, o Presidente Xi Jinping declarou-se agora empenhado em criar uma capacidade de intervenção no exterior (força de manutenção de paz com 8000 efetivos), propósito anunciado na última Assembleia Geral das Nações Unidas.
Como interpretar esta mudança de política externa é um assunto em aberto. Numa perspetiva otimista, pode corresponder a um desejo sincero de promover a paz no mundo, flexibilizando a sua postura tradicional e respondendo ao desafio de passar a ter um papel ativo e responsável (responsible stakeholder) na manutenção da paz do mundo. Numa perspetiva realista, pode visar a criação de oportunidades para melhorar a imagem externa ou projetar poder para a proteção e defesa dos seus interesses distantes, sem suscitar suspeitas ou desconfianças sobre outras possíveis intenções.
A China não chegará ao patamar de potência global sem meios militares que lhe permitam gerir as crises e conflitos em que pode ficar envolvida, onde quer que surjam. Mas tem um grande desafio pela frente. Conciliar uma postura favorável à consolidação de um contexto internacional estável, que facilite o seu crescimento económico e desenvolvimento, com a disponibilidade de uma capacidade militar que lhe garanta que a proteção e defesa dos interesses importantes, quando estiverem em causa, prevalecerão sobre tudo o mais.
É neste contexto que se deve interpretar a prioridade que Pequim tem vindo a dar ao poder naval. É o que melhor funciona como instrumento de política externa para exercer influência nas zonas onde existem interesses importantes que precisam de ser acautelados. É também o que lhe oferece mais vantagens, graças ao menor risco de provocar tensões internacionais e à sua capacidade de “dar tempo” à procura de soluções, sem prejuízo do sempre presente elemento potencial de coação. Em resumo, uma postura que precisa de ser acompanhada cuidadosamente.
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http://database.jornaldefesa.pt/crises_e_conflitos/china/JDRI%20369%20191215%20china.pdf