Catalunha. Alguns pontos de reflexãoAlexandre Reis RodriguesA despeito dos progressos na democratização do mundo, da crescente integração económica, da redução de barreiras alfandegárias, e da forma cada vez mais estreita como os países estão interligados em várias áreas - evoluções introduzidas pela globalização -, o mundo não se tornou mais homogéneo. Também não se confirmou a visão de que todas essas alterações levariam a um declínio da importância das identidades nacionais (entrada numa era de “post-national identity”
Esta conclusão é relativamente consensual. Para a grande maioria de observadores, os estados-nação continuarão a ser vistos como o pilar da ordem internacional em que vivemos e, como tal, qualquer ameaça de fragmentação é encarada, salvo exceções claramente fundamentadas, como um risco de instabilidade que é preciso evitar. No campo da minoria dos que não pensam do mesmo modo, um dos destaques vai para Parag Khanna que defende uma tese diametralmente oposta.
Estes dois extratos resumem o essencial do seu pensamento:
«The world of nation-states makes maps apear neat and tidy, but a map that appreciates
legitimate differences would be far more humane. … Self-determination is not a backward
tribalism but a mature evolution: Remember that territorial nations are not our “natural” unit;
people and societies are. We should not despair that seccessionism is a moral failure, even if it
recognizes innate tribal tendencies. A devolved world of local democracies is preferable to a world
of large pseudo-democracies. Let the tribes win».
«National sovereignity and territorial integrity are no longer sacrosanct principles; in fact, they
can be highly immoral when populations are besieged in Sudam and Syria, when drought-stricken
climate refugees aren’t relocated to fertile terrritories …. There is no higher morality than allowing
people to move wherever they need to, whether to avert natural disasters, escape conflict, …»O debate deixou de ser apenas académico. A maioria que defende a tese do estado-nação encontra-se, presentemente, perante o alarme de um possível movimento de secessões que, a concretizar-se, alteraria drasticamente o panorama geopolítico mundial, logo a começar precisamente na Europa. As suas motivações variam, de um modo interligado, entre, por um lado, impaciência e descontentamento da parte de algumas comunidades em relação aos respetivos governos centrais e, por outro, aspirações de afirmação de identidade, que não veem ficar satisfeitas no âmbito do estado em que estão inseridas.
O assunto pode tornar-se extremamente sério. A concretizar-se, constituirá um enorme revés para o projeto de integração europeia, campo em que a Europa precisaria de ir mais longe para conseguir competir com as grandes economias mundiais e manter os padrões de riqueza e bem-estar que alcançou. Joschak Fisher chama-lhe um “absurdo histórico", considerando que a Europa está a ser atacada por dentro.
Estranhamente, porém, a liderança europeia prefere a tese de que a tentativa independentista da Catalunha é apenas do âmbito nacional espanhol e que a Europa nada tem a dizer, para além do apelo – na minha opinião, deslocado ou infeliz, para dizer o mínimo - de que a Espanha use «a força do argumento e não o argumento da força». Afinal, quem terá razão é Gideon Rachman, colunista do
Financial Times, quando diz que a União Europeia não está a mostrar-se preparada, quer em termos políticos, quer no plano intelectual, para lidar com a crise em Espanha.
O conceito de autodeterminação, entendido como o direito de qualquer povo de formar o seu próprio estado, é outro ponto de debate entre a visão dos que o encaram como um direito inalienável e imparável e os que chamam a atenção para o perigo de usá-lo como um princípio primário sem procurar ver um pouco além. A discussão é pertinente porque a expectativa de que fosse uma fonte de estabilidade para o mundo não se confirmou. Tirando o caso da Checoslováquia, em 1997, que conseguiu gerir a secessão de uma forma totalmente pacífica, dando origem à República Checa e à Eslováquia, todos os outros têm tido um processo longo e muito conflituoso.
Joseph Nye e Robert Hass, estão no lado dos que recomendam cuidado defendendo que a aplicação do conceito não pode limitar-se a uma simples votação entre os iniciadores do processo, para tornar claro que é esse o caminho que uma maioria “clara” quer seguir. Se o princípio for acionado sem o acompanhamento de um conjunto de padrões mínimos a observar pelos povos que aspiram à sua aplicação pode facilmente levar ao caos e instabilidade no mundo. Nye considera que, se aplicado apenas nesses termos, pode tornar-se moralmente ambíguo.
O risco de caos é, de facto, elevado porque estados “homogéneos” - sem comunidades inclinadas a reclamar autonomia, como é o caso de Portugal - serão menos de 10% em todo o mundo. Todos os outros, em maior ou menor grau, não estão imunes a essa possibilidade.
O assunto não pode ser tratado pela forma simplista da realização de um referendo entre os primeiros interessados, movidos por sentimentos (obviamente respeitáveis) mas sem ter em conta a procura de alguma racionalidade e realismo, por exemplo, nos seguintes pontos: 1. Tem a independência assegurada um nível, pelo menos mínimo, de viabilidade política e económica Obviamente, são precisas as duas; se não houver a primeira, haverão obstáculos ao acesso aos mercados económicos e financeiros internacionais e o colapso será quase inevitável; 2. Se o assunto tem profundas implicações para toda a população do estado nação que se debate com um problema de sucessão, não deverão ser todos ouvidos?; 3. Se a iniciativa pode ter sérias implicações regionais, ou for suscetível de dar origem a um efeito dominó que possa levar a uma desintegração da ordem local existente, não deverá ser ponderado também nesse âmbito?
Nesse eventual contexto – que, aliás, é o existente - não deveria a União Europeia avaliar seriamente esse risco e demarcar-se claramente de tudo o que possa acentuá-lo? Que se passou com o referendo na Catalunha? Teve em atenção as considerações acima sugeridas? Está a região sob um estado tal de opressão e desrespeito por direitos elementares, por parte das autoridades centrais, que não restou aos seus dirigentes enveredar por um confronto aberto de desobediência às autoridades centrais? Era o assunto tão premente que justificava desafiar a ordem constitucional e a ordem democrática, avançando com um referendo cuja possibilidade tinha sido excluída Constituição de 1978 e que se realizou sem a observação dos padrões de exigência habitualmente observados na União Europeia e na OSCE para ser considerado livre e justo?
O Governo Regional da Catalunha ao levar a solução dos problemas de que se queixa pelo caminho da procura da independência - que nem sequer tem um inequívoco apoio da população da região - está a colocar o assunto num patamar em que é quase impossível encontrar uma base de entendimento. Pior, cujo desfecho dificilmente será pacífico. Sabendo perfeitamente que o Governo central não pode abdicar de fazer cumprir a Constituição está a procurar a via do confronto.
Mas esta é apenas uma faceta do problema. A outra diz respeito ao Governo Central em Madrid. Tem-se perguntado porque não autoriza o referendo. Não só não pode pelas razões atrás apontadas como nem sequer pode prometer vir a fazê-lo porque a decisão de uma eventual alteração da constituição depende apenas do poder legislativo.
Poderia, no entanto, dispor-se a fazer compromissos no campo da autonomia, onde há vários assuntos que se arrastam. Não é evidente, no entanto, que Rajoy esteja nessa linha. Parece esperar - presume-se - que das eleições prevista para 21 de dezembro saia um governo regional pró-unidade. É um jogo arriscado, porque existe uma maioria - que andará um pouco acima dos 60% - que aspira por maior autonomia, não necessariamente a independência. É prematuro tentar ler as sondagens que têm vindo a ser feitas e, aliás, se mostram contraditórias.
Resta saber se o desenvolvimento que esta crise precisa de ter, para sair da situação difícil em que se encontra, pode ser alcançado com os mesmos protagonistas. Do lado independentista, parece que não. Puigdemont aceita as eleições de 21 de dezembro no contexto de um caminho para independência, uma forma de dizer que não se contenta com maior autonomia. Quer tudo de uma forma irresponsável e sem qualquer respeito pela metade da população catalã que não aprova as suas exigências. Aliás, parece apenas interessado em prolongar o confronto, não reconhecendo a sua demissão e apelando à resistência. Do lado de Madrid, não é claro que tipo de disponibilidade haverá para admitir que não chegará invocar a Constituição e recorrer aos tribunais para resolver a situação. Poderá ter que se esperar por um futuro governo central para considerar o assunto sob uma visão mais aberta, se o atual não o fizer.
As questões que precisam de ser discutidas estão identificadas. Um recente artigo publicado pela Reuters identificava as seguintes três áreas: 1. Identidade cultural, incluindo medidas de proteção da língua; 2. Concessão de maior espaço para controlo local da economia da região, com reexame de propostas anteriores sobre as questões fiscais que Madrid rejeitou; 3. Entendimento mais descentralizado da organização regional do país, (excessivo centralismo da capital).
Se as partes não criarem espaço para as tratar, considerando a eventual necessidade de um outro quadro legal, a crise vai durar, desfecho que não interessa à Europa, muito menos a Portugal. Esperemos que os dois lados tenham presente o conselho muito pertinente de Guy Verhofstadt, antigo primeiro ministro belga:
«
In politics, there is no shame in compromise. Quite the contrary: When a choice must be made
between a constructive bargain and ideological purity, it is always better to choose the path of
unity, however small the steps may be.»
>>>>>> http://database.jornaldefesa.pt/geopolitica/JDRI%20257%20041017%20catalunha.pdf